Em nome de Verhoeven, todos bebem do sangue de Benedetta

Cena do filme Benedetta. Nela, está o rosto de Benedetta aproximado. Benedetta é uma freira adulta branca. Ela veste um hábito. Seus olhos e boca estão fechados. No olho esquerdo, um polegar passa água benta por cima. O polegar é de uma pessoa branca. O olho direito também está umedecido pela água.
De santa imaculada à iconografia sexual, Benedetta é a falsa heroína do drama controverso de Paul Verhoeven, que após sua estreia mundial em Cannes 2021 inflamou protestos pela crítica conservadora (Foto: SBS Productions)

Ayra Mori

Intocável, a figura da freira se tornou fonte de lascivas fantasias. Cobertas pelo mistério do tecido negro de seus hábitos, enclausuradas pela solidez das paredes de pedra e tomadas pela devoção santificada por Jesus, desde a origem da Igreja Católica como organização, a silhueta inconfundível das noivas de Cristo corporificou-se, do espírito à carne, contra o olhar. Desse olhar reprimido emergiu uma miríade de representações cuja maior tentação se debruça no magnetismo feminino oculto dentro de um convento. No retorno de Paul Verhoeven em Cannes 2021, o drama semi-biográfico Benedetta tateia o subgênero, revelando, por trás do protagonismo progressivo das mulheres enquadradas em cena, um agressivo observador – masculino.

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O leite derramado de Mães Paralelas

Cena do filme Mães Paralelas. Nela estão Ana e Janis de costas, em ordem. Ana é uma jovem branca de cabelo curto estilo joãozinho platinado. Ela veste uma jaqueta esportiva azul marinho com detalhes em vermelho nas laterais. Ela segura uma taça de vidro âmbar em direção à Janis, que está à esquerda. Janis é uma mulher branca de meia idade com cabelo castanho médio iluminado e ondulado. Sua roupa é coberta pelo cabelo. O fundo é uma parede verde musgo com retratos de ancestrais emoldurados por molduras vermelhas.
Após abrir o Festival de Veneza em 2021, Mães Paralelas foi indicado à duas categorias do Oscar 2022: a de Melhor Atriz e Melhor Trilha Sonora Original (Foto: El Deseo/Netflix)

Ayra Mori

Duas mães, duas Espanhas, dois paralelos. Uma mãe dá à luz a uma criança nascida do amor. Outra, à uma criança nascida da dor. Uma Espanha segue sem culpas do passado sombrio do Franquismo. Outra carrega consigo os traumas geracionais de vestígios mortais dos ossos inidentificáveis que jazem em covas ilegítimas. Firmado pelos opostos, em Mães Paralelas (no original, Madres Paralelas) Pedro Almodóvar posiciona passado e presente, ambos em confronto entre si. O longa dá sequência ao universo melodramático deslumbrante – mas cru – do cineasta espanhol, desta vez, como manifesto político. O leite já foi derramado e o resquício azedo de sua sujeira continua incrustado nos rejuntes do país. Resta, aceitá-lo.

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Em O peso do pássaro morto, a perda é a grande protagonista

Capa do livro O peso do pássaro morto. Na imagem, um fundo roxo carrega o título da obra como se as palavras estivessem apoiadas em fios elétricos pretos. No canto superior direito está grafado o nome da autora em branco, já no canto inferior esquerdo é marcada a logo da editora. Ainda há nos extremos da capa os números: 8, 17, 18, 28, 37, 48, 49, 50, 52.
O peso do pássaro morto, publicado pela Editora Nós em 2018, é a obra de estreia de Aline Bei (Foto: Editora Nós)

Jamily Rigonatto

“–claro, – respondi
entendendo que o tempo
sempre leva
as nossas coisas preferidas no mundo
e nos esquece aqui
olhando pra vida
sem elas”

Quantas vezes na vida é preciso deixar parte de nós ir? E quantas vezes isso acontece até que não reste nada? Em O peso do pássaro morto, Aline Bei nos convida para integrar essas perguntas em sua poética questionadora, que desde o lançamento do livro em 2018, compõe o ar encantador habitante da crueldade. Em um retrato versado pelo gosto amargo de perder, a autora de Pequena coreografia do adeus e Rua sem saída apoia-se em palavras duras e sinceras para explorar o ato de se despedir, com toda sua naturalidade devastadora. 

