Sobre a Terra Somos Belos por Um Instante: Ocean Vuong e a escrita como coragem de quem não tem escolha

A estreia de Ocean Vuong na prosa, após a aclamada reunião de poemas Céu noturno crivado de balas, é um complexo testemunho autobiográfico escolhido pelo Clube do Livro do Persona (Foto: Rocco/Arte: Francisco Tigre)

Mariana Freire de Moraes

Estou escrevendo para você de dentro de um corpo que era teu. O que é o mesmo que dizer: estou escrevendo como um filho.

Nas primeiras páginas de Sobre a terra somos belos por um instante, o autor Ocean Vuong constrói sua posição durante toda a narrativa na tentativa de se refazer, se ver e perdoar por meio da alteridade de uma comunicação ao mesmo tempo concreta e hipotética. Através do resgate analítico da memória e da apresentação do ambiente, Vuong, chamado de Cachorrinho pela avó, escreve cartas para sua mãe, analfabeta funcional, revisitando episódios da infância no Vietnã e de sua adolescência nos Estados Unidos.

Colonialismo, maternidade, identidade, sexualidade, violência e luto são os pilares do livro, cujos episódios de trauma rememorados traçam um caminho linear para o entendimento da história de três gerações da família do escritor, e as complexidades recalcadas de pessoas estruturadas em meio à guerra, ao preconceito, ao refúgio e à vulnerabilidade. 

Começando pelas memórias quando criança em um Vietnã desestabilizado pela guerra, Cachorrinho – a maneira que Vuong também se retrata em sua escrita – inicia o romance relembrando das primeiras vezes em que sua mãe foi violenta com ele. No acesso à infância, o escritor lembra alguns momentos em que ensina a matriarca a escrever, reproduzindo o que aprendeu naquele dia no jardim de infância. Esse é o momento em que a vulnerabilidade de quem o cria é escancarada para ele e que percebe que possui o que ela precisa para resolver esse problema. De uma forma sutil e perturbadora, esse episódio demonstra a maneira que o autor consegue colocar os dois se olhando do mesmo lugar. 

Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou – e é por isso que eu não posso me afastar de você. E é por isso que eu peguei a mais solitária criação de deus e te coloquei dentro dela.

Na foto, duas mulheres e uma criança estão sentadas em um banco de madeira. As mulheres ficam nos cantos, enquanto o bebê no meio. Estão dentro de uma casa, ao fundo, aparece o vulto de outra mulher, do lado de fora do cômodo. Atrás, percebe-se uma janela, uma porta e roupas penduradas. No primeiro plano, uma mulher, ao canto esquerdo, está sentada ao lado de uma criança pequena. Sua pele é amarela, seus cabelos pretos estão presos. Ela veste um macacão branco, com estampa de flores azuis. Está descalça e sorri fixadamente à câmera. Assim como a criança ao seu lado, que também tem cabelos e olhos pretos. Veste uma camiseta branca com uma gola laranja e estampada com desenhos, que está enfiada dentro de um shorts roxo claro. Ao lado da criança, à direita, uma outra mulher, de cabelo curto e preto, na altura do pescoço e com uma franja cortada, também sorri à foto. Ela usa uma blusa rosa clara e uma calça branca. Está de pernas cruzadas.
A foto que ilustra a edição estadunidense de Céu noturno crivado de balas retrata o autor com dois anos, ao lado de sua mãe e sua tia no campo de refugiados nas Filipinas (Foto: Ocean Vuong)

Passando pela situação de refugiado quando criança, em um paralelo sensível com o nascimento e morte de sua avó – entre o Vietnã e Estado Unidos –, a narrativa se torna mais política e identitária. A partir do momento que Cachorrinho conta a história das mulheres que o criaram, frutos de um estupro de guerra, nada segue sem que pautas sociais sejam colocadas de forma explícita, no entanto, nunca deixando com que a poética fique em segundo plano. Assim, Vuong cria uma atmosfera sólida de questionamento, ao mesmo tempo que deixa claro as complexidades subjetivas geradas a partir desses contextos, e quão decisivas são essas condições para que ele seja ele mesmo, a mãe seja a mãe e o país seja o país. 

