As Hostilidades: na América que ninguém vê, a opressão dissolve almas

Cena do filme As Hostilidades. Na imagem há um homem de capuz. O homem e o chão em que ele pisa estão escondidos pelo escuro, ao fundo, o céu do entardecer tem cores rosa e laranja com poucas nuvens aparentes.
Produção mexicana, As Hostilidades fez parte da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na categoria Competição Novos Diretores (Foto: Centro De Capacitación Cinematográfica A.C.)

Jamily Rigonatto 

Quanto terreno fértil a criminalidade pode encontrar nas partes do mundo ignoradas pela preocupação social? Em temos reais e muito pessoais, As Hostilidades documenta isso em lentes trêmulas. Dirigido por M. Sebastian Molina, o filme mostra as mudanças da cidade de Santa Lúcia, no México, após a violência se tornar protagonista em um espaço aparentemente vazio, mas cheio de memórias e feridas. 

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Circuito Cineclubes Sesc – Onde está Ana?

Cena do filme Ana. Sem Título. Na imagem, há seis fotografias de uma mulher negra. As fotos trabalham de forma documental, registrando as mudanças físicas da personagem em uma organização linear - três fotografias em cima e mais três fotografias em baixo. As mudanças físicas são principalmente no cabelo: na primeira imagem, ele permanece preso em um coque alto, e acompanhamos sua transformação até o penteado em estilo afro
Em Ana. Sem título, exibido na Mostra “Cinema é Direito” no Sesc Bauru, entramos em uma jornada sobre governos totalitários, o feminismo nos anos 70 e 80 e sobre a Arte como forma de denúncia (Foto: Imovision/Taiga Filmes)

Clara Sganzerla

Viajamos, todos os dias, do passado ao futuro. Seja por meio de memórias, lembranças, fatos históricos ou até mesmo dentro de nossos planejamentos; desaparecemos em uma inércia pendular difícil de desvencilhar – nunca vivemos propriamente no presente. No entanto, a atriz brasileira Stella Rabello consegue parar por alguns momentos em algumas dessas duas realidades para ir em uma jornada que ultrapassa as fronteiras de nosso país, esbarrando em uma história sangrenta que, infelizmente, também nos pertence. Em Ana. Sem Título (2020), longa que integrou a Mostra Cinema é Direito do Persona no Sesc Bauru, a cineasta Lúcia Murat nos transporta para o passado latino-americano marcado pela ditadura militar, atrás, apenas, de uma resposta: onde está Ana? 

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Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades é a autocrítica de Alejandro G. Iñárritu

O longa foi exibido no Festival de Veneza e teve uma pré-estreia presencial no Brasil, na seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra SP (Foto: Netflix)

Bruno Andrade

O que parece ser unânime em relação a Alejandro González Iñárritu é que ele nunca se esforça em agradar. Disso surgem virtudes e defeitos: ele pode criar obras originais e autênticas, com refinado valor estético, mas também pode cair no escárnio, na decepção, na epopeia que pode ser o ego de um diretor. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades parece ser o meio termo entre essas duas situações. Com uma trama que se propõe a traçar a história de um renomado jornalista e documentarista mexicano, Silverio Gama (Daniel Giménez Cacho) – personagem marcado por uma profunda crise existencial –, o longa integrou a seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Na obra de Roberto Bolaño, a memória é o nosso Amuleto

Com tradução de Eduardo Brandão, Amuleto, de Roberto Bolaño, foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Agosto de 2022 (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes)

Bruno Andrade

“Soube que tinha de resistir. De modo que me sentei nos ladrilhos do banheiro das mulheres e aproveitei os últimos raios de luz para ler mais três poemas de Pedro Garfias, depois fechei o livro, fechei os olhos e disse para mim: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai, latino-americana, poeta e viajante, resista” (pág. 29).

