Há 40 anos, King quase enterrou O Cemitério – e que bom que isso não aconteceu

Alerta de gatilho: violência explícita, morte e luto

Capa do livro O Cemitério. A capa tem um fundo que na parte posterior tem lápides e na parte inferior tem um gato felpudo com coloração preta e reflexos brancos, está com os olhos brancos. Na parte superior, tem os dizeres "Stephen King" em branco. Já embaixo, há o título do livro "O Cemitério" e o logo da Editora Suma em vermelhos. A letra "c" de cemitério lembra o rabo de um gato.
O Cemitério é a personificação da morte em todos os sentidos (Foto: Companhia das Letras)

Marcela Lavorato

O Cemitério plantado por Stephen King colhe frutos há 40 anos. O motivo é simples: o livro é uma descrição minuciosa dos sentimentos humanos em torno de um fato que não nos é explicado, mas que esperamos vir inevitavelmente ao longo da vida – a morte. Na verdade, a morte não é algo simples, mas percorre a base do natural e do orgânico, algo que já nascemos com ela, pois sabemos que um dia irá acontecer, mas nunca esperamos ser tão cedo. A narrativa de Pet Sematary – título original -, portanto, abre portas para tramas brutas e reais que fazem o leitor experimentar todos os sentidos ao ler essa obra-prima do terror.

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Os curtas brasileiros do 28º Festival É Tudo Verdade

Na 28ª edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, o Persona acompanhou os filmes da Competição Brasileira de Curtas-Metragens (Foto: Hans Gunter Flieg/Acervo Instituto Moreira Salles/É Tudo Verdade/Arte: Ana Clara Abbate/Texto de abertura: Bruno Andrade)

Entre os dias 13 e 23 de abril, o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade voltou totalmente às salas presenciais dos cinemas espalhados em São Paulo e Rio de Janeiro. Com exibições gratuitas no Centro Cultural São Paulo, Cine Marquise, Cinemateca Brasileira, Sesc 24 de Maio e IMS Paulista, o festival teve também Sessões Especiais virtuais, exibindo nas plataformas de streaming Itaú Cultural Play e Sesc Digital sete dos nove filmes da Competição Brasileira de Curtas-Metragens e dois longas da Mostra Foco Latino-Americano (Beleza Silenciosa, de Jasmín Mara Lópeza, e Hot Club de Montevideo, de Maximiliano Contenti).

Com 72 títulos de 34 países, o festival – fundado em 1996 por Amir Labaki – homenageou dois grandes cineastas na sua 28ª edição: Humberto Mauro (1897–1983), “um dos inventores do Brasil cinematográfico”, que “impõe-se quando o próprio país e logo seu Cinema enfrentam nova reconstrução”, exibindo dez de seus filmes e dois documentários; e Jean-Luc Godard (1930–2022), com a apresentação dos oito episódios da sua série documental História(s) do Cinema (1987-1998), considerada a obra-prima da última parte de sua carreira, cujo conteúdo foi constantemente retrabalhado pelo autor e cuja produção durou cerca de dez anos.

O alcance do É Tudo Verdade, o maior festival de Documentários do mundo, é reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que classifica diretamente os filmes vencedores dos prêmios dos júris nas Competições Brasileiras e Internacionais de Longas/Médias e de Curtas-Metragens para apreciação ao Oscar do próximo ano. Longe das sessões presenciais, o Persona assistiu à distância os curtas-metragens brasileiros disponíveis no streaming. Dos sete filmes da Competição Brasileira de Curtas exibidos remotamente, quatro tiveram sua estreia mundial no É Tudo Verdade, que também expôs, apenas presencialmente, Ferro’s Bar (Menção Honrosa na categoria), dirigido por Aline A. Assis, Fernanda Elias, Nayla Guerra e Rita Quadros, e O Materialismo Histórico da Flecha Contra o Relógio, de Carlos Adriano.

Mãri hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Ɨramari, além de ter sua estreia mundial no É Tudo Verdade, foi o grande vencedor da Competição Brasileira de Curtas-Metragens, recebendo também o Prêmio Mistika. Produzido em parceria da ARUAC Filmes com a Hutukara Associação Yanomami, o curta do cineasta yanomami aborda o conhecimento de seu povo sobre os sonhos, com a participação e narração da liderança indígena e xamã, Davi Kopenawa. “A luta yanomami vai continuar até o fim”, disse Ɨramari.

