As Mulheres da 6ª Mostra de Cinema Feminista

De 14 de agosto a 3 de setembro, as colaboradoras, redatoras e editoras do Persona estudaram as múltiplas óticas que compreendem o que é ser mulher através das obras da 6ª Mostra de Cinema Feminista (Arte: Ana Júlia Trevisan/Texto de Abertura: Raquel Dutra)

Se não a Arte, quem é que vai ter coragem de refletir sobre o que é ser mulher em 2021? Essa foi a conclusão da nova experiência do Persona, que se dedicou a acompanhar a 6ª Mostra de Cinema Feminista. Do dia 14 de agosto ao dia 3 de setembro, a internet nos permitiu fazer parte de mais um encontro para pensar e apreciar o Cinema de forma totalmente online e gratuita. Depois de flutuar pelo que existe de mais diverso, fantástico, inventivo e maravilhoso na Sétima Arte, encaramos uma perspectiva específica e nada leviana: a da mulher.

Como sempre, o Persona se manifesta como uma iniciativa jornalística expressamente contrária a toda e qualquer forma de preconceito e discriminação. A premissa de falar sobre feminismo em 2021 é apenas uma: que este termo compreenda a mulher em sua totalidade. Assim, as colaboradoras, redatoras e editoras do Persona mergulharam na seleção vasta da 6ª Mostra de Cinema Feminista, composta por 126 filmes nacionais e internacionais, e acompanhada por 5 debates que refletiram sobre a produção cinematográfica contemporânea.

A Mostra de Cinema Feminista é realizada pela Coletiva Malva desde 2015, sob o objetivo de construir um espaço de fruição e fomento ao audiovisual realizado por mulheres cis e trans, pautando debates raciais, de gênero, histórias sobre amores e paixões, relações familiares, sociais, econômicas, históricas e culturais. E no ano de 2021, em sua sexta edição, a realização não fugiu à premissa central de sua concepção: explorar os muitos temas que nascem da combinação do Cinema com os Feminismos.

De crianças à jovens, de adultas à idosas; entre personalidades históricas e existências ordinárias; diante de mulheres reais ou inventadas; doces ou salgadas, azedas ou amargas; seja para rir ou para chorar, para sonhar ou para realizar, vivendo suas liberdades ou estudando suas prisões, Ana Júlia Trevisan, Ayra Mori, Gabriela Reimberg, Gabrielli Natividade, Júlia Paes de Arruda, Ma Ferreira, Mariana Chagas, Raquel Dutra e Vitória Lopes Gomez assistiram 34 filmes da seleção da 6ª Mostra de Cinema Feminista, para agora estudar muitos aspectos da imensidão do ser mulher.

Curtas-metragens

Fotografia mostrada em uma cena do documentário Rebu. Na foto desbotada, ao centro, vemos a diretora e protagonista Mayara Santana quando criança, vestindo uma fantasia branca de princesa e uma coroa dourada, com as mãos na cintura e olhando para a câmera.
Rebu foi pensado e lançado como uma websérie no formato IGTV no Instagram antes de chegar a mostras e festivais (Foto: Mayara Santana)

Rebu (Idem, Mayara Santana, Brasil, 2020)

“A minha intenção é ser um belo de um caminhãozão, com um belo de um retrovisor olhando pra frente e pra trás”. Ao longo dos 22 minutos de Rebu – A Egolombra de uma Sapatão Quase Arrependida, a diretora Mayara Santana busca a si mesma ao se apresentar e documenta seus sentimentos e vivências enquanto mulher preta e lésbica. Em primeira pessoa, o curta é uma tela em branco e a cineasta vira a musa, a protagonista e a narradora da própria história. 

De um jeito descontraído e intimista, Mayara não hesita em olhar para trás antes de olhar para frente. Reconhecer as semelhanças com o pai, por exemplo, é o ponto de partida para que ela entenda seus próprios comportamentos e como a relação a influenciou em outros relacionamentos, os quais ela recorda. Tudo isso fora o machismo, a homofobia e o racismo que não se desassociam de suas vivências. Entre erros e acertos, ela admite a culpa e se perdoa ao se entender em sua totalidade. Rebu que diga, e que difícil se entender. – Vitória Lopes Gomez


Cena de Como ficamos da mesma altura. Fotografia em paisagem, com bordas laterais pretas. Ao centro estão Laura e seu pai, sentados um ao lado do outro de pernas cruzadas. Entre eles, há uma porta, um espaço. A fachada da porta é cinza e a rua é inclinada. Laura veste uma blusa vermelha, shorts e tênis preto. O pai veste uma camisa cinza, calça bege e sapatos pretos. Ele também segura uma coroa de flores. Ambos olham para a frente.
Dirigido por Laís Santos Araújo, o curta integrou a Seleção Oficial do Festival Internacional de Cinema de Roterdão (IFFR, International Film Festival Rotterdam) [Foto: Aguda Cinema]
Como ficamos da mesma altura (Idem, Laís Santos Araújo, Brasil, 2019)

No interior de Alagoas, Laura (desgostosamente) perde uma festa com os amigos para acompanhar o pai numa viagem à cidade natal, na qual ocorrerá a missa de um ano de falecimento do tio. Chegando lá, ela é deixada sozinha pelo pai na maior parte do tempo, e quando juntos, a desavença é certa. A adolescente se mostra inquieta, questionando a relevância de sua presença na viagem, que parece ser completamente dispensável. Através dos vazios gritantes das cenas, a diretora Laís Santos Araújo acentua ainda mais a distância presente entre ambos. E sem saber se comunicar um com o outro, enfim, em silêncio, os espaços são reduzidos a partir do momento que pai e filha se compreendem, atingindo a mesma altura. – Ayra Mori


Cena do curta-metragem animação Ailin no mundo da lua. Ailin é uma menina branca, que está vestindo uma blusa vermelha e uma bermuda azul, seu cabelo é castanho, com uma franja e amarrado nas laterais. A garota está com os braços cruzados e brava. Está sentada em uma bola confeccionada com sucatas, a lua da narrativa, ao fundo se encontra um ambiente que remete ao universo, um mesclado de tons azuis e pretos com traços luminosos.
Ailin no mundo da lua é prova de que as relações entre mãe e filha podem ser complicadas e sensivelmente mágicas (Foto: El Molinete Animation)

Ailin no mundo da lua (Ailin en la luna, Claudia Ruiz, Argentina, 2019)