À primeira vista, Roberto Bolaño é lembrado por dois romances – possivelmente os mais importantes da Literatura na América Latina no final do século XX e início do novo milênio: Os detetives selvagens (1998) e 2666 (2003). O último – uma espécie de testamento do autor chileno, lançado postumamente e com quase mil páginas – desfez a ideia de que o apocalipse ocorrerá sob sirenes e explosões; na verdade, o fim do mundo já começou, e é tão silencioso quanto os assassinatos constantes e sigilosos dos jovens latino-americanos. Por outro lado, com seu romance de 1998, Bolaño deu vida à aura libertária das revoltas deste lado da América, sob uma perspectiva idealizada que, não obstante, é ela mesma rechaçada no livro. Ainda assim, é em Amuleto (1999), lançado entre uma obra e outra, que o autor concentra magistralmente seus temas principais: a poesia, a política e a violência.

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A terceira temporada de Narcos: México escorrega em obstáculos já percorridos

A imagem retangular é uma cena de Narcos: México. Da esquerda para a direita vemos quatro homens de pé e apoiados em um carro vinho, dos joelhos para cima. À esquerda está Everardo Arturo, um homem branco, com cabelos enrolados e penteados, pretos e uma barba rala. Ele usa um óculos escuro com armação dourada, uma camisa vermelha por baixo de uma calça listrada com preto e vinho. À sua direita está Benjamín Arellano, um homem branco, baixo, mais gordo, de cabelos pretos, lisos e penteados à direita. Ele usa um blazer cinza por cima de uma camiseta cinza, por baixo de uma calça verde. Na sua cintura há uma coronha dourada de pistola. Centralizado à direita está David Barron, um homem com traços mexicanos, topete preto e curto, barba e cavanhaque. Ele usa uma camisa aberta listrada em preto e cinza, e uma calça verde escuro. À sua direita está Ramón Arellano, um homem branco, mais alto, magro, de cabelos longos, pretos e repartidos para os dois lados, com uma barba cheia. Ele usa uma camiseta branca com bordados dourados de touros brigando, com uma calça social cinza.
O cantor Bad Bunny incorpora um verdadeiro narcojunior na terceira temporada de Narcos: México (Foto: Netflix)

Vitor Tenca

Em abril de 1989, Miguel Ângel Félix Gallardo era preso por agentes de uma força tarefa montada há anos (a Drug Enforcement Administration) em sua própria casa, em Guadalajara, surpreendentemente sem que uma única bala fosse disparada. Enfim chegava o momento do jefe de jefes passar o bastão para seu rebanho do tráfico internacional – mas, como estamos falando do homem mais poderoso do México, claramente essa troca de postos não poderia ser exatamente amistosa. 

A terceira e última temporada de Narcos: México recebe não somente a gigantesca tarefa de finalizar o arco da própria série, como também carrega o peso de fechar o universo das drogas com chave de ouro. Seguindo o caminho pavimentado pelos narcotraficantes mais famosos e procurados do mundo, o ano final do spin-off de Narcos escora suas narrativa em rostos conhecidos como a família Arellano, os carismáticos sinaloenses e o “senhor dos céus” Amado Fuentes Carillo, enquanto faz questão de apresentar novas figuras e trajetórias que complementam o universo não-tão-fictício da produção da Netflix.

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O terror vem da terra em Gótico Mexicano

Recorte da capa de Gótico Mexicano. Vemos uma mulher com a pele escura bronzeada do busto até a região do nariz. Seu cabelo é curto e preto e ela usa um vestido vinho com os ombros de fora. O fundo é verde com estampas florais em tom mais escuro.
Gótico Mexicano é o primeiro livro de Silvia Moreno-Garcia a ser traduzido no Brasil (Foto: DarkSide Books)

Caroline Campos

O mundo natural pode ser palco de horrores muito mais tangíveis do que qualquer assombração maligna que os Warren seriam capazes de oferecer. Apesar da natureza não poder ser medida com nossas próprias réguas morais, é impossível não reparar na peculiaridade e na diversidade das interações entre animais, plantas, fungos e outros organismos vivos que habitam os confins do planeta Terra – fêmeas devoram machos, vespas depositam seus ovos dentro do corpo de um amigo inseto desavisado, baratas são comidas vivas por vespas-esmeralda. E é partir dessa loucura ecológica que Silvia Moreno-Garcia revira a terra para dar vida ao seu Gótico Mexicano, lançado pela DarkSide Books em 2021.

