Elis, seus amigos, seus filhos, seus discos, seus livros e nada mais

Capa do álbum Elis Remasterizado. A imagem mostra a cantora, mulher branca de cabelos costanhos curtos, sentada em uma cadeira azul com os braços apoiados em seu encosto. Ela usa um vestido branco e está em um gramado. A foto é emoldurada por uma moldura azul escura no qual vemos o nome do dosco em amarelo no canto superior direito.
Capa do álbum Elis (Remastered), conhecido como “o álbum da cadeira” (Foto: Reprodução)

Guilherme Teixeira

No dia 17 de março, a nossa saudosa Elis Regina (1945-1982) completaria 76 anos. Em homenagem, seu primogênito João Marcelo Bôscoli – fruto de seu primeiro casamento, com Ronaldo Bôscoli –, em parceria com a Universal Music do Brasil, nos presenteou com a remasterização e nova mixagem do álbum Elis (1972). Disco produzido por Roberto Menescal que marcou o início da parceria musical entre a cantora e César Camargo Mariano (a quem posteriormente se tornaria seu marido e pai de seus outros dois filhos), e mostrou a verdadeira e mais humana face dela.

A subjetividade que o disco traz mostra que, além do grande poder de escolha de repertório que há nele, seus grandes amigos como Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco, Aldir Blanc, Belchior, Fagner (este chegou até a morar com Elis e Bôscoli) e os demais compositores, a conheciam muito bem. Em termos de álbuns, creio que esse seja o maior de toda a carreira dela, sendo nele cantado tudo o que estava guardado dentro de Elis, desde a melancolia dos versos de Atrás Da Porta até a descontração de Bala com Bala. Essa, ganhou na nova edição do álbum, logo no início, uma deliciosa risada dessa pimenta um tanto quanto doce, novidade para os ouvintes.

Logo após, temos Nada Será Como Antes, sucesso que marcou o movimento Clube da Esquina e que, posteriormente, deu nome a sua biografia, escrita por Julio Maria em 2015. Há um fato curioso sobre essa música que confunde muito aqueles que a ouvem. Em sua versão, o compositor Milton Nascimento canta “Alvoroço em meu coração” no terceiro verso da segunda estrofe da letra, diferentemente de Elis que opta por “Sei que nada será como está”. Não se sabe ao certo o porquê dessa variação na letra, mas uma coisa é fato: ambas as versões são memoráveis e merecem a mesma e enorme valorização e apreço. 

A imagem, de ponta cabeça, mostra Elis Regina, mulher branca de cabelos castanhos curtos, com uma blusa clara com algumas flores. Ela está sentada em uma cadeira e sorri. A foto é em preto e branco.
Fotografia responsável pela capa do livro Elis Regina: Nada Será Como Antes (Foto: Reprodução)

Além de trazer músicas lendárias como as citadas, o disco também apresenta canções com significados pessoais na vida da cantora, como Vida de Bailarina. “Eu fiz uma homenagem à Ângela Maria cantando uma das músicas que mais gostava de ouvir quando eu era só ouvinte, a música se chama Vida de Bailarina”, disse Elis Regina, que não escondia sua admiração pela rainha do rádio. Outra música muito marcante é Casa No Campo, um sonho de anos que estava sendo realizado durante as gravações do disco. A emoção era tão grande que não coube em seus 1,53 metros e explodiu em uma preciosa gravação onde se emociona ao cantar a composição de Zé Rodrix e Tavito, ambos já falecidos.        

Assim como João, os outros dois filhos de Elis, Pedro e Maria Rita, permanecem orgulhosamente erguendo a bandeira de sua mãe e trazendo ela cada vez mais para o mundo atual. Tarefa feita através de suas armas mais potentes que só a genética explica: a voz. Sua extensão vocal era tão grande que não coube apenas em si e transpassou para seus descendentes com vasta competência. 

O casal de caçulas possui a grande missão de manter a herança materna na música sem necessariamente copiar a mãe (embora seja impossível) e nem por isso, se distanciar totalmente da proposta apresentada por Elis. Principalmente pelo fato de que os fãs ainda têm uma memória muito fresca da pimentinha e cobram severamente, muitas vezes até de forma egoísta, que seus pósteros sempre a mantenham presente para matar a saudade do público, ignorando o fato de que a maior saudade é deles.

No lado direiro vemos Pedro Mariano, homem brancio de cabelos castanhos curtos, usando um terno preto, assim como sua gravata, e blusa branca. Ele está em frente a um fundo vermelho e segura um microfone. No lado direito vemos Maria Rita, mulher branca de cabelos castanhos compridos, com um vestido branco e segurando um microfone em frente a um fundo azul.
Pedro Mariano e Maria Rita em seus projetos em homenagem à memória e a vida de sua mãe (Foto: Reprodução)

Além das remasterizações feitas por seu primogênito, a pimentinha também se mostrou presente em discos gravados ao vivo, como Elis por Eles (2014) e Redescobrir (2012), por seus filhos Pedro Mariano e Maria Rita, respectivamente. Ambos os discos apresentam exclusivamente músicas do repertório da mãe. Contudo, há uma significativa diferença entre eles. No primeiro álbum, Pedro contou com a ajuda de outros artistas como Jair Rodrigues, Lenine, Emílio Santiago, Cauby Peixoto, entre diversas vozes masculinas para completar o projeto, o que foi um tiro no pé de toda a luta de Elis pela inclusão feminina na arte e todo seu empoderamento. Enquanto Maria Rita, que sempre foi alvo de comparações com sua mãe pelo fato de, além de cantora, ser mulher, encarou esse desafio sozinha.