Ailin é uma garota feliz que brinca com seu balão vermelho e se preocupa em comer deliciosos biscoitos. Sua mãe, no entanto, é uma mulher sobrecarregada: seu trabalho, o trabalho doméstico, cuidar da filha e o trabalho que leva para casa. As duas discutem e Ailin é mandada ao mundo da lua, ou melhor dizendo, seu quarto. Em 5 minutos, acompanhamos algumas horas da vida das personagens que entram em conflito, mas o que sabemos vai além do que nos é mostrado. A escolha narrativa de apresentar a história ao final do dia, demonstra a sensibilidade do curta ao discutir a pesada jornada de mulheres que criam suas filhas sozinhas e que mesmo com as adversidades familiares não deixam de dar carinho, atenção e amor aos filhos. – Ma Ferreira


Cena do curta animado Lé com Cré. Uma garota de massinha, está próxima da câmera, sentada numa poltrona rosa com duas almofadas em cada lado, uma azul escuro com detalhes em preto e outra verde, com manchas de onça rosa. A garotinha é negra, de cabelos cacheados e sobrancelhas ruivos, com os dois dentes superiores aparentes. Ela está sorrindo e veste um vestido verde, com detalhes beges nos cotovelos e nas mangas. Suas mãos estão abertas, apoiadas no colo. O fundo é desfocado. É possível enxergar, no canto inferior esquerdo, um balde amarelo com flores amarelas. Ao lado, uma escrivaninha marrom com três gavetas com um monitor branco ligado, uma luminária pequena e um globo. A escrivaninha está abaixo de uma janela, aberta. No canto superior direito, há um abajur quadriculado aceso, com cores alaranjadas.
Em Lé com Cré, cada criança entrevistada virou um personagem em stop motion, escolhidos por elas mesmas: Dora, a aventureira, Cinderela, Princesa Ruiva, Cachorro, Elefante, Artista e Adulto (Foto: Play It Again Som & Imagem)

Lé com Cré (Idem, Cassandra Reis, Brasil, 2018)

Leve, puro e simpático. Essas três palavras poderiam ser a tradução do curta-metragem Lé com Cré, vencedor do prêmio de Melhor Curta Infantil no Anima Mundi de 2018, o maior evento internacional de Animação da América Latina. Segundo o ditado popular, a expressão lé com cré significa não dizer “coisa com coisa”. Durante seus apenas 5 minutos, a espontaneidade e a gentileza são os marcos principais dos depoimentos das crianças que expressam suas opiniões extremamente sinceras sobre dinheiro, medo e “coisas de menino e menina”. Só pelo fato das personagens terem sido transformadas em “massinha”, a animação consegue manter o clima de inocência mesmo falando sobre tópicos complexos. – Júlia Paes de Arruda


Cena do curta Brasil x Holanda. A cena mostra o foco no rosto de uma garota jovem e branca, de cabelos pretos, olhando diretamente para o rosto de um homem mais velho.
A diretora Caroline Biagi ri de quem ainda duvida que futebol é coisa de menina, mas não do jeito que você está pensando (Foto: Grafo Audiovisual)

Brasil x Holanda (Idem, Caroline Biagi, Brasil, 2018)

É a Copa do Mundo de 1994. O Brasil avança no campeonato e uma das famílias que acompanham a seleção é a de Marina, que vai dar uma festa de casamento no dia do confronto Brasil x Holanda pelas quartas de final. Então, a menina de 13 anos viaja com o pai e a mãe para celebrar o dia mais importante da vida de sua irmã, por quem ela conserva uma admiração religiosa. É quando Marina entende que as coisas no mundo dos adultos são muito mais estranhas e frustrantes do que ela imaginava.

A narrativa de Caroline Biagi se inicia de forma simples, tomando fôlego à medida em que a pequena protagonista se reconhece no ambiente. E a sensação que Marina tem durante esse processo é de uma contida inquietação, que brota da sua inteligência e sensibilidade de jovem mulher. Nesse ritmo, todas as instâncias do filme a seguem, desenvolvendo-se de forma imersiva, e amadurecendo uma narrativa de forma inversamente proporcional ao sentido da história. “Futebol é coisa de menina?” podem perguntar eles. “Você não imagina o quanto”, responde Brasil x Holanda. – Raquel Dutra


Mostrando uma mulher de 60 anos em busca de seus direitos, Geni foi produzido com uma equipe 100% feminina (Foto: Thais Taverna)

Geni (Idem, Cecilia Engels, Brasil, 2020)

Ele é um dos maiores ídolos da Música brasileira”, “Suas composições são amadas dentro e fora do Brasil”. Era isso que Geni ouvia diariamente nas rádios quando algum clássico de Fran Lopes estava prestes a tocar. A realidade? Ela é a verdadeira artista por trás daquelas canções, Lopes é apenas o showman. Após anos de prisão numa parceria onde apenas um tinha o reconhecimento, Geni começa sua luta, não por dinheiro, mas por direito. Geni entende que não deve mais se deixar calar, que deve falar por si própria. Geni amadureceu, compreendeu que a sociedade mudou e que agora ela tem voz, que não precisa mais de um homem para falar. Bendita seja Geni! – Ana Júlia Trevisan


Cena do documentário Rua Augusta, 1029. A imagem é capturada à noite, da janela do prédio ocupado pela Frente de Luta por Moradia (FLM), por onde vemos carros de polícia enfileirados lado a lado, com as sirenes ligadas. No primeiro carro, localizado do lado de um poste com uma placa de “proibido estacionar”, um policial procura algo dentro da viatura.
A iniciativa da Frente de Luta por Moradia (FLM) em ocupar prédios abandonados no centro de São Paulo, em 2016, se deu depois da proposta da PEC 241, que restringia gastos públicos em educação e saúde [Foto: Mirrah da Silva]
Rua Augusta, 1029 (Idem, Mirrah Iañez, Brasil, 2019)

Cru e hiper-realista, Rua Augusta, 1029 é uma experiência imersiva que nos leva para dentro de uma ocupação por moradia em São Paulo, em especial, na noite em que os militantes da Frente de Luta por Moradia (FLM) resistem à violência policial do despejo. O uso do found footage (câmera em primeira pessoa) consegue criar a mesma atmosfera dos clássicos filmes de horror que conhecemos, despertando, no telespectador, o sentimento de angústia de parecer estar na pele dos personagens. A diferença é que, aqui, tudo é verídico e não há um final feliz quando a polícia existe para proteger o patrimônio privado, e não os protagonistas vulneráveis. Afinal, como o próprio comandante da expedição diz aos sem-teto: “Não interessa quantas famílias moram aí.– Gabriela Reimberg