Chegando aos Estados Unidos, na casa de seu pai com quem nunca conviveu, o escritor tem um espaço para descobrir e explorar sua sexualidade (atualmente se identifica como uma pessoa queer). No livro, Vuong relata suas primeiras experiências com um homem pobre como ele, porém branco: Trevor, a única pessoa com quem ele realmente desenvolve uma relação além de sua mãe e avó. De uma forma totalmente analítica, o escritor apresenta todas as fases dessa relação, passando pelo estranhamento, o escatológico, as drogas, o entendimento, a identidade, o amor e a morte. Cachorrinho pôde conhecer a vulnerabilidade e a violência do amor e de uma relação que requer um entendimento político, social, subjetivo e identitário que não foi apresentado a nenhum dos dois, tornando tudo mais difícil e mais intenso na mesma medida.

 Sob o fundo de um arbusto flores vermelhas, o autor, criança, é segurado no colo por sua mãe, que tem seu cabelo cacheado cortado curto e usa uma camisa manga longa vermelha, com uma estampa preta na frente. A criança usa uma camiseta polo branca com listras azuis claras e escuras, e uma parte de baixo azulada. Segura um coelho de pelúcia branco, com detalhes lilases.
Quando sua mãe faleceu de complicações de um câncer de mama, Vuong demonstrou seu luto nas redes sociais: ‘‘(…) você me ensinou que nossa dor não é nosso destino – mas nossa razão.’’ (Foto: Ocean Vuong)

O resgate da memória nas passagens da infância no meio da narrativa linear da história do Cachorrinho é o traço mais analítico de Sobre a Terra Somos Belos por um Instante. Ocean Vuong usa a escrita como ferramenta de articulação e busca, narrando sempre em primeira pessoa e, diretamente com a sua mãe, faz com que o objetivo de suas cartas nunca seja esquecido: dizer que se é. As coisas mais duras são lembradas de um jeito poético e grotesco, e quase sempre seguidas de uma imagem que bate de frente com a beleza apresentada de forma visual pela escrita. 

“Uma vez você me perguntou o que é ser um escritor. Então vamos lá. Sete dos meus amigos estão mortos. Quatro de overdose.”

Cachorrinho tem acesso ao significado social de sua existência a partir do momento em que começa a reunir os episódios traumáticos de sua vida e colocá-los em uma posição de questionamento: ser um homem vietnamita refugiado, queer, adicto e pobre nos Estados Unidos significa algo. Além disso,as pessoas em volta dele fazem parte desse significado e a escrita tem o papel de síntese de sua própria vida. É como se, caso não fosse um escritor, Vuong jamais poderia contar quem é a ninguém, nem mesmo a sua mãe.

A busca pela identidade nunca acaba, mas toma um outro caráter. Depois que Cachorrinho entende sua existência, quem sua mãe e sua avó foram, e quem seu novo país abriga, o fluxo se torna outro e assume uma calma assustada de quem sabe que seu lugar está predefinido. Então, a subjetividade assume, mais que nunca, o papel de resgate do que nunca foi dado e uma possibilidade de se reconhecer no mundo. A escrita é o que salva: é o que salvou Cachorrinho de sua relação com sua mãe, que termina o livro rindo enquanto se lembra. 

“Porque o pôr do sol, assim como a sobrevivência, existe apenas à beira de seu desaparecimento. Para ser belo, você primeiro precisa ser visto, mas ser visto sempre permite que você seja caçado.”

Em As Primas, amor, Arte e violência se misturam na Argentina dos anos 1940

Aurora Venturini e seu livro As Primas venceram o prêmio Nueva Novela, do jornal Página/12, pelo qual a autora, enfim, foi premiada por “um júri honesto” (Foto: Fósforo/Arte: Vitória Vulcano)

Henrique Marinhos

As Primas é um romance de formação, que narra a irmandade das primas Yuna, Petra e Carina, que crescem em uma família disfuncional e marginalizada na cidade argentina de La Plata, nos anos 1940. Publicada originalmente em 2007, quando Aurora Venturini tinha 85 anos, a obra recebeu vários prêmios literários na Argentina e no exterior. Destacando-se pela linguagem radical e excêntrica, que mistura diferentes registros, gírias, estrangeirismos, neologismos, erros gramaticais e ortográficos, criando um estilo único, original e cativante, o trabalho foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Março de 2023.

