Pequena coreografia do adeus e o que fazemos com nossos corações destroçados

Arte com a capa do livro "Pequena coreografia do adeus". No centro, está a capa do livro, O fundo é rosa e roxo com pétalas rosas. No canto superior esquerdo, está o olho do Persona. No canto inferior direito, está o símbolo azul da Cia das Letras.
A figura que ilustra capa é “Etats modifiés”, de autoria de Louise Bourgeois (Foto: Companhia das Letras/Arte: Caroline Campos)

Caroline Campos

para todos aquele que procuram uma 

Casa dentro de casa

em especial aos que procuram

desesperadamente.

Absorver Pequena coreografia do adeus não é um trabalho fácil. Publicado pela Companhia das Letras em 2021, o novo livro de Aline Bei é como voar bem alto, bater no teto da existência e espiar o que há além. Mais um fruto da parceria do Persona com o grupo editorial, a autora vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura derrama sua ternura e seu carinho pelas próprias criaturas, se transmutando a cada página a fim de se tornar algo tão único que só o leitor perfeitamente quebrado é capaz de dançar em sua companhia.

As palavras de Bei dão voz a Júlia Terra, uma jovem escritora nascida do solo rachado que um dia foi amor entre Vera e Sérgio. Em três ciclos de vida, Júlia despeja suas cicatrizes e devaneios de forma tão íntima que nos sentimos invasores, roubando confidências que não possuem esperanças de florescer na infertilidade de sua casa. No entanto, a história da personagem não carrega o desprazer da espetacularização da dor, já que Bei respeita, acima de tudo, a Júlia que se construiu em meio a tanta demolição – não apenas apesar da dor, como também em razão dela.

Querido diário,

Eu me chamo Júlia Manjuba Terra e não acredito no amor. Se eu pudesse escolher, gostaria de me transformar em uma música, porque além de bonita ela desaparece quando alguém desliga o rádio. (…)

Em 282 páginas que correm tão rápido como se estivessem em fuga de sua plateia, a prosa em ondas da autora de O peso do pássaro morto é o que garante que os manifestos da jovem sejam tão intensos. Assim como sua criadora, Júlia também se descobre uma domadora das palavras, na tentativa de exorcizar a violência a que foi exposta desde cedo. Sua mãe, Vera, uma mulher amargurada pelo abandono, a surrava constantemente, como uma verdadeira Rainha de um pequeno país em guerra (…).

O resultado desse relacionamento é um jardim de culpas e ódios que se enrola por dentro da protagonista durante grande parte da sua vida. Sérgio, sua distante figura paterna, não demora para abandonar o campo de batalha e se torna um conhecido de visitas semanais e olhares perdidos, arrancando um dos poucos alicerces que mantinham aquela criança violentada de pé. Mesmo com o passar do tempo, Júlia não consegue se desprender dos buracos no peito e continua tropeçando nos próprios cacos, que ganham novos contornos conforme a idade e a independência vão batendo na porta.

A performance narrativa de Aline Bei em Pequena coreografia do adeus é dolorosamente bela, capaz de nos fazer reinterpretar a forma com que percebemos a realidade ao nosso redor. A Júlia-criança e a Júlia-quase-adulta se deparam com os mesmos becos sem saída nas ruas dos amores da vida, sejam elas possíveis sementes românticas ou futuros laços fraternos – quantas versões de Júlia deterioraram para que essa pudesse se apresentar a nós?

Foto de Alinei Bei, uma mulher branca de 30 anos com cabelos pretos na altura dos ombros. Ela usa um blazer preto e um cropped com listras brancas e vermelhas. Podemos vê-la da cintura para cima, com a mão direita em um corrimão. As sombras do corrimão estão projetadas em toda a imagem.
O primeiro livro de Aline Bei, “O peso do pássaro morto”, foi publicado pela editora independente “Nós” (Foto: Edilson Dantas/O Globo)

Nunca vamos, nem devemos, saber. A protagonista de Bei é uma força da natureza embalada na própria tempestade e, apesar de não conseguir compreender o próprio papel nessa jornada em que foi colocada, possui uma profundidade tão latente que nos é impossível visualizar seu fundo. Júlia, privada de se comunicar com os seus, passa a desejar de tudo – ser música, viver o balé, nadar com as palavras. E é no diário que seus gritos um dia silenciados pelas chineladas da mãe passam a transbordar. Júlia Terra Escritora, dizem os capítulos.

Não há como Júlia ser Júlia sem a destreza da estrutura textual de Aline Bei. A paulistana brinca com a elaboração de frases e transita entre fontes e parágrafos de forma com que o leitor de Pequena coreografia do adeus acompanhe seus passos vagarosamente, temendo perder alguma nuance mínima de sua narrativa. Depois de concluída, a leitura ainda flutua viva pelo ambiente, desafiando a pobre plateia a esquecê-la, superá-la. 

(…) já naquela época eu sabia que mentir era um direito

básico

à fabulação

que eu usufruía

quase sem

culpa

pra conseguir ser um pouco mais livre.

Acumulando companheiros de páginas, Júlia colore sua experiência com o abandono e reflete o passado de desamor nos relacionamentos a que é apresentada. Para Vegas, amigo de café, o mistério confortável dos estranhos. Para Maurício, garçom e amante, a paixão falsa dos casamentos. Para Ricardo, parisiense-paulistano, o medo do envolvimento e da ausência. Para Argentina, viúva da pensão, o afeto até então desconhecido. O que sobra para Júlia? Talvez a beleza sofrida da caminhada.

Com reticências implícitas, Pequena coreografia do adeus desenha uma atmosfera agridoce no ar. Nem pessimista nem otimista, Aline Bei reconhece os equilíbrios e os paradoxos da vida, fundamentais para que a redenção, em algum momento, venha em nossa direção. Muito do que nós somos é forjado pela imperfeição da música que nossos corações destroçados produzem e, se for para aceitar por inteira a batida, que seja em uma pequena coreografia.

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