Capa do filme lésbica enrustida. Nela está a imagem espelhada de uma vagina sendo masturbada. Por cima está o texto “lésbica ENRUSTIDA” em preto com borda azul e o texto “closed LESBIAN” de preto com borda Roxa. Em baixo, está “Bia Lee” escrito em preto.
Para uma garota que viveu um tempo curto demais fora do armário (Foto: Bia Lee)

Lésbica Enrustida (Closed Lesbian, Bia Lee, Brasil, 2020)

Bia Lee explora sexualidade na obra de pequenos 6 minutos. Em cima de um fundo com duas mulheres transando, uma imagem espelhada e muitas vezes difícil de enxergar, a produtora do curta escreve suas experiências crescendo lésbica e descobrindo o prazer fantasiando sobre mulheres. Dedicado a uma antiga amiga que cometeu suicídio, Lésbica Enrustidaé uma carta de amor tardia, são desculpas tardias, é um adeus tardio”, como diz Lee nos últimos segundos do filme. – Mariana Chagas


Cena do curta Maré. No centro da imagem está a mãe de Patrícia e Diguinha, é uma mulher preta de meia idade, sua cabeça está virada para o lado direito da imagem e sua expressão é séria. Ela usa um vestido simples, preto e com estampa de flores e folhas, em sua cabeça está um turbante verde piscina. Atrás de si há uma parede descascada da mesma cor de seu turbante e em seu ombro esquerdo estão dois periquitos.
Maré nasce da dor de uma mãe que aguarda o retorno incerto de suas filhas (Foto: Eparrêi Filmes)

Maré (Idem, Amaranta César, Brasil, 2018)

O curta-metragem Maré mostra sua força em diversos aspectos. Com uma narrativa calma, com poucas personagens (todas femininas), sem muitas falas e com uma fotografia impressionante, a diretora Amaranta César trabalha lindamente a história melancólica de uma mãe que tem suas duas filhas perdidas no manguezal de sua comunidade. Amaranta faz também uma bela relação entre a visão de três gerações de mulheres da região: uma senhora, uma mulher de meia idade e duas crianças. 

Maré retrata toda a ancestralidade presente na comunidade quilombola do interior da Bahia, no modo de vida das moradoras, no seu modo de vestir e na sua religião – a cena em que as mulheres fazem sua vigília clamando por Oxalá é uma das responsáveis pelo tom quase mágico que o curta toma. O filme apresenta também uma denúncia forte à herança da escravidão: “dizem que a escravidão já acabou, quem disse que acabou? Continua aí, só não vê quem não quer”, sendo um curta intenso que tem muito a dizer. – Gabrielli Natividade da Silva


Cena do curta-metragem Cabeça de Rua. Da esquerda para a direita na imagem, na rua, vemos a prima de Célia, uma mulher branca, aparentando seus 30 anos, usando um boné branco virado para trás e uma camisa de futebol amarela e preta, e Célia, uma mulher branca, aparentando seus 40 anos, vestindo um colete verde com as palavras “lavador de carro” e um número embaixo.
Os créditos de Cabeça de Rua sobem ao som da canção Lésbica Futurista (Foto: Luís Oliveira)

Cabeça de Rua (Idem, Angélica Lourenço, 2019, Brasil)

Célia é lavadora de carros, entende das manhas do trabalho e é conhecida na região. Logo no começo de Cabeça de Rua, ela se prepara para passar o ponto do negócio para a prima ao receber uma proposta de emprego formal, mas deixar seu posto de anos para um novo desafio a enche de dúvidas e inseguranças. 

A atriz Cora Rufino, que interpreta a lavadora, não precisa verbalizar muito para transmitir a incerteza da personagem, a linguagem corporal da atriz basta para torná-la a força motriz do curta. Em um cenário dinâmico, com uma filmagem naturalista e só com duas personagens, a diretora Angélica Lourenço faz de Cabeça de Rua uma crônica, com um pouco que vira muito. – Vitória Lopes Gomez


Cena de À beira do planeta mainha soprou a gente, dirigido por Bruna de Barros e Bruna Castro. Fotografia em paisagem. Imagem aproximada das mãos de Bruna acariciando as costas da outra Bruna, sem ser possível distinguir quem é quem. O fundo da imagem é roxo escuro.
O amor sapatão de À beira do planeta mainha soprou a gente atravessou o mundo, integrando seleções de Cinema do Brasil à França (Foto: Bruna Barros e Bruna Castro)

À beira do planeta mainha soprou a gente (Idem, Bruna Barros e Bruna Castro, Brasil, 2020)

Como um poema, Bruna e Bruna exploram o amor através de recortes de uma montagem encantadora. Dirigido por duas mulheres que amam e se amam, À beira do planeta mainha soprou a gente é um autorretrato cheio de lirismo, seja pela narrativa proferida em versos, seja pelas sutilezas presentes nos detalhes do cotidiano, registrado entre descobertas de novas pintinhas uma pela outra. Como sapatonas, ambas se debruçam sobre o reconhecimento da própria identidade, sendo queer, sem receio, para as mães e para si mesmas. “Eu não sei ser resignada. Eu quero o mundo inteiro. Eu quero o orgulho. Eu quero doçura pintando meu nome. Me quero inteira nas suas palavras.– Ayra Mori


Cena do curta-metragem E. Na imagem está a personagem Mariana, uma pessoa branca de cabelos raspados, com uma expressão séria, ela tem os lábios pintados com batom vermelho e a parte inferior do rosto pintada de preto como se fosse uma barba. Ao fundo dela está uma paisagem urbana desfocada. A câmera está focada na lateral do rosto.
E é um grande manifesto pelo combate à construção social de gênero (Foto: Bianca de Sá)

E (Idem, Bianca de Sá e Mariana Zande, Brasil, 2020)

Neste poema performado, acompanhamos Mariana, que não quer ser mais A e também não quer ser O. De maneira sensível e crítica, as frases narradas contam a história e pensamentos de Mariana, uma “pessoa, que não quer ser homem, nem mulher, mas se quiser pode”. Todas as questões de gênero que a personagem enfrenta diariamente são a pauta da reflexão aqui proposta. Os banheiros, os pelos presentes ou não no corpo, a que margem do rio, ou mesmo qual rio quer se banhar e navegar, são parte das divagações apresentadas acerca da não-binariedade. De maneira comovente, E, em menos de 2 minutos, consegue quebrar os padrões de gênero socialmente estabelecidos e ser um grande manifesto à vida. – Ma Ferreira