Abaixo, você fica com a curadoria do Persona feita por Bruno Andrade, Enzo Caramori, Guilherme Veiga, Jamily Rigonatto, Nathalia Tetzner e Vitória Gomez, que deixam suas impressões sobre Os curtas brasileiros do 28º Festival É Tudo Verdade.

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Em Aos prantos no mercado, Michelle Zauner chora entre temperos e memórias

Imagem retangular de fundo branco. No canto superior, está centralizado a logo do Persona, um olho com íris na cor amarela e pupila em preto no formato triangular de play. No lado direito dessa logo, está escrito "Clube do Livro do Persona" preenchido por um fundo preto e com letras transparentes que correspondem à cor do fundo branco. Abaixo está escrito “Em Aos prantos no mercado, Michelle Zauner chora entre temperos e memórias” em letras pretas, sendo "Aos prantos do mercado" em letras amarelas. Mais abaixo, no canto esquerdo, há uma imagem retangular da capa do livro de fundo vermelho. No topo da capa, de forma centralizada, está escrito o nome da autora "Michelle Zauner" na cor branca e, logo abaixo, uma ilustração de uma sequência de quadrinhos. O primeiro quadrinho mostra uma cesta cheia de mercado, o segundo mostra um vaso de flor, o terceiro mostra uma laranja sendo descascada e o último mostra a preparação de uma refeição com muitos ingredientes postos sobre uma mesa. Na parte inferior da capa, de forma centralizada, está escrito o título do livro "Aos prantos no mercado" em letras amarelas. Ao lado direito da imagem, está escrito "À medida que Zauner se aliena ao preparar as refeições para a mãe, com a garantia de que Chongmi recebe as calorias suficientes para sobreviver, o seu próprio apetite diminui, consequência da 'esperança desesperada de que a escuridão não fosse invadir'." em letras pretas. Abaixo do texto está escrito “Por" em letras pretas, seguido de "Bruno Andrade" em letras amarelas. No canto inferior há um sombreado amarelo que está iluminando o escrito "Crítica", também em amarelo.
Lançado no Brasil em 2022, com tradução de Ana Ban, Aos prantos no mercado foi a obra debatida no Clube do Livro do Persona em Janeiro de 2023 (Foto: Fósforo/Arte: Ana Cegatti)

Parecia que o mundo tinha se dividido em dois tipos diferentes de pessoas, as que haviam sentido dor e as que ainda iriam sentir” (pág. 192)

Bruno Andrade

Com a morte da mãe, Michelle Zauner passou a enfrentar uma terrível nostalgia ao entrar no H Mart, supermercado especializado em comida asiática. Embora seja amargo lembrar de quando sua matriarca, Chongmi, morreu vitimada por um câncer em 2014, ela pode se lembrar com tranquilidade do gosto que sua mãe tinha para comida: entre o salgado e o “fumegando de quente”, que, por algumas razões, definiam sua forma de exercer a maternidade. “Por mais crítica ou cruel que ela pudesse parecer – sempre me forçando a atender a suas expectativas obstinadas –, eu sempre sentia o afeto dela irradiando das merendas que ela preparava para eu levar à escola e das refeições que ela cozinhava para mim bem do jeito que eu gostava”. As peregrinações repletas de tristeza sustentam o primeiro capítulo de Aos prantos no mercado, livro lançado em 2022 no Brasil pela editora Fósforo, cujo primeiro capítulo é o ensaio homônimo publicado na The New Yorker.

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Circuito Cineclubes Sesc – Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos ecoa sua voz na espiritualidade

Cena do filme Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. Na imagem está o protagonista, Inhac Krahô. Ele é um homem indígena de cabelos pretos lisos na altura dos ombros. Ao fundo há uma cachoeira. A imagem é azulada e se passa a noite.
Apresentado no Festival de Cannes em 2018 e vencedor do Prêmio Especial do Júri, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos dá protagonismo ao povo Krahô (Foto: Embaúba Filmes)

