Inesgotáveis são os dramas que conduzem as seis décadas de Tangos

Capa do álbum Tangos. Fotografia quadrada, com fundo bege. No canto superior esquerdo, vemos o brasão do selo Imperial, formado pelo título Imperial, um fundo preto, um pássaro e uma coroa. No lado direito da parte superior, lemos Dalva de Oliveira em letras azuis. Abaixo, lemos Tangos em letras cor-de-rosa. Ainda mais embaixo, lemos Francisco Canaro em letras pretas. A letra G, de Tangos, tem uma seta voltada para a esquerda, apontando para o nome de Canaro. Mais ou menos no centro, vemos uma fotografia da cantora Dalva de Oliveira. Trata-se de um retrato oval, com uma espécie de filtro cor-de-laranja. Dalva tem cabelos curtos, sorri e está com a mão esquerda próxima do pescoço. Ao lado de seu retrato, lemos, em letras pretas, a lista de faixas pertencentes ao álbum Tangos.
Assim como o Jubileu de Prata, Tangos completa 60 anos em 2021 (Foto: EMI Music Brasil)

Eduardo Rota Hilário

Se um segmento popular da Música brasileira é rotulado em consenso, hoje em dia, como sofrência, isso é sinal de que o público mais novo desconhece totalmente os tangos outrora gravados – e dramatizados – por Dalva de Oliveira. Brincadeiras à parte, em 1961, mesmo ano em que lançaria seu Jubileu de Prata, a grande estrela do rádio investigava magistralmente alguns dramas humanos, principalmente os passionais, reunindo-os de forma bastante coesa em outro daqueles seus álbuns mais memoráveis de toda a carreira: o quase teatral Tangos. Esta abertura, por sinal, pode até parecer exagerada, mas uma única reprodução do mencionado LP consegue comprovar nítida e facilmente o contrário.      

Sendo mais um dos lançamentos da gravadora Odeon, Tangos é, antes de tudo, uma reedição do disco Os Tangos Mais Famosos na Voz de Dalva de Oliveira, de 1957. Ultrapassando, no entanto, as oito faixas gravadas anteriormente com o músico uruguaio Francisco Canaro, Dalva agora incluía em seu repertório mais quatro canções estrangeiras que, adaptadas para o Português, se transformavam, mesmo que minimamente, em obras com perceptíveis traços brasileiros. Na companhia da orquestra de Oswaldo Borba – e, em um caso específico, do próprio Canaro, segundo consta a contracapa do vinil -, nasciam, dessa forma, O Dia Que Me Queiras, La Copa Del Olvido, Cristal (Christal) e Donde Estas Corazon, que em nada destoavam do material mais antigo e reaproveitado.

Registro de Dalva de Oliveira com Francisco Canaro. Fotografia verticalmente retangular, em preto e branco. Ao fundo, observamos um estúdio. No lado esquerdo da imagem, um homem de terno toca um violoncelo. Entre o meio e o lado direito, Dalva de Oliveira canta diante de um microfone, enquanto o músico Francisco Canaro a observa. Eles vestem roupas formais e estão concentrados no trabalho. Sobre as mãos dos dois, vemos a marca d’água do perfil Dalva de Oliveira FC. Na parte inferior, sobre uma faixa preta, lemos “Dalva em flagrante preciso, soltando a voz, com supervisão de Francisco Canaro (direita)”.
Sem o perfil Dalva de Oliveira FC, algumas raridades dificilmente chegariam ao grande público (Foto: Dalva de Oliveira FC)

Foi, inclusive, com a mesma sorte ou sensibilidade do Jubileu de 1961 que Tangos atingiu seus acertos desde o princípio, dando boa sustentação para uma jornada calorosa e intensa. Reservando à idealizada O Dia Que Me Queiras (Gardel/Le Pera/vers.: Haroldo Barbosa) o posto de faixa de abertura, a Rainha da Voz tornava extremamente grandioso aquele primeiro passo poético. “A noite que me queiras/Do azul do firmamento/Estrelas radiosas/Virão nos ver passar”, prometia a letra apaixonada. Não bastasse a excelência da composição, Dalva ainda alcançava, nesse primeiro contato, emoções e nuances que são, talvez, incomparáveis em toda a linha do tempo do mercado fonográfico nacional.    