Cena do curta animado Vivi Lobo e o quarto mágico. Sob um fundo azul marinho estampado estilo papel de parede, estão ao centro Vivi e sua mãe, abraçadas. Vivi é uma garota branca, de cabelos cacheados pretos compridos. Ela usa uma blusa e uma tiara azul piscina. Sua mãe é negra, de cabelos cacheados curtos. Ela usa um suéter amarelo mostarda e uma faixa de nó salmão. Atrás das duas, ao centro, está uma lua bem próxima da câmera e ramos de folhagens verdes.
O curta Vivi Lobo e o quarto mágico foi baseado num livro de mesmo nome, resultado do Trabalho de Conclusão de Curso de Isabelle Santos para bacharel em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (Foto: Julieta Audiovisual)

Vivi Lobo e o quarto mágico (Idem, Isabelle Santos e Edu MZ Camargo, Brasil, 2019)

“[…] a absorção dos papéis de gênero pelas crianças e como elas, à sua maneira, representam a si e ao outro” foi o que Isabelle escreveu no resumo de seu Trabalho de Conclusão de Curso, que teve como projeto Vivi Lobo e o quarto mágico. De forma simples, mas bem trabalhada, o curta fala sobre autoaceitação e sobre os estereótipos de gênero. 

Vivi é alvo de chacota na escola por seus colegas de classe por seu sobrenome, Lobo, tão ligado à figura masculina. Tendo por base o livro de Clarissa Pinkola Estés e inspirações de poderosas mulheres como Frida Kahlo e a jogadora Marta Silva, a produção não falha em trazer encanto, sutileza e empoderamento para as meninas sobre um tema sensível. Ainda que seus minutos sejam reduzidos, são extremamente preciosos e carismáticos. – Júlia Paes de Arruda


Cena do curta Quando elas cantam. A cena mostra 3 mulheres negras, sentados em carteiras escolares, cantando sorrindo, olhando umas para as outras.
O documentário Quando elas cantam teve um circuito notável em festivais nacionais e internacionais, como o 26ª Festival de Cinema de Vitória, e o X Festival Internacional de Cinema Etnográfico (Foto: Maria Fanchin)

Quando elas cantam (Idem, Maria Fanchin, Brasil, 2018)

Como pensar sobre liberdade quando se está presa? Essa é a pergunta que a diretora Maria Fanchin responde em Quando elas cantam, ao colocar seu curta dentro de um projeto musical realizado na penitenciária feminina da capital de São Paulo. O questionamento do documentário parte de um aspecto específico: segundo o Infopen Mulheres 2017, a população carcerária feminina do Brasil cresceu 698% entre 2000 e 2016; destas, quase 48% estão presas sem passar por um julgamento. Então, quando o filme se propõe a acompanhar parte da rotina daquelas mulheres entre maio de 2016 e agosto de 2017, só pode existir algo a ser abordado: a condição de privação de um direito fundamental ao ser humano de alguém que de já passou por uma vida de violências sistemáticas.

O filme não faz juízo de valor algum e em nenhum momento importa saber o porquê elas estão ali. A ótica de análise é outra, muito mais profunda, e se estabelece junto da realização do projeto Voz Própria, que direciona a energia daquelas mulheres encarceradas numa expressão possível de liberdade pela orientação de Carmina Juarez. Sem interferir no curso das coisas preciosas que acontecem naquela sala de aula 2h por semana, o documentário diz muito nas observações que faz daquelas pessoas que compreendem o momento como algo transcendental à sua situação. A Arte pode ser uma ferramenta poderosa de regeneração social. E a liberdade vem Quando elas cantam. – Raquel Dutra


Com entrevistas feitas pela diretora, o curta traz histórias pedagógicas de amor próprio (Foto: Reprodução)

Esmalte Vermelho Sangue (Idem, Gabriela Altaf, Brasil, 2020)

O curta chama a atenção por suas cenas de filmes dos anos oitenta, com mulheres em salões de beleza. Mas, basta poucos segundos para a produção mostrar que de boba não tem nada. As cenas são trocadas por tutoriais de beleza disponíveis no YouTube e acompanhado pela voz de mulheres vítimas de violência doméstica, dando seus depoimentos.

Infância muito difícil, passou fome, anos depois encontrou um cara bacana mas que batia nela e a ameaçava com faca. 8 anos de um casamento abusivo, abuso suxual e a primeira vez que foi no mercado após o divórcio, não sabia o que gostava de comer. Apanhou na lua de mel, o pai disse que o marido iria amadurecer, mas ele não amadureceu; continuou batendo e insinuando que ninguém acreditaria nas denúncias. Os mistos de sentimentos expressos no curta mostram a importância da rede de apoio para mulheres presas em relações abusivas. – Ana Júlia Trevisan


Cena de Minha história é outra.Uma mulher negra de cabelo raspado loiro vestindo shorts jeans e blusa estampada está tirando uma selfie com outra mulher negra de cabelo descolorido shorts jeans e camisa amarela amarrada na frente. Ambas estão de pé em uma cozinha azul clara.
Quando além de lésbica se é negra e periférica, sua história é outra (Foto: Agoya Produções)

Minha história é outra (Mariana Campos, Brasil, 2019)

O amor entre mulheres negras é mais que uma história de amor? Essa é a pergunta que ronda o documentário dirigido por Mariana Campos. O curta carioca discute o movimento LGBTQIA+ e como este exclui a negritude de suas pautas, transformando mulheres pretas e lésbicas em marginalizadas em seu próprio movimento.

Niázia abre as portas de sua casa para nos deixar assistir uma conversa sincera que tem com outra amiga sáfica sobre precisarem forçar uma feminilidade para terem um maior espaço no mercado de trabalho. Leiane, namorada de Camila, reclama sobre o medo de demonstrar afeto na rua. As garotas conseguem, com simplicidade, trazer a tona assuntos tão delicados e importantes. – Mariana Chagas 


Cena do filme As flores que guardei pra você. No lado direito da imagem é possível ver a silhueta de Ju, uma mulher ainda jovem. Ela está de perfil, sua cabeça está inclinada para cima, seus cabelos são lisos e ela usa um coque frouxo. Atrás de si há uma grande janela com vista para parte de alguns prédios da cidade e o céu de um início de anoitecer.
Uma dançarina em busca de uma nova vida (Foto: Aogue Filmes)

As flores que guardei pra você (Idem, Gabi Saegesser, Brasil, 2019)

O curta-metragem As flores que guardei pra você traz um mistério que com certeza prende o espectador. Ju, uma garota simples, que mora em um pequeno apartamento tradicional com dois gatinhos e que tem o sonho de ser bailarina, precisa se mudar e começar sua vida em outro lugar. 