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Dentro de si, escute as feras: entre a autobiografia e a etnografia de Nastassja Martin

Imagem retangular de fundo branco. No canto superior, está centralizado a logo do Persona, um olho com íris na cor cinza e pupila em preto no formato triangular de play. Ao lado da logo, está o selo “Clube do Livro” em letras transparentes colocadas sobre um fundo preto. Abaixo está escrito “Dentro de si, escute as feras: entre a autobiografia e a etnografia de Nastassja Martin” em letras pretas, sendo "escute as feras" em letras cinzas. Mais abaixo, no canto esquerdo, há a capa do livro cujo fundo é branco. Na parte superior direita da capa, há o nome da autora Nastassja Martin escrito em letras pretas. Na parte superior esquerda, há o título do livro “Escute as Feras” escrito em letras pretas. Mais abaixo, está uma ilustração de um borrão preto com uma silhueta similar ao de um urso. Ao lado direito da imagem da capa, está o escrito "Ao encontrarem-se uma no olhar da outra, a antropóloga e a ursa, próximas a um vulcão no extremo leste siberiano, marcam mutuamente os seus destinos e fundem a condição de fera e humana." em letras pretas. Abaixo do texto está escrito “Por" em letras pretas e "Enzo Caramori" em letras cinzas.
Nastassja Martin esteve na programação principal da 20ª Flip junto a Tamara Klink na mesa ‘‘Desterrando o susto’’, e seu Escute as feras foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Fevereiro (Foto: Editora 34/Arte: Ana Cegatti)

Enzo Caramori

Outono. Todo encontro com o Outro revela-se como uma experiência de arrebatamento: da violência de deixar um pedaço de si e desprender-se da unidade do Eu ao movimento da alteridade de achar-se nos olhos do desconhecido. No caso da antropóloga Nastassja Martin, ressonante no livro Escute as feras, a experiência é do deslumbramento de um beijo e da brutalidade de um ataque e contra-ataque. Ao encontrarem-se uma no olhar da outra, a antropóloga e a ursa, próximas a um vulcão no extremo leste siberiano, marcam mutuamente os seus destinos e fundem a condição de fera e humana.

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Na obra de Roberto Bolaño, a memória é o nosso Amuleto

Com tradução de Eduardo Brandão, Amuleto, de Roberto Bolaño, foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Agosto de 2022 (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes)

Bruno Andrade

“Soube que tinha de resistir. De modo que me sentei nos ladrilhos do banheiro das mulheres e aproveitei os últimos raios de luz para ler mais três poemas de Pedro Garfias, depois fechei o livro, fechei os olhos e disse para mim: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai, latino-americana, poeta e viajante, resista” (pág. 29).

À primeira vista, Roberto Bolaño é lembrado por dois romances – possivelmente os mais importantes da Literatura na América Latina no final do século XX e início do novo milênio: Os detetives selvagens (1998) e 2666 (2003). O último – uma espécie de testamento do autor chileno, lançado postumamente e com quase mil páginas – desfez a ideia de que o apocalipse ocorrerá sob sirenes e explosões; na verdade, o fim do mundo já começou, e é tão silencioso quanto os assassinatos constantes e sigilosos dos jovens latino-americanos. Por outro lado, com seu romance de 1998, Bolaño deu vida à aura libertária das revoltas deste lado da América, sob uma perspectiva idealizada que, não obstante, é ela mesma rechaçada no livro. Ainda assim, é em Amuleto (1999), lançado entre uma obra e outra, que o autor concentra magistralmente seus temas principais: a poesia, a política e a violência.

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Estante do Persona – Julho de 2022

Arte retangular de cor lilás escuro. Ao centro há uma estante branca com três prateleiras. A primeira prateleira é dividida ao meio, a segunda prateleira é dividida em três e a terceira prateleira é dividida em três. Na parte superior lê-se em preto 'estante’, na primeira prateleira lê-se em preto 'do persona', à direita nessa prateleira está a logo do Persona, um olho com íris roxa. Na segunda prateleira, ao meio, está a capa do livro “O Acontecimento” ao lado de 8 lombadas brancas. Na terceira prateleira, à direita, está o troféu com a logo do persona. Na parte inferior lê-se em branco ‘julho de 2022'
Em Julho, o Clube do Livro do Persona se infiltrou na narrativa intimista de Annie Ernaux e seu O Acontecimento (Foto: Fósforo Editora/Arte: Nathália Mendes/Texto de Abertura: Bruno Andrade)

“Um livro deve ser o machado que partirá os mares congelados dentro de nossa alma.”

— Franz Kafka

Julho foi o mês do Persona se infiltrar ainda mais nos entremeios literários: dos dias 2 ao 10, membros da nossa Editoria cobriram a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que ocorreu no Expo Center Norte. Dentre os destaques, a Homenagem a José Saramago – que completaria 100 anos em 2022 –, feita por Andréa Del Fuego, José Luís Peixoto e Jeferson Tenório, e a presença de Paulina Chiziane e Valter Hugo Mãe, marcaram a última edição do festival.