Mas as mágoas de amor eram inevitáveis, e La Copa Del Olvido (E. Delfino/Vacarezza/vers.: Tito Climent) chega afogando as tristezas em muito vinho, tentando, também, evitar um assassinato movido a ciúme doentio, assim como outros tipos de vingança extrema. Igualmente dentro de uma linha trágica, Sus Ojos Se Cerraron (Gardel/Le Pera/vers.: Ghiaroni) acompanha, por sua vez, o drama das temidas últimas despedidas, colocando em ênfase o sofrimento de quem, não sem inconformismo, diz adeus a uma grande paixão: “Por que lutamos/Se a morte foi mais forte?/Por que ainda vivo/Se tu eras minha vida?”. É até curioso pensar que, bem antes da existência do Sertanejo Universitário, uma cantora brasileira já amava e sofria na mesma intensidade, compartilhando, através de suas músicas, os sentimentos mais profundos e universais.

 Capa do álbum Mulher. Fotografia quadrada, com fundo aparentemente preto. No canto superior esquerdo, lemos Hebe em letras formadas por estrelas, emitindo uma forte luz azul e provocando uma chuva de astros. Abaixo, lemos Mulher em letras cursivas brancas. Hebe Camargo ocupa principalmente o lado direito da foto. Ela é uma mulher loira, idosa, de maquiagem e joias, esmalte preto, mãos cruzadas sobre o peito e veste um vestido aveludado possivelmente azul ou roxo.
No álbum Mulher, de 2010, Hebe Camargo gravou uma versão da música O Dia Que Me Queiras, com participação de Daniel Boaventura (Foto: Sony Music Entertainment Brasil)

Em continuidade, Yira… Yira (E. S. Discepolo/vers.: Ghiaroni) assume um tom bastante pessimista – ou seria realista? – em relação às indiferenças do mundo, concluindo que não se pode esperar o mínimo auxílio nesta trajetória inflexível e brutal que é a vida. Já Confesion (E. S. Discepolo/L. C. Amadori/vers.: Lourival Faissal) expõe uma das mais interessantes narrativas destes Tangos, jogando luz sobre um indivíduo que, por amor incondicional e questionável espírito heroico, finge ser indiferente e resolve se afastar da pessoa amada. Para finalizar, então, o Lado A do vinil, Tristeza Marina (Horácio Sanguinetti/Roberto Flores/José Dames/vers.: Haroldo Barbosa) resgata as melancolias do mar, dando forças a um tema não muito raro no repertório da Estrela Dalva.  

Virando o disco, Cristal (Christal) [Marianito Mores/J. M. Contursi/vers.: Haroldo Barbosa] fisga os corações mais dramáticos com seus versos exagerados e sonoridade marcante. “Tenho o coração feito em pedaços/Trago esfarrapada a alma inteira”, evidenciam as hipérboles iniciais. E é mais ou menos do mesmo tom a seguinte Donde Estas Corazon (L. Martinez Serrano/A. P. Berto/vers.: Ubirajara Silva), possivelmente um dos exemplos mais nítidos da “sofrência” sem medidas de Dalva. Mais uma vez, o eu-lírico encontra-se, aqui, diante da morte, temática que permeia o universo ora dançante, ora enlutado – mas sempre melancólico – do tango.  

Cena da minissérie Dalva e Herivelto, Uma Canção de Amor. Fotografia horizontalmente retangular. Ao fundo, quase nada iluminado, observamos vários objetos, como estatuetas, um copo, um vaso e um telefone. No lado esquerdo, em destaque, observamos a capa do álbum Tangos, possivelmente com alterações feitas para a verossimilhança da obra audiovisual. Na frente dela, uma mão folheia uma agenda telefônica.
Nesta cena da minissérie Dalva e Herivelto, Uma Canção de Amor, a capa do disco Tangos foi provavelmente alterada para estampar o rosto de Adriana Esteves (Foto: Globo/Som Livre)

Ao chegar, contudo, à nona canção do álbum, a Rainha do Rádio atinge graus de beleza vocal e interpretação quase insuperáveis. É em Lencinho Querido (J. D. Felisberto/C. G. Peñaloza/vers.: Maugeri Neto), portanto, que Tangos ergue um de seus incontestáveis auges, dando vida a uma cinematográfica história de traições e beijos perpetuados em um lenço branco. Aliás, justamente por causa dessa versão arrebatadora, não é exagero afirmar que poucos brasileiros conseguiriam dar tanto vigor ao pañuelito de ilusão simbólico e estrangeiro. E se, para estar ao lado de uma lenda, é preciso ser uma figura igualmente lendária, Marisa Monte provou-se grandiosíssima ao gravar a mesma faixa em O Que Você Quer Saber de Verdade, de 2011. 

Pouco antes do fim do LP, Fumando Espero (J. Viladomat/Felix Garso/vers.: Eugenio Paes) surge como uma das canções mais lembradas de todas as 12 faixas que compõem seu repertório, sobrevivendo com certo vigor até os dias de hoje. Também gravada pela estrela espanhola de Cinema Sara Montiel, na trilha sonora do filme El Último Cuplé, Fumando Espero brilhou recentemente, assim como sua antecessora, na voz artisticamente sagrada de Marisa Monte – que deu um toque especial à música em 2016, ao lançar o disco Coleção. “Enquanto eu fumo/Depressa a vida passa/E a sombra da fumaça/Me faz adormecer”, diz o trecho de uma das melhores adaptações feitas para nossa língua materna ao longo da História nacional. 

Registro de Dalva de Oliveira gravando com a orquestra de Francisco Canaro. Fotografia horizontalmente retangular, em preto e branco. Ao fundo, notamos o estúdio da gravadora Odeon. Dalva encontra-se no lado direito da foto e aponta possivelmente para uma partitura ou uma letra de música. Ao redor da cantora, observamos seis homens. Aquele que está em pé no lado esquerdo da foto é, provavelmente, Francisco Canaro.
Assim era Dalva de Oliveira gravando em estúdio (Foto: Dalva de Oliveira FC)

Em contrapartida, Che Papusa Oi!… (G. H. Matos Rodríguez/E. Cadícamo/vers.: Haroldo Barbosa) e seus relatos irônicos tornam-se, no Spotify, o fragmento menos reproduzido de todo o fervoroso álbum. Tendo isso em mente, o gran finale acaba promovendo um contraste drástico ao assumir, atualmente, a posição de faixa mais ouvida do disco na mesma plataforma. A propósito, além de receber destaques numéricos, La Ultima Copa (Francisco Canaro/Juan A. Caruso/vers.: Tito Climent) exerce muito bem sua função de desfecho. E, descontextualizada, seria ainda capaz de fazer uma triste previsão para o futuro da Rainha da Voz: “Será esta minha festa derradeira/Para depois no esquecimento mergulhar”.

Esta é, enfim, mais uma visão panorâmica sobre parte da discografia da extraordinária Dalva de Oliveira. Não tão aprofundada, já que focaliza um disco ainda mais difícil de ser pesquisado, mas construída em modesta celebração aos 60 anos da obra em destaque. Seis décadas essas que, totalmente multifacetadas, foram tempo suficiente para o relançamento de Tangos por meio do selo Imperial, na década de 1970. E que poderiam trazer análises detalhadas sobre como os termos “negra”, “surdo” e “mudo”, dentre outros, eram utilizados sem muitos cuidados em 1961. Recorte temporal vasto, marcado pelo sucesso, esses 60 anos trouxeram, inclusive, um Tangos – Vol. 2, estreado com ousadia em 1963. Mas isso, meus caros, é assunto para um próximo texto.

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