A diretora Gabi Saegesser traz uma estética muito bonita, a baixa iluminação da grande maioria das cenas e o fato de ser quase impossível ver o rosto da protagonista causa um ar intrigante no curta. Além, claro, dos trechos de poesia lidos ao longo dos 18 minutos e da cena final que encerra a história de forma muito agradável. – Gabrielli Natividade da Silva


Cena do curta-metragem ngela. O cenário da é uma cozinha mal-iluminada em que, da esquerda para a direita, vemos um porta retrato pendurado na parede, uma geladeira com ímãs e potes em cima, uma janela com cortinas fechadas e uma pia com utensílios para fazer café. Ao centro no primeiro plano da foto, vemos a protagonista ngela, uma mulher que aparenta estar na casa dos sessenta anos, de cabelos brancos, usando um vestido marrom e óculos de grau, sentada à mesa lendo livros.
Desde seu lançamento em 2019, Ângela já passou por vários festivais e mostras, inclusive em plataformas de streaming, como a MUBI (Foto: Ipê Rosa Produções)

Ângela (Idem, Marília Nogueira, Brasil, 2019)

Ângela esbanja simplicidade e afeto ao refletir sobre o envelhecimento. A protagonista homônima, brilhantemente interpretada pela igualmente brilhante Teuda Bara, é uma sexagenária que vive na sua rotina de consultas e receitas médicas. Em uma casa que poderia muito bem ser a de nossas avós se não fosse a solidão que toma os dias da personagem, a diretora Marília Nogueira captura o sentimento de enclausuramento: Ângela existe entre as portas fechadas e os diagnósticos pendurados.

Quando a vizinha Sueli (Glaucia Vandeveld) começa uma aproximação, as cortinas abertas dão um respiro à sala, o afeto de uma amizade passa a iluminar não só os cômodos da casa, mas Ângela, personagem e curta-metragem. Em contato com outras mulheres da sua idade, a tímida e sensível protagonista derruba suas paredes e irradia o prazer de estar em companhia. Ângela mostra que se cuidar ao envelhecer vai além do horário marcado no médico. – Vitória Lopes Gomez


 Cena do curta Obreiras. Fotografia em paisagem. Imagem de um canteiro de obras escuro. A única fonte de luz é uma porta, que abre para um espaço claro, e uma lâmpada acesa no escuro. Uma das protagonistas anda pela porta, segurando um balde.
Lugar de mulher é na obra! (Foto: Beiras D’Água)

Obreiras (Idem, Ana França, Isadora Fachardo e Gabriela Albuquerque, Brasil, 2019)

Obreiras acompanha a rotina diária de quatro pedreiras residentes da região metropolitana de Belo Horizonte: Poliana, Cenir, Adriana e Rosângela. As quatro, ao mesmo tempo que lidam com os estigmas do canteiro de obras – ambiente de trabalho ainda extremamente machista –, relatam a relação delas com a família, a maternidade, estudos e sonhos. Integrando um conjunto de grupos femininos pioneiros da capacitação civil para a construção independente de residências por mulheres, elas “constroem, além de prédios e casas, novas formas de serem mulheres.” – Ayra Mori


Cena do documentário Enraizadas. A imagem apresenta uma rua lateral, focando nas casas, uma laranja, outra branca e uma terceira, verde. Em frente à casa laranja, sentada no degrau à porta da residência está uma mulher negra trançando o cabelo de outra mulher negra portadora de vitiligo. A trancista está vestindo uma blusa, de manga média, com estampas claras em ocre, branco e dourado e uma bermuda branca. A moça que está com o cabelo sendo trançado está com uma blusa regata estampada em ocre e branco com tons mais escuros e uma calça em tom marrom com aspecto jeans.
Enraizadas demonstra toda a importância histórica, social e cultural da trança nagô (Foto: Tarrafa Produtora)

Enraizadas (Idem, Juliana Nascimento e Gabriela Roza, Brasil, 2019)

O curta documental Enraizadas discute a importância da trança nagô e seus aspectos afetivos, sociais e culturais. Através de relatos de quatro mulheres negras, investiga-se a essência dos seus usos, passando por aspectos pessoais, de empoderamento, de suas origens, do sentimento de pertencimento e do entendimento histórico da mesma ligado à afrodiáspora. A arte de trançar é abordada em todos os seus aspectos, aprofundando seu significado, apresentando a mesma como uma forma de subsistência às mulheres, permitindo que assim possam ter meios financeiros de criarem seus filhos. Também é utilizada como instrumento de reflexão e de aproximação familiar, e até mesmo de explicação etnomatemática. – Ma Ferreira


Cena do curta O véu de Amani. Duas crianças estão na beirada de um rio, com mata nativa e uma estrada de terra atrás. A mais distante da câmera está sentada com as penas dobradas e os braços sob os joelhos, olhando para frente. Ela usa uma calça branca rosada e um véu azul claro comprido. A outra garota está sentada ao seu lado, mais próxima da câmera, com as pernas esticadas e os braços do lado do corpo. Sua perna esquerda está levemente levantada. Ela usa um biquíni tie-dye em tons de branco, azul e rosa. Ela tem cabelos curtos castanhos e está olhando para a primeira garota.
O curta-metragem recebeu um Kikito, o troféu solar, de Melhor Roteiro de curta-metragem no Festival de Gramado em 2019 (Foto: Inspira Conteúdo Audiovisual)

O véu de Amani (Idem, Renata Diniz, Brasil, 2019)

Amani é uma garota do Paquistão que mora no Brasil e que um dia recebe um biquíni de presente da sua amiga. Apesar de uma sinopse extremamente convidativa, O véu da Amani falha na questão de desenvolvimento da narrativa. As expectativas eram altas para o desenrolar da história, ainda mais depois do tópico refugiado versus fugitivo