Neste ano, o evento teve dupla celebração: além do centenário do único escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, 2022 também marca o bicentenário da Independência do Brasil. Assim, a celebração se deu na forma de reconhecimento da identidade linguística, que une continentes através do idioma em comum. O evento contou também com a presença do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.

Contudo, Julho também foi um período de indigestas – porém necessárias – reflexões. Após a repercussão nacional dos absurdos que envolveram o direito ao aborto legal de uma menina de 11 anos em Santa Catarina, a questão ganhou ainda mais enfoque quando, ao final de Junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a decisão judicial de 1973 que garantia a legalidade do aborto em todo o território nacional. As discussões se nortearam no aspecto de direitos fundamentais que, a princípio, pareciam resguardados, mas que, a bem da verdade, precisam de constante vigilância. 

É nesse contexto que o filme dirigido por Audrey Diwan, com a mesma temática, chegou aos cinemas brasileiros integrando o Festival Varilux de Cinema Francês, em uma adaptação cinematográfica do marcante relato da francesa Annie Ernaux. Assim, não foi difícil escolher para o Clube do Livro do Persona a obra O Acontecimento.

Baseado em um episódio biográfico, o livro conta a história de uma jovem de 23 anos que engravida e, sem poder contar com o apoio do namorado ou da própria família, precisa fazer um aborto. Ilegal na França da época, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que, quarenta anos depois, revive no livro.

Refletindo sobre a onipresença da lei e seu imperativo sobre os corpos femininos, Ernaux mostra uma faceta literária que mistura a ficção com a não-ficção. Agora, para fechar – ou ampliar – um importante momento de reflexões, deixamos as indicações de mais um Estante do Persona.

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O amor não é óbvio é o retrato de um primeiro amor entre garotas

capa do livro O amor não é óbvio. No meio, em frente a um fundo rosa escuro, está a capa. A ilustração do livro, está em preto e branco, de duas garotas, no estilo colagem. A da direita tem o cabelo longo, liso e repicado, ela usa óculos redondos e está segurando um binóculo com as mãos. Ao lado dela está uma garota de cabelos curtos e lisos, vestida com uma jaqueta jeans cheia de bottons. Ainda, na parte superior, está o nome da autora e o do livro.
A capa de O amor não é óbvio, um dos principais romances lésbicos do país, também foi ilustrado pela talentosa autora Elayne Baeta (Foto: Editora Record)

Monique Marquesini

Da busca por registrar e contar histórias felizes de amor entre garotas, origina-se O amor não é óbvio. Publicada em 2019, a obra é a estreia da admirável autora baiana Elayne Baeta e marca o primeiro best-seller lésbico nacional a atingir a lista de mais vendidos do país. Anteriormente lançado em formato digital de forma independente, o romance  ganhou espaço na Literatura brasileira e foi lançado pela Editora Record, sob o selo Galera. A escritora, ilustradora e poeta só escreve sobre o que já sentiu no peito, e talvez por isso, suas narrativas sejam nada óbvias.

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A face por trás de Confissões de uma máscara

Capa do livro Confissões de uma máscara, do autor Yukio Mishima, retratando um leque sobre um fundo azul com o título e o nome do autor ao centro
De maneira bastante intimista, Confissões de uma máscara explora temas de autoconhecimento e rejeição (Foto: Companhia das Letras)

Pedro Yoshimatu

“Pressenti então que neste mundo há um tipo de desejo semelhante à dor pungente. ‘Quero me transformar nele’ foi a vontade que me sufocou ao olhar para aquele rapaz todo sujo: ‘Quero ser ele’”.

Publicado no Japão em 1949 pelo aclamado autor Yukio Mishima, Confissões de uma máscara é um interessante retrato de muitas crises. A crise de seu protagonista, certamente – Koo-chan é um jovem em processo de descoberta da sua própria homossexualidade, em constante conflito com suas crenças pessoais sobre honra, valor próprio e masculinidade -, como também a crise de seu contexto histórico, marcado pela ideologia militarista do Japão Imperial e uma herança cultural em processo de transição e ressignificação. Mas é, principalmente, um livro sobre as crises de seu próprio autor, marcado pelo tom quase biográfico, uma sincera proximidade com o leitor na prosa e uma percepção bastante honesta sobre os dilemas enfrentados por um jovem LGBTQIA+ num período de grande repressão social.

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No palimpsesto de Elvira Vigna, eles não conhecem Courbet

O livro Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, leitura do Clube do Livro do Persona em Maio, publicado pela editora Companhia das Letras, não é sobre garotas de programa, mas sim sobre relações interpessoais e suas tensões (Foto: Companhia das Letras/ Arte: Bruno Alvarenga)

Enzo Caramori

“Nenhuma de nós de fato com uma existência separada. Só traços sobrepostos, confusos, não claros. Como se estivéssemos, todas nós, num palimpsesto.”