Cantar Elis Regina sem cantar ao menos uma única música desse álbum, que carrega toda a imensidão dentro de si, é impossível. Vida de Bailarina (Americo Seixas/Dorival Silva) e Casa No Campo (Tavito/Zé Rodrix) são algumas das músicas do disco que estiveram presentes no repertório de Pedro e Maria durante suas homenagens à mãe. A primeira delas aconteceu em 2012 no citado Redescobrir. Em um dos maiores discos dos últimos tempos, Maria Rita trouxe uma emblemática apresentação ao cantar a composição de Americo Seixas e Dorival Silva (Chocolate, como era conhecido popularmente), logo no início do show. Revisitando não só a música, mas também a era do rádio.

A cantora ousou ao impor a voz num tom mais grave com vibratos e agudos, fazendo referência a forma melodramática radialista. Em entrevista a Universal Music do Brasil, a filha da pimentinha afirmou que Vida de Bailarina retrata, na verdade, a vida de todos os artistas e ainda se definiu um pouco bailarina, que por vezes cantava para viver e vivia para cantar. Pedro por sua vez, voltou a homenagear sua mãe no dia 17 de março de 2018, dia em que Elis completaria 73 anos. Desta vez, o filho do meio da cantora gravou um dueto de forma póstuma onde, junto dela, entoava Casa no Campo, um dos maiores sucessos do disco. Uma proposta ousada e ainda muito pouco explorada na música brasileira que gerou ótimos resultados.

O disco ainda traz uma versão mais longa do clássico Águas de Março onde, sozinha, Elis brinca deliciosamente com a letra da música no final e arranca um sorriso de quem a ouve. Mucuripe e Cais também contribuem para a formação do álbum com letras majestosas escritas brilhantemente pelos nordestinos Fagner e Belchior e pela nobre dupla Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Apesar de não parecer, as duas músicas apresentam as mesmas ideias: a vida, a solidão e o ir e vir. Questões que sempre estiveram presentes na vida de Elis, o que soma mais um ponto na afirmação de que este se trata do álbum que mais explora o lado pessoal da gaúchinha. 

Também completa o álbum as músicas 20 Anos Blue (responsável por iniciar o disco) e Olhos Abertos. Ambas possuem versos que poderiam facilmente estar falando da atual pandemia em que vivemos, como “Ontem de manhã quando acordei/olhei a vida e me espantei” e “Eu preciso encontrar as pessoas/ficar de mãos dadas com elas”, respectivamente. Mais adiante, temos Me Deixa Em Paz que, em seus versos, se aproxima da situação atual e do cansaço das pessoas referente ao vírus e ao isolamento, como se ela estivesse falando com a covid-19.

Me Deixa Em Paz:

Paz

Eu não aguento mais

Me deixa em paz

Sai de mim

Me deixa em paz…

Composição: Ivan Lins / Ronaldo Monteiro de Souza

Somando a brilhante escolha de repertório, atemporalidade, força de interpretação, verdade e a potência vocal entregue em 1972, e tendo como confirmação a remasterização 49 anos depois, digo e repito com clareza que este é o mais autêntico álbum de toda sua carreira, pois nele se enxerga tudo o que havia dentro de Elis e tudo o que ela era. Romântica, amarga, menina, mulher, simples, extravagante… simplesmente, Elis! Ela era a adulta com mais de vinte anos que esquecia quanto custava dar a outra face e que sabia que nada seria como antes. 

Que tinha suas mágoas levadas para o fundo do mar nas velas do Mucuripe, que se mantinha de olhos abertos e que havia no fundo do peito, um sonho desfeito ou a desgraça de um amor onde adorava seus amores pelo avesso, quem sabe talvez no mês de março, prestes a fechar o verão. Afinal, ela inventava o cais, a lua nova e até mesmo uma paz. Ela só queria paz. Assim como uma casa no campo onde ela pudesse compor muitos rocks rurais e ao fim do dia, escutar uma “boa noite, amor”

Definir Elis Regina Carvalho Costa, essa gaúcha gigante de um metro e meio, em uma só palavra é uma missão impossível, nem ela mesma conseguiria. Entretanto, em 1972, o mais íntimo e verdadeiro de si, nos foi dado em forma de música. E hoje, passados mais de 40 anos, nós podemos entendê-la e conhecê-la ainda mais através desse primor de remasterização. Um acalanto para a negatividade dos dias atuais, mata a nossa tão grande saudade da cantora no modo mais autêntico possível. 

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