A princípio, tudo caminha lentamente, sem grandes saltos e sem grandes curvas. Porém, a perspectiva de uma lição de moral não acontece, ou pelo menos, não explicitamente. Quem possui o conhecimento sobre o assunto consegue captar a mensagem a passos de tartaruga. Dessa forma, faltou ao curta, também disponível no YouTube, ter um pouco de toque e de um olhar mais apurado, ainda que as intenções de Diniz tenham sido as melhores possíveis. – Júlia Paes de Arruda 


Carne está qualificado para concorrer ao Oscar 2021 na categoria de curta-metragem documental (Foto: Freak)

Carne (Idem, Camila Kater, Brasil, 2019)

Crua, mal passada, ao ponto, passada e bem passada são pontos de consumo da carne, mas, Camila Kater vai além, traçando paralelos com corpos femininos que vão desde a infância até a velhice. Guiadas por animações, quase sempre com muitos tons de vermelho presente, cinco mulheres relatam as fases da vida. A escola, a puberdade, o corpo negro hipersexualizado – com o agravante de que na pirâmide da tolerância, a negra transexual é a última – menopausa, ter 79 anos anos e se sentir bem após uma longa luta contra o tempo para se sentir dona do próprio corpo. Independente de questões externas, a mulher cresce sofrendo abuso. – Ana Júlia Trevisan


Imagem do documentário Meia lua Falciforme. No centro da imagem está apenas uma meia lua crescente colorida em vermelho e todo o fundo é preto.
A meia lua e toda a dor constante que ela carrega (Foto: Haver Filmes)

Meia lua Falciforme (Idem, Débora Evelyn Olimpio e Denise Kelm, Brasil, 2019)

O documentário Meia lua Falciforme aborda perfeitamente um pouco sobre a doença falciforme, uma das doenças hereditárias mais comuns no Brasil. Em pouco mais de 20 minutos, a doença é retratada não só pela visão médica e científica, mas também pelo ponto de vista de quem passa pelas dificuldades na pele, pessoas simples e comuns que vivem com a dor diária. 

A forma como os pacientes lidam com a dor e seus desafios e o modo como a doença foi ignorada por tanto tempo apenas por ser conhecida como uma “doença de negros” são alguns dos pontos importantes do documentário. Outro ponto alto é o poema Exercício dos dias de Alessandra Reis, o qual abre o projeto falando sobre a dor e o fecha com chave de ouro trabalhando a ideia de resistência à doença falciforme. – Gabrielli Natividade da Silva


Cena do curta-metragem A Felicidade Delas. Na imagem, ao fundo, vemos uma parede com grafites, mal-iluminada, e a sombra da protagonista projetada nela. À direita, no primeiro plano da imagem, vemos uma das protagonistas, um mulher negra, com cabelos pretos e cacheados, vestindo uma blusa azul, sendo iluminada por uma fonte de luz que vem da sua direita.
A Felicidade Delas é dirigido e roteirizado por Carol Rodrigues, protagonizado por Ivy de Souza e Tamirys Ohanna, e a direção de fotografia é de Julia Zakia (Foto: Manjericão Filmes)

A Felicidade Delas (Idem, Carol Rodrigues, Brasil, 2019)

A quebra de expectativas faz A Felicidade Delas. Sem nomes e sem palavras, as duas protagonistas se encontram após uma perseguição policial em uma manifestação na Marcha da Mulher. No caos do momento, potencializado pela fotografia sensorial e imersiva, a proximidade no espaço, os toques, a tensão, a adrenalina, o barulho… Tudo leva as duas a se permitirem amadurecer o desejo uma pela outra. E quando o desejo transborda, a enchente vem. – Vitória Lopes Gomez


Cena do curta Ela viu aranhas, dirigido por Larissa Muniz. Fotografia em paisagem. A imagem é escura com tom arroxeado e sombras contrastantes. Nela vemos cerca de oito mulheres próximas uma das outras, deitadas, sentadas ou agachadas. Elas vestem roupas de cores primárias e olham para direções diversas.
O curta experimental-feminista foi a estreia instigante da filmografia de Larissa Muniz, exibido na 24ª Edição da Mostra de Cinema de Tiradentes (Foto: Larissa Muniz)

Ela viu aranhas (Idem, Larissa Muniz, Brasil, 2020)

Sob a chuva, em um pequeno apartamento, várias mulheres se cruzam, falam ao telefone, fumam e cantam. Ela viu aranhas é um curta experimental que brinca criativamente com a maneira de contar histórias. Conduzindo a narrativa quase como um labirinto, a diretora Larissa Muniz põe em cena mulheres de existências diversas, que interagem casualmente entre si. Assim, imersos em um sonho lúcido, somos expostos paradoxalmente ao surreal e simultaneamente ao ordinário. – Ayra Mori


Cena do curta Minha Raiz. Nela há uma mulher negra ao centro, ela está sentada se maquiando em frente a um espelho redondo. O espelho está sob uma mesa azul, nela se encontram alguns itens de maquiagem também. A moça está em uma avenida movimentada,ao fundo se encontram pessoas esperando para atravessar a rua e carros, motos e ônibus passando.
Minha Raiz demonstra que o preconceito racial se expressa primeiro sobre o cabelo (Foto: Labibe Araújo)

Minha Raiz (Idem, Labibe Araújo, Brasil, 2017)

O curta documental e performático Minha Raiz aponta um dos primeiros sinais do racismo: o olhar sobre os cabelos. Mesclando relatos com uma performance em uma movimentada avenida, discute como o preconceito age sobre a autoestima da mulher preta. O resgate social da questão é muito bem explorado, mostrando como as cenas cotidianas podem ser reveladoras das violências. Qual mulher negra não sofreu comentários sobre o tamanho, formato de seu cabelo? Ou mesmo reconhece o cheiro de uma prancha quente de alisamento? É por meio desta exploração das opressões vividas que as falas ressignificam a importância de assumir seu crespo, a sua herança africana e se amar. – Ma Ferreira


Cena do curta-metragem Corpos Estrangeiros. A câmera foca no abdômen de uma mulher branca, próxima a virilha. Suas mãos possuem unhas curtas e seus dedos passam sobre a cicatriz da cesárea. Ela usa um anel de ouro no dedo anelar esquerdo e veste uma camiseta branca e uma calcinha bege.
Los cuerpos ajenos venceu a 11ª edição do Festival Latino-Americano de Artes Audiovisuais de Universidades Públicas na categoria Melhor Curta-Metragem de competência nacional (Foto: Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematográfica/Cine Argentino/Jungla Cine)

Corpos estrangeiros (Los cuerpos ajenos, Samanta Bianucci, Argentina, 2019)

Em 2021, o curta-metragem Los cuerpos ajenos é um sinal de vitória. Na trama, a ginecologista Valeria precisa lidar com o fato de uma paciente não querer se adaptar, como a própria personagem diz, a uma gravidez. Sendo a Argentina, na época, um dos países adeptos a proibição do aborto, Valeria vive um dilema de ir em frente ou não com a ilegalidade ao mesmo tempo que também enfrenta problemas morais em relação ao seu próprio corpo. 