Em uma sala, num outro universo que não é, naquele momento, o Rio de Janeiro que estardalhaça do lado de fora, ela está furiosa. Em silêncio, mas nunca quieta. Cautelosamente desajeitada. Uísque caubói, também raivoso, em um copo plástico. Escuta um homem, que nem conhece direito, narrar seus encontros com putas. Mulheres sem nomes, pois são tantas que, no fim, se juntam até se tornarem um único ser com várias cabeças e braços. Rasura. Na verdade, são as estórias que se juntam incessantemente até formarem, gota a gota, gigantes estruturas, como aquelas pedras, em cavernas. Gota a gota. Rígidas. Estalagmites. Que prendem, nos espaços vazios e ocos, o que realmente se quer dizer. E não foi dito.

E é isso – o que não foi dito –  que mais pulsa na escrita visceral de Elvira Vigna no brutal Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (2016), um de seus últimos livros publicados em vida. Em uma crueza avassaladora, que partilha de um humor blasé e de uma catártica raiva feminina, a autora não traz suas discussões necessariamente na superfície de seu enredo e no desenrolar de suas personagens, mas sim em uma psicologia que está atrás dos eventos narrativos – localizada no que realmente move os acontecimentos – criando uma dualidade acerca do que se diz mas, não necessariamente, é o que quer ser dito. Nessa narrativa, a única verdade está naquilo que é engolido pela língua e reside no escuro. Na ausência. No negativo.

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Bobbi amava Frances que ama Nick que ama Melissa

Moldura vermelha retangular. No canto superior esquerdo e no canto inferior direito, vemos o logotipo do Persona, o desenho de um olho com um símbolo de play ao centro. Ao centro do retângulo, vemos a capa do livro Conversas entre amigos. A capa tem o fundo verde azulado. Na parte superior central, vemos a palavra "conversas" em uma fonte branca sem serifa, alinhada à esquerda. Abaixo, vemos a palavra "entre" na mesma fonte, alinhada à direita. Abaixo, vemos a palavra "amigos" centralizada. Centralizada na capa, vemos as palavra "Sally Rooney", na mesma fonte, na cor preta. Na parte inferior da capa, vemos uma mulher branca de cabelos castanhos lisos, de costas, à esquerda. À direita, vemos uma mulher branca de cabelos pretos presos em um rabo de cavalo e usando óculos rosa, de perfil.
Lançado em 2017, Conversas entre amigos completa 5 anos no mês de lançamento da série adaptada (Foto: Editora Alfaguara)

Vitória Lopes Gomez

Frances e Bobbi são melhores amigas que já namoraram. Frances tem uma queda por Nick, e Bobbi, por Melissa. Nick e Melissa são casados. É partindo desse emaranhado que Sally Rooney, em seu livro Conversas entre amigos, encontra terreno fértil para dissecar relacionamentos contemporâneos e seus envolvidos, assim como as dinâmicas sociais e de poder das relações interpessoais modernas. Se a irlandesa escreve, essencialmente, sobre pessoas normais vivendo sua realidade – mesmo que seja uma realidade inventada, somente baseada na vida real da autora ,- essa obra de estreia  mostra que, mesmo antes do fenômeno Pessoas normais, Rooney já mostrava a potência de suas histórias fictícias reais.

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Homens sem mulheres e o universo melancólico de Haruki Murakami

Com uma de suas narrativas adaptadas para o Cinema, Homens sem mulheres foi a leitura do mês de Março de 2022 no Clube do Livro do Persona (Foto: Alfaguara/Arte: Jho Brunhara)

Bruno Andrade

“Como um dos homens sem mulheres, eu rezo do fundo do coração. Parece que não há nada que eu possa fazer agora a não ser rezar. Por enquanto. Possivelmente.”

O mundo ficcional de Haruki Murakami se parece com o nosso, revestindo-se de uma aura melancólica e acinzentada, na qual habitam indivíduos sem rumo, quase vazios, e à deriva. Somos lembrados que estamos diante de uma obra ficcional quando encontramos vestígios desse mundo onírico em um lugar distante, semelhante a uma memória ainda não vivenciada. Em sete narrativas interligadas por perdas de vários os tipos – sentimentais, físicas, futuras e passadas –, Homens sem mulheres dá voz a um universo que não parece mais existir: um mundo distante, dominado pelo jazz, sonhos perdidos e rostos caídos. 

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