Jamily Rigonatto 

Por muito tempo, o Cinema retratou os povos indígenas moldados por óticas brancas, completamente envoltas de estigmas e equívocos. Essas imagens se fixaram no imaginário popular e, muitas vezes, a descrição que temos dos nativos é animalizada, preconceituosa e intolerante. Fugindo desse movimento, os diretores Renné Messora e João Salaviza trouxeram às telas Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018). O filme, gravado na Aldeia da Pedra Branca em Tocantins, é um registro contemplativo e profundo dos Krahô e sua grandeza espiritual, e integrou a Mostra Cinema é Direito no Sesc Bauru

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8 mortes e 1 narrativa: Gato de Botas 2 traça as nuances de entender sobre a vida e a morte

Cena do filme Gato de Botas 2. Na imagem vemos dois personagens, um sendo um lobo branco cartunizado com olhos vermelhos e um capuz preto, a qual é a Morte. Enquanto, ao seu lado, encontramos um gato com chapéu preto de pena amarela, uma capa preta, pelos ruivos e olhos verdes. O Gato segura um copo de leite nas mãos e ambos estão conversando de forma próxima.
Como qualquer boa história, tudo começa em um taverna (Foto: DreamWorks)

Dante Zapparoli

Uma narrativa a qual ouvimos desde os filmes de velho oeste é a de que lutar contra a Morte é algo impossível. Em Gato de Botas 2: O Último Pedido vemos mais uma faceta de um herói, que era considerado imortal e invencível, cair ao inevitável fim: o medo de sua história acabar.

Após 12 anos desde sua primeira produção, o Gato de Botas volta a ativa com mais uma aventura solo para as telas de cinema. A nova obra abre com uma estrela cadente que caiu na Terra e, segundo lendas, realizaria o desejo de quem a encontrasse. A narrativa se torna importante ao decorrer da história, pois é a motivação de sete personagens diferentes: o próprio Gato de Botas, Kitty Pata Mansa, Cachinhos Dourados e os Três Ursos, e João Trombeta.

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Em Ruído Branco, o mundo real é uma simulação

Em parceria com a A24, Ruído Branco estreou no Festival de Veneza e chegou à Netflix no penúltimo dia de 2022 (Foto: Netflix)

Bruno Andrade

“Consumista” já foi a palavra de ordem de uma geração que, em um passo ousado, julgava os relativos perigos de uma sociedade descontrolada – talvez como consequência direta da mudança social dos anos 1960, cuja virada cultural permanente se estabeleceu e desembocou no mal-estar das décadas seguintes. Mas o fato é que o julgamento parecia resfriar-se em um sólido cenário teórico, e ironicamente se perpetuava, muitas vezes, por aqueles que o apontavam. O consumo estava em toda parte. Em Ruído Branco, adaptação dirigida por Noah Baumbach do clássico homônimo de Don DeLillo publicado em 1985, outras facetas do consumo – para além da alienação – ganham espaço: o entretenimento vulgar, o delírio e a paranoia.

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Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades é a autocrítica de Alejandro G. Iñárritu

O longa foi exibido no Festival de Veneza e teve uma pré-estreia presencial no Brasil, na seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra SP (Foto: Netflix)

Bruno Andrade

O que parece ser unânime em relação a Alejandro González Iñárritu é que ele nunca se esforça em agradar. Disso surgem virtudes e defeitos: ele pode criar obras originais e autênticas, com refinado valor estético, mas também pode cair no escárnio, na decepção, na epopeia que pode ser o ego de um diretor. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades parece ser o meio termo entre essas duas situações. Com uma trama que se propõe a traçar a história de um renomado jornalista e documentarista mexicano, Silverio Gama (Daniel Giménez Cacho) – personagem marcado por uma profunda crise existencial –, o longa integrou a seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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A morte é corporativa em Plano 75

Com uma menção especial do prêmio Camera d’Or na seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes, Plano 75 integrou a Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Loaded Films)

Bruno Andrade

Em um Japão não muito distante, na tentativa de lidar com o envelhecimento da sociedade e aliviar o sufocamento econômico promovido pela política neoliberal, é criado um programa que encoraja cidadãos idosos a serem voluntários de eutanásia. A política em torno do projeto é simples: encurtar institucionalmente a vida dessas pessoas, oferecendo uma recompensa de 100 mil ienes pelo sacrifício, que podem ser gastos livremente com o objetivo de fornecer o necessário para um “último desejo”. Esse é o enredo de Plano 75 (Plan 75), a distopia necropolítica dirigida e roteirizada por Chie Hayakawa, que integra a Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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O réquiem de Castlevania