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A filha perdida de Elena Ferrante pode ser você

Imagem retangular de fundo laranja. Ao centro, foi adicionada a capa do livro A Filha Perdida, um selo escrito Clube do Livro Persona no canto direito inferior e o logo do Persona no canto esquerdo superior. A capa é repleta de casas de telhado marrom avermelhado, no estilo mediterrâneo. É possível ver o céu e o mar azuis e uma torre verde. Está escrito, em letras brancas, "A FILHA PERDIDA" e "ELENA FERRANTE". Na parte inferior central, há o selo da Intrínseca.
Recentemente adaptado para o cinema, A filha perdida foi a escolha para o mês de dezembro de 2021 no Clube do Livro do Persona (Foto: Intrínseca/Arte: Jho Brunhara)

Raquel Dutra

As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender“, define muito bem Elena Ferrante no que vem a ser o prólogo de seu terceiro romance. Lançado no Brasil em 2016 pela editora Intrínseca, A filha perdida traz o pseudônimo italiano, aclamado por suas  personagens femininas e reverenciado por sua honestidade cortante, numa proposta de encarar com honestidade o que talvez seja um dos principais aspectos da experiência da mulher na sociedade – e também um dos assuntos mais intocáveis desde o início dos tempos -: a maternidade. 

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Inesgotáveis são os dramas que conduzem as seis décadas de Tangos

Capa do álbum Tangos. Fotografia quadrada, com fundo bege. No canto superior esquerdo, vemos o brasão do selo Imperial, formado pelo título Imperial, um fundo preto, um pássaro e uma coroa. No lado direito da parte superior, lemos Dalva de Oliveira em letras azuis. Abaixo, lemos Tangos em letras cor-de-rosa. Ainda mais embaixo, lemos Francisco Canaro em letras pretas. A letra G, de Tangos, tem uma seta voltada para a esquerda, apontando para o nome de Canaro. Mais ou menos no centro, vemos uma fotografia da cantora Dalva de Oliveira. Trata-se de um retrato oval, com uma espécie de filtro cor-de-laranja. Dalva tem cabelos curtos, sorri e está com a mão esquerda próxima do pescoço. Ao lado de seu retrato, lemos, em letras pretas, a lista de faixas pertencentes ao álbum Tangos.
Assim como o Jubileu de Prata, Tangos completa 60 anos em 2021 (Foto: EMI Music Brasil)

Eduardo Rota Hilário

Se um segmento popular da Música brasileira é rotulado em consenso, hoje em dia, como sofrência, isso é sinal de que o público mais novo desconhece totalmente os tangos outrora gravados – e dramatizados – por Dalva de Oliveira. Brincadeiras à parte, em 1961, mesmo ano em que lançaria seu Jubileu de Prata, a grande estrela do rádio investigava magistralmente alguns dramas humanos, principalmente os passionais, reunindo-os de forma bastante coesa em outro daqueles seus álbuns mais memoráveis de toda a carreira: o quase teatral Tangos. Esta abertura, por sinal, pode até parecer exagerada, mas uma única reprodução do mencionado LP consegue comprovar nítida e facilmente o contrário.      

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Lua Azul: um fenômeno não acontece uma vez só

Cena do filme Lua Azul. A imagem mostra uma jovem em primeiro plano, de costas e posicionada à esquerda. Ela é branca, tem cabelos lisos castanhos presos numa trança, e olha para frente. À frente dela, existe uma mesa onde uma família faz uma refeição. O lugar é alto e tem vista para montanhas.
Carregado de uma indigesta fábula sobre relações de poder permeadas por questões de gênero, Lua Azul compõe a Competição Novos Diretores da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Patra Spanou)

Raquel Dutra

A cineasta romena Alina Grigore é precisamente misteriosa ao nomear seu primeiro filme. No evento celeste da Lua Azul e na trama narrativa de Lua Azul, o que manda é o paradoxo que existe entre a riqueza de seus significados e a simplicidade do seu significante. E de fato, o que o drama traz para a 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, depois de sair com o prêmio máximo do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián 2021, é um fenômeno em todos os sentidos. 

