Estante do Persona – Agosto de 2022

Em Agosto, o Clube do Livro do Persona se debruçou sobre Amuleto, do chileno Roberto Bolaño (Foto: Companhia das Letras/Arte: Ana Clara Abbate/Texto de Abertura: Bruno Andrade)

“A Literatura deve ser realmente o lugar onde podem surgir novas idéias que repensem o mundo.”

– Salman Rushdie

Depois das muitas reflexões que Annie Ernaux e seu O Acontecimento causaram, o Clube do Livro reuniu-se mais uma vez em meio a um cenário caótico. Na esteira do período eleitoral e das violentas situações que têm ocorrido no país, foi o momento de inclinar-se sobre a obra política de Roberto Bolaño e o incontornável Amuleto (1999).

Retirado de um episódio de Os detetives selvagens (1998) – mas também de um caso real –, o romance curto conta a história de Auxilio, imigrante uruguaia que vive no México rodeada por artistas e poetas. Com os principais traços da Literatura de Bolaño, o livro levanta questionamentos sobre as opressões na América Latina e a memória histórica e política, tudo narrado através da acidez de sua escrita combativa.

Sob o contexto de liberdades cerceadas, também foi o mês de um fato trágico. Enquanto se preparava para palestrar em Nova York, no dia 12 de Agosto, o escritor Salman Rushdie foi atacado por um homem armado com faca. Embora o suspeito esteja preso e Rushdie apresente melhoras no estado clínico – mesmo que a chance de perder um olho ainda seja alta –, o atentado levantou questões antigas que pareciam superadas – na verdade, só nos lembrou que nada está ganho nunca.

Em 1988, após publicar o romance Os Versos Satânicos, sua obra mais influente, Salman Rushdie se viu imerso em conflitos políticos e religiosos. Por ficcionalizar a vida do profeta Maomé, o livro incomodou fundamentalistas religiosos. Em 1989, o aiatolá Ruhollah Khomeini proferiu um fatwa, pedindo sua execução, e deu inicio a série de mudanças, viagens e esconderijos que Rushdie precisou realizar.

Exilado na Inglaterra, com escolta em tempo integral, o autor indiano continuou suas publicações, marcadas pelo estilo que se aproxima do Realismo Mágico, com liberdade para fantasiar com culturas e marcos históricos, a exemplo de Os Filhos da Meia-Noite (1981), sua obra vencedora do Booker Prize. O próprio Versos Satânicos traz acontecimentos reais: o ataque que ocorreu contra um avião da Air India em 1985, os tumultos de Brixton em 1981 e 1985 e a Revolução Iraniana de 1979.

Assim, desejando rápidas melhoras para Rushdie e já de olho na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – evento que ocorre em Novembro e trará Camila Sosa Villada e Annie Ernaux, as leituras do Clube do Livro em Junho e Julho –, deixamos as já tradicionais indicações do Estante do Persona.

Livro do Mês

Capa do livro Amuleto, de Roberto Bolaño. A capa é bege com um retângulo amarelo no centro. No canto superior esquerdo, vemos o nome do livro e do autor em preto, e no inferior esquerdo, o logo da editora Companhia das Letras.
O episódio que desencadeia o fluxo narrativo em Amuleto, baseado em fatos reais, foi extraído de Os detetives selvagens, obra-prima de Roberto Bolaño (