É irônico ver como o título brinca dentro da narrativa quanto fora dela. Na obra, a diretora Samanta Bianucci liga o termo estrangeiro a algo fora do próprio corpo, criando um questionamento: até que ponto o que é válido para mim, é válido para o outro? Três anos depois de lançamento do curta, estrangeiro tem referência geográfica, relacionando-se com os países da América do Sul, já que nosso vizinho de disputas de futebol foi o segundo país a legalizar o aborto. Nesse caso, a situação vivida pelas personagens na trama é o que os corpos de mulheres estrangeiras passam em seus respectivos países. Ao longo de seus 12 minutos, Los cuerpos ajenos traz essas indagações de forma implícita. #QueSeaLey. É assim que se finaliza a obra de Samanta Bianucci, de maneira forte e poderosa. – Júlia Paes de Arruda


Cena do curta Acende a luz. Nela estão uma mulher e um homem de mais de 60 anos abraçado e nus. A mulher sorri. A imagem está em branco e preto.
Acende a luz mostra como a sexualidade depois dos 60 anos não deve ser mais um tabu (Foto: André Luiz de Luiz)

Acende a luz (Idem, Paula Sacchetta, Brasil, 2020)

Neste curta, a cineasta Paula Sacchetta acompanha a escritora Isabel Dias em sua redescoberta do corpo e da sexualidade. A trilha sonora remete aos clássicos filmes da década de 1950 e imagens que confrontam e debatem o que se espera socialmente e sexualmente de mulheres de mais de 60 anos. A escolha da personagem para narrar e discutir essa questão é extremamente assertiva, uma vez que a mesma carrega em sua trajetória a redescoberta sobre si, o prazer na terceira idade e a desconstrução da imagem da vovó. – Ma Ferreira


Médias e longas-metragens

Cena do documentário Filhos da Puta. Na imagem há um jovem vestindo uma blusa verde clara e uma calça jeans clara e rasgada. Ele está sentado no chão, atrás dele uma parede azul escura e ao seu lado uma porta branca, de ferro e vidro, está aberta.
Discutir preconceitos e as relações maternas é o que propõe Filhos da Puta (Foto: Coletivo REBU)

Filhos da Puta (Idem, Santuzza Alves de Souza, Brasil, 2019)

A narrativa deste curta documental, produzido pelo Coletivo REBU, parte da premissa do que é ser um filho da puta. Brincando com o xingamento popular, o filme fala com os filhos de mulheres que foram trabalhadoras sexuais, emergindo discussões profundas das falas dessas personagens reais. O entendimento do trabalho de suas mães, o tabu acerca destas trabalhadoras, as visões sociais e familiares que permeiam essa discussão, as relações maternais e o que estas mulheres fizeram com suas vidas é o alvo de reflexão aqui. A direção de Santuzza Alves de Souza levanta ainda importantes debates sobre preconceito, ativismo e sobre o real significado de família. Ma Ferreira


Cena do filme Terra das donzelas. A cena mostra duas escadas pretas e, entre elas, estão alguns objetos, como mesas e vasos, protegidos por vidro.
Contando com a participação de peso de Dilma Rousseff, Torre das donzelas venceu o prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio, o prêmio do júri no Festival de Brasília, e o Prêmio Petrobras na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, todos em 2018 (Foto: Modo Operante Produções)

Torre das donzelas (Idem, Susanna Lira, Brasil, 2018)

Se a repressão da Ditadura Militar Brasileira já era terrível, imagine-a associada à misoginia. É neste cenário insuportável que Torre das donzelas constrói a sua história. Sem abrir as feridas em cicatrização de suas depoentes e sem criar dores em seus espectadores, o documentário é muito bem definido em sua proposta: demonstrar o que homens empoderados podem fazer com as mulheres que não aceitam submeter-se a eles.

O filme de Susanna Lira nasce do relato de algumas das mulheres perseguidas, torturadas e presas pelo regime que desgovernou o Brasil entre 1964 e 1985. Centenas delas passaram pelo Presídio Tiradentes, em São Paulo, centro de tortura que ficou conhecido como Torre das donzelas. O lugar foi demolido em 1972, mas as memórias das que ali viveram os piores dias de suas vidas resistem a toda tentativa de destruição. 

Então, numa tentativa de criar uma fisicalidade para que essas mulheres enfrentam esses traumas, o filme cria o seu principal artifício reconstruindo aquele lugar. Dentre os depoimentos das que rejeitavam o regime na época – inclusive o da ex-presidenta Dilma Rousseff – e os testemunhos violentos, o que se destaca é a capacidade que aquelas mulheres tinham de resistir. Quebrando qualquer expectativa idealista, elas relatam que a força vinha do ódio. E assim, Torre das donzelas traz suas mensagens de 40 anos atrás para os dias de hoje. – Raquel Dutra


Cena do documentário dia de folga. Nela está uma mulher branca de cabelos loiros e blusa florida. Ela está de pé na frente de uma tábua, passando uma camisa branca. No fundo há um varal de chão com roupas brancas estendidas, um muro onde algumas plantas estão apoiadas e um prédio de parede clara.
“Calma que não dá pra cansar ainda não” (Foto: Paula Huven)

Dia de Folga (Idem, Patrícia Antunes, Brasil, 2017)

Ser dona de casa já é, por si só, um trabalho dos mais difíceis. Unido a atividades extras e um emprego, se torna um conjunto quase impossível de se tolerar, mas que segue sendo a realidade de muitas mulheres. Em Dia de Folga, a diretora Patrícia Antunes nos leva para acompanhar a rotina cansativa de mães mineiras.