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As Mulheres da 6ª Mostra de Cinema Feminista

De 14 de agosto a 3 de setembro, as colaboradoras, redatoras e editoras do Persona estudaram as múltiplas óticas que compreendem o que é ser mulher através das obras da 6ª Mostra de Cinema Feminista (Arte: Ana Júlia Trevisan/Texto de Abertura: Raquel Dutra)

Se não a Arte, quem é que vai ter coragem de refletir sobre o que é ser mulher em 2021? Essa foi a conclusão da nova experiência do Persona, que se dedicou a acompanhar a 6ª Mostra de Cinema Feminista. Do dia 14 de agosto ao dia 3 de setembro, a internet nos permitiu fazer parte de mais um encontro para pensar e apreciar o Cinema de forma totalmente online e gratuita. Depois de flutuar pelo que existe de mais diverso, fantástico, inventivo e maravilhoso na Sétima Arte, encaramos uma perspectiva específica e nada leviana: a da mulher.

Como sempre, o Persona se manifesta como uma iniciativa jornalística expressamente contrária a toda e qualquer forma de preconceito e discriminação. A premissa de falar sobre feminismo em 2021 é apenas uma: que este termo compreenda a mulher em sua totalidade. Assim, as colaboradoras, redatoras e editoras do Persona mergulharam na seleção vasta da 6ª Mostra de Cinema Feminista, composta por 126 filmes nacionais e internacionais, e acompanhada por 5 debates que refletiram sobre a produção cinematográfica contemporânea.

A Mostra de Cinema Feminista é realizada pela Coletiva Malva desde 2015, sob o objetivo de construir um espaço de fruição e fomento ao audiovisual realizado por mulheres cis e trans, pautando debates raciais, de gênero, histórias sobre amores e paixões, relações familiares, sociais, econômicas, históricas e culturais. E no ano de 2021, em sua sexta edição, a realização não fugiu à premissa central de sua concepção: explorar os muitos temas que nascem da combinação do Cinema com os Feminismos.

De crianças à jovens, de adultas à idosas; entre personalidades históricas e existências ordinárias; diante de mulheres reais ou inventadas; doces ou salgadas, azedas ou amargas; seja para rir ou para chorar, para sonhar ou para realizar, vivendo suas liberdades ou estudando suas prisões, Ana Júlia Trevisan, Ayra Mori, Gabriela Reimberg, Gabrielli Natividade, Júlia Paes de Arruda, Ma Ferreira, Mariana Chagas, Raquel Dutra e Vitória Lopes Gomez assistiram 34 filmes da seleção da 6ª Mostra de Cinema Feminista, para agora estudar muitos aspectos da imensidão do ser mulher.

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Garota, Mulher, Outras e a sonoridade de cada pessoa

Capa do livro Garota, Mulher, Outras. A capa do livro apresenta um desenho de uma mulher negra que veste uma roupa preta e cinza estampada com flores e plantas. A mulher possui olhos pretos e cabelos pretos curtos, e usa ainda um brinco de pérola. O título do livro está no canto inferior direito em branco, e o nome da autora, Bernardine Evaristo, está na cor verde água. O cenário atrás da mulher é uma parede verde com estampa de folhas, e uma moldura de quadro. O selo da editora, Companhia das Letras, está em escritos brancos no canto superior esquerdo.
Garota, Mulher, Outras foi trazido ao Brasil pela Companhia das Letras com a cuidadosa tradução de Camila Von Holdefer (Foto: Reprodução)

Isabella Siqueira

A partir de uma narrativa quase poética e única, Garota, Mulher, Outras já pode (e deve) ser considerado um clássico da literatura britânica. Sua autora, Bernardine Evaristo, traça com cuidado as histórias de 12 protagonistas diferentes, que são ligadas por um fio condutor que compreende todo o século XX no Reino Unido. Indo além da riqueza de referências culturais, políticas e sociais que a obra apresenta, é no âmbito sentimental que a trama floresce.

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