Cena da quarta temporada de Castlevania. Isaac Adetokumboh M’Cormack) luta com Carmilla (Jaime Murray) em um salão coberto de sangue, enquanto são observados por Criaturas da Noite. Isaac, vindo pela esquerda, é um homem negro, magro e careca, usando robes azuis claros e uma calça azul escura. Carmilla, vindo pela direita, é uma mulher branca e magra, de cabelos longos e brancos e pele pálida, usando um vestido vermelho e saltos dourados. Ela ataca Isaac com uma espada longa e vermelha, que vai de encontro a uma adaga segurada por Isaac com as duas mãos, que também brilha vermelha. Atrás de Isaac, uma Criatura da Noite humanóide o ajuda a segurar a força do impacto. A Criatura possui asas demoníacas e pele branca e pálida, exceto nas pernas e nas asas, que são negras. Em sua cabeça, há chifres curvilíneos que vão para trás, onde sua pele tem um tom rubro e carnoso. Outras criaturas assistem a luta, de costas para grandes janelas que se erguem do chão ao teto e deixam entrever o céu noturno e chuvoso.
Entre sangue, monstros, vampiros e controvérsias, Castlevania se despede com ferocidade (Foto: Netflix)

Gabriel Oliveira F. Arruda

É bem possível que estejamos entrando em um período de ouro para as adaptações de videogames na Televisão: embora o Cinema ainda sofra para traduzir narrativas interativas para filmes de duas horas, vemos cada vez mais exemplos de como estruturas serializadas são capazes de realizar essa transição incólumes. Arcane, da Netflix, conseguiu transformar a poderosa mitologia de League of Legends em uma das melhores séries do ano, construindo uma trama emocionante sobre desigualdade e opressão em cima de um jogo de estratégia competitivo, enquanto a versão de The Last of Us para a HBO promete estar na vanguarda da temporada de premiações de 2023.

Porém, ainda em 2021 tivemos um novo e último capítulo para a série que provavelmente deu início à essa moda. Na quarta temporada de Castlevania, diversos arcos são concluídos e a busca de seus protagonistas para acabar com o mal de uma vez por todas chega ao seu final climático. A adaptação da icônica franquia de jogos da Konami que empresta parte do nome ao gênero metroidvania foi desenvolvida pelo estúdio Powerhouse, que desde então vem provando sua excelência no meio com projetos como O Sangue de Zeus e Mestres do Universo: Salvando Eternia. Após uma humilde primeira temporada com apenas quatro episódios, a trama do seriado rapidamente se expandiu para uma verdadeira saga de poder e mitologia vampírica.

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Chucky: sátira à sociedade americana e exaltação do terror queer dominam

Cena da série Chucky. Na imagem há um garoto, Jake, vestido com uma moletom em tom de preto manchado com branco, vestindo uma jaqueta de moletom acinzentada por cima. Em suas costas ele carrega uma mochila preta e atrás dele há a imagem de um corredor desfocado com um garoto branco, loiro, vestindo azul ao seu canto direito. Jake tem uma expressão triste. Ele é um adolescente branco, de cabelos encaracolados e médios. Ele carrega consigo um boneco de cabelos ruivos, olhos azuis, que veste uma blusa listrada em tons de vermelho e azul e veste um macacão jeans, o brinquedo Chucky.
O boneco que foi o pesadelo de uma geração volta em sua melhor versão na série presente no catálogo do Syfy (Foto: Syfy)

Ma Ferreira

Em 1988, surgia um novo ícone do Cinema de Terror, uma figura dócil, mas, ao mesmo tempo, demoníaca: Chucky, o brinquedo assassino. Aterrorizando sonhos de muitas crianças dos anos 1990, o boneco entrou para o rol dos psicopatas da cultura pop e ganhou uma franquia de oito longas, um curta-metragem e, atualmente, uma série, que já está renovada e sua segunda temporada sai este ano. A história original de Don Mancini foi ressuscitada e aprofundada no seriado Chucky, voltando às origens do assassino Charles Lee Ray, mostrando sua trajetória até o que se tornou e seus atuais planos.

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