Com a fotografia simples de Paula Huven, assistir o documentário é como ter uma conversa sincera com essas mulheres. Sem precisar de muito, ele leva o telespectador a refletir sobre a jornada dupla que elas encaram todo dia e a divisão injusta de atividades domésticas – isso é, quando sequer há uma divisão. Lançado em outubro de 2017, as questões abordadas na obra continuam dolorosamente atuais. – Mariana Chagas


Fotografia em paisagem, e em preto e branco, de mulheres marchando nas ruas de Santiago, capital do Chile, segurando uma faixa branca com os dizeres “Mujeres por la vida, junto a lucha de los trabajadores” (Mulheres pela vida, juntas com a luta dos trabalhadores). Atrás, percebe-se edifícios e um poste de luz de arquitetura europeia, e as mulheres vestem longos casacos - o que pressupõe que naquele dia fazia frio.
As mulheres foram protagonistas na derrocada da ditadura chilena (Foto: CCDocumental)

Hoje e não amanhã (Hoy y no mañana, Josefina Morandé, Chile, 2018)

A obra documental acompanha a emocionante história das ex-integrantes do movimento de resistência chileno Mulheres pela vida, criado em 1983 em meio à sanguinária ditadura de Augusto Pinochet. Sob o lema “A liberdade tem nome de mulher“, somos convidados a revisitar as formas de protesto curiosas que driblaram a repressão e a censura com, diríamos, um quê de criatividade: desde torcidas organizadas anti-Pinochet em estádios de futebol, até bolas de brinquedo grifadas com o nome do ditador, espalhadas pelas ruas de Santiago para que as pessoas pudessem chutá-las. 

A importância do movimento se deu pela capacidade de mobilização de mulheres das mais diferentes ideologias, em um momento no qual a oposição, de maioria masculina, estava completamente fragmentada. Foi um ponto de inflexão que permitiu que elas ocupassem espaços de poder que, historicamente, eram destinados aos homens – seja por meio da ocupação das ruas e das universidades, seja por meio da criação artística e intelectual. 

Sob uma fotografia crua e intimista, o longa usa de recursos jornalísticos – como a entrevista e a narração em voice over – e da linguagem visual – através de registros históricos e animações – para reconstruir o passado de um país que por muito tempo colocou panos quentes sob as suas feridas. Se hoje o Chile dispõe da primeira Constituição do mundo que garante paridade de gênero, há de agradecer às corajosas militantes do Mulheres pela vida, que plantaram para sempre o espírito de luta e revolução que tanto nos falta no Brasil. – Gabriela Reimberg


Cena do filme Eu, um outro. Com um enquadramento lateral, Raul Capistrano está deitado numa cadeira de barbeiro. Ele é um homem de cabelos curtos pretos acinzentados, barba e bigode compridos e olhos castanhos escuros. Ao seu lado, um pouco desfocado, está a parte superior até os ombros de um homem de camisa preta. Ele é branco e sua mão direita ajeita o bigode de Raul.
O longa-metragem foi um dos selecionados na 27ª edição do Festival Mix Brasil, em 2019, na categoria Competitiva Brasil – Longas (Foto: Oficina de Criação)

Eu, um outro (Idem, Silvia Godinho, Brasil, 2019)

A princípio, Eu, um outro começa de modo usual, mostrando a realidade cotidiana de três pessoas: Luca Scarpelli, Raul Capistrano e Thalles Rocha. Demora um certo tempo para o longa-metragem citar seu principal objetivo, mas isso não é uma crítica. De forma totalmente diferente das tramas de identidade de gênero, o filme de Sílvia Godinho foca na questão de afeto, construindo uma atmosfera familiar genuína – sons ambiente, legendas em certos diálogos, algumas imagens desfocalizadas, como se tratasse de uma filmagem caseira de um observador inerente ao cenário.  

É dessa forma que a diretora brinca com o título, em que podemos enxergar nós mesmos nos personagens e criar empatia. A denúncia de gigantescas burocracias em cartórios e a militância por relações mais naturais e espontâneas acabam sendo figurantes, mostradas de acordo com a vontade dos protagonistas e sem referi-las de maneira forçada. A própria sinopse já dá esse indicativo ao falar que os três têm a urgência de viver uma vida que acaba de começar. Com um final inconclusivo, a produção de Godinho termina de maneira genérica, deixando o espectador aguçado para uma continuação – ainda que isso não seja possível. – Júlia Paes de Arruda 


 Cena do documentário Meu Corpo é Mais. Na imagem temos uma mulher branca, de cabelos longos e claros, despindo um roupão de seda. Ela está de costas. À sua frente está uma janela, uma cômoda e uma estante, em ambas estão algumas esculturas de bustos e outros objetos de cerâmica.
Em Meu Copo é Mais, mulheres poderosas relatam suas experiências de ódio, reconhecimento e amor ao próprio corpo (Foto: Jorge Bernardo)

Meu Corpo é Mais (Idem, Susanna Lira, Brasil, 2018)

O documentário, roteirizado e dirigido por Susanna Lira, discute o impacto e a ressignificação da gordofobia, por meio do retrato da vida e de falas de mulheres que utilizam seu corpo como luta. A escolha das entrevistas conversa diretamente com as questões político-filosóficas apontadas a respeito da questão. Problematizando o quanto o corpo serve de instrumento de controle e opressão femininas na sociedade, sendo frutos do machismo e alimentados pelos padrões mercadológicos capitalistas. É na visão do outro que se encontram as permissões para ser o que é, e é esse olhar que a cineasta propõe que seja quebrado.

O belo é apenas uma construção coletiva. O corpo magro era feio somente quando a maior parte da população não tinha fácil acesso a comida. Com os produtos industrializados mais acessíveis, o contrário passou a ser odiado. Esse ódio alimenta indústrias de cirurgias, produtos de emagrecimento, farmacêuticas, academias e profissionais de saúde que ainda olham a pessoa gorda como alguém doente. É ele que permite com que pessoas sejam intolerantes a corpos gordos e que homens não assumam amar esses corpos. Mas os exemplos de vivência com estas violências, com sua superação e ressignificação é o que faz das entrevistas serem inspiração.

A falta de acesso à locais, sendo eles lugares físicos ou de ocupação de trabalho (indústria da moda e cultural) é uma pauta também apresentada aqui. A cineasta narra de maneira excepcional como é viver em um corpo gordo, como o caminho de posicionamento sobre si mesma e auto aceitação é difícil, porém possível. Exemplos como o da MC Carol, que durante a infância sofreu com vários traumas por preconceitos acerca de seu peso, e atualmente expressa seu olhar sobre seu corpo por meio de sua Arte. Essa problemática foi apresentada em suas várias perspectivas neste documentário sensível, emocionante e combativo. – Ma Ferreira

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