Lua Azul: um fenômeno não acontece uma vez só

Cena do filme Lua Azul. A imagem mostra uma jovem em primeiro plano, de costas e posicionada à esquerda. Ela é branca, tem cabelos lisos castanhos presos numa trança, e olha para frente. À frente dela, existe uma mesa onde uma família faz uma refeição. O lugar é alto e tem vista para montanhas.
Carregado de uma indigesta fábula sobre relações de poder permeadas por questões de gênero, Lua Azul compõe a Competição Novos Diretores da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Patra Spanou)

Raquel Dutra

A cineasta romena Alina Grigore é precisamente misteriosa ao nomear seu primeiro filme. No evento celeste da Lua Azul e na trama narrativa de Lua Azul, o que manda é o paradoxo que existe entre a riqueza de seus significados e a simplicidade do seu significante. E de fato, o que o drama traz para a 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, depois de sair com o prêmio máximo do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián 2021, é um fenômeno em todos os sentidos. 

A premissa do filme também faz jus à complexidade proposta por Alina Grigore, que nos apresenta “a jornada emocional de uma jovem que caminha rumo a um processo de desumanização”. Ela é Irina (Ioana Chitu) e vive na zona rural da Romênia trabalhando no negócio de sua família, que é responsável pela sua criação e a de sua irmã Victoria (Ioana Ilinca Neacsu) na ausência dos pais divorciados. Sustentando o núcleo poderoso de Lua Azul, as garotas vivem de forma quase dupla quando fora do ambiente familiar, marcado por dinâmicas abusivas, e sonham com uma vida independente na capital, como forma de fugir daquele contexto de muitas violências

O filme diz a que veio logo no primeiro contato que estabelece com o outro lado da tela, num choque assustador que se cria ao ver Irina sendo acordada com gritos autoritários, broncas e ordens violentas. De forma apática e indigesta, Lua Azul já dissipa qualquer suavidade romântica que seu título possa sugerir para se estabelecer como um drama de ação, no sentido amplo do termo. Durante seus 90 minutos, as pessoas sempre estarão conversando (leia-se gritando), andando (leia-se correndo) e/ou trabalhando (leia-se brigando), e nas mãos de Alina, essa construção cotidiana é mais do que o necessário para criar uma fábula sobre relações familiares, de poder e de gênero.

Cena do filme Lua Azul. A imagem mostra o rosto de uma jovem branca em close. Ela tem cabelos lisos castanhos e usa uma franja e blusa preta de gola alta. Ela olha para o lado direito da imagem, com desconfiança.
Repleta de significado para as civilizações que olhavam para o céu em busca de compreender a Terra, a Lua Azul é definida pela astronomia como o fenômeno que permite a ocorrência de duas luas cheias num mesmo ciclo lunar (Foto: Patra Spanou)

O fio de Lua Azul se desenrola seguindo o que já conhecemos do Cinema romeno: rejeitando caminhos fáceis e valendo-se de muita ousadia. E no recorte de gênero muito bem proposto pela diretora, o filme só ganha mais relevância: através de Crai Nou, Alina Grigore é a segunda mulher a vencer o Concha de Ouro, prêmio máximo do Festival de San Sebastián, sucedendo a georgiana Dea Kulumbegashvili, que venceu a honraria em 2020 com Beggining. Além de protagonizarem o marco histórico e o futuro do Cinema do Leste Europeu, as duas diretoras também estão de mãos dadas quando o assunto é tomar como objeto de estudo o contexto de opressão que envolve jovens mulheres.

Desta forma, quando os homens de Lua Azul aparecem em cena, a narrativa de Alina é potencializada, num movimento em que a diretora parece conscientemente usá-los para fortalecer a sua crítica. Na presença do primeiro núcleo masculino, que é protagonizado por Liviu (Mircea Postelnicu), um primo da protagonista que trabalha de forma mais próxima à dela no hotel da família, o filme reflete sobre como as noções de amor e afeto são distorcidas em relações doentias fundamentadas no patriarcado. Depois, o roteiro, também de Grigore, desenvolve as consequências disso fora do contexto familiar, quando Irina suspeita ter sido abusada sexualmente numa festa, e acaba envolvendo-se emocionalmente com o seu possível agressor, que existe no olhar esperto de Tudor (Emil Mandanac).

Cena do filme Lua Azul mostra uma família fazendo uma refeição em volta de uma mesa branca e farta.
Antes de estrear na direção com Lua Azul, Alina Grigone fez-se conhecida por suas atuações em Aurora (2010), Best Intentions (2011) e Ilegitimo (2016) [Foto: Patra Spanou]
Tudo em Lua Azul é orientado pelo olhar de Alina Grigone, que sabe tratar a violência explícita e a implícita com a mesma maestria. Fora do plano da conceituação, o filme não precisa de nada além dos silêncios amargos e omissões amedrontadas de sua protagonista para nos apresentar os seus sentimentos, que diante da atmosfera explosiva, insensível e direta de todo o resto – muito bem capturada pela câmera atribulada de Adrian Paduretu -, coloca a personagem para existir dentro da narrativa em uma outra vibração. 

O nosso impulso é querer acreditar que uma hora tudo vai fazer sentido, mas como a própria sinopse avisa, trata-se de um processo de desumanização. Em Lua Azul, fenômenos sociais e naturais são colocados no mesmo patamar de regência das leis da natureza, e infelizmente, Alina Grigore identifica que a sociedade patriarcal é como se fosse parte delas. Como, então, se libertar de um ciclo de violência que nos cerca por todos os lados debaixo do céu? Diante da reincidência deles, Lua Azul também não sabe.

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