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Annette é um conto de fadas turbulento

Cena do filme Annette. Vemos homens, mulheres e crianças parados na calçada de uma rua de Los Angeles. As que estão na frente estão ajoelhadas, olhando para cima. As pessoas no fundo estão em pé. Duas delas, uma mulher branca com cabelo loiro e uma mulher negra, conversam no canto superior esquerdo.
O musical liderado por Adam Driver e Marion Cotillard faz parte da Perspectiva Internacional da 45ª Mostra de Cinema de SP (Foto: MUBI)

Caio Machado 

O cinema de Leos Carax sempre teve uma relação íntima com a Música, indo da belíssima caminhada noturna ao som de David Bowie em Boy Meets Girl ao “intervalo” com uma impressionante versão instrumental de Let My Baby Ride em Holy Motors. Nesse sentido, Annette, novo trabalho do cineasta francês exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, extrapola esse laço com a Música de uma forma nada convencional. 

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Só restam cinzas após A Noite do Fogo

Cena do filme A Noite do Fogo. Três meninas, de aparentemente 8 anos, estão do lado uma da outra, enquadradas do peito para cima e de frente para a câmera. A primeira tem a pele mais escura, cabelos escuros compridos e usa uma camiseta amarela. Ela está com o dedo nos lábios. A segunda tem a pele mais clara, tem os cabelos escuros presos e usa uma camisa branca com um coração e um colar. A última é mais alta que as outras duas, também tem a pele clara e os cabelos escuros presos. Ela usa uma blusa vermelha com o número 23 e mangas compridas, e olha em direção ao chão.
O trio de protagonistas mirins de A Noite do Fogo são um show à parte dentro da seção Perspectiva Internacional da Mostra de SP (Foto: Vitrine Filmes)

Caroline Campos

“Agora vamos deixar você feia, minha mãe disse”. As primeiras palavras do livro de Jennifer Clement, Reze pelas mulheres roubadas, são marcadas pela dor – e é exatamente nesse sentimento que a livre adaptação cinematográfica de Tatiana Huezo se pauta. A Noite do Fogo, presença fortíssima na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é um filme de muitas cicatrizes, todas elas compondo a grande ferida aberta e pulsante de cores e dores que é a América Latina.

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O Filho das Monarcas tem uma herança de transformação

Cena do filme Filho das Monarcas.
A produção realizada entre México e Estados Unidos é parte da seção Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Wide Management)

Raquel Dutra

A metamorfose de Filho das Monarcas é sugerida desde sua primeira cena. Quando um pesquisador curioso rompe cuidadosamente o casulo de uma borboleta logo antes de uma voz ancestral explicar um dos muitos significados atribuídos àquele processo, Alexis Gambis sussurra ao público da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo que sua história existirá em algum lugar entre as ideias de modernidade e tradição, ciência e arte, natureza e tecnologia, relações e separações, mudanças e raízes.

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Por que buscamos a Memoria?

Cena do filme Memoria. A foto mostra Jessica, uma mulher branca, de cabelo ruivo-escuro, vestindo camisa clara e calça jeans.Ela está sentada em uma cama bagunçada, em um quarto com mobília e quadros antigos e paredes brancas. Uma luz branca forte emana da janela.
Memoria está sendo exibido na seção Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: MUBI)

João Batista Signorelli 

Todas as memórias são imperfeitas, incompletas, limitadas. Um som, um gesto, uma visão, tudo se dissolve passado o seu momento de existir, e sobrevivem apenas em uma reconstituição nebulosa registrada em nossa mente. Uma memória pode não traduzir com exatidão os eventos vivenciados por um indivíduo, o que não quer dizer em nenhuma hipótese que ela é sem significado. As lembranças representam ideias que, muitas vezes, não somos capazes de traduzir em linguagem, mas que, ainda assim, sentimos, e sentindo sabemos que aquilo é significativo. Do mesmo modo que uma memória paira em nossa mente, Memoria, exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é uma obra enigmática e impossível de ser descrita com precisão, mas que, talvez por isso mesmo, está repleta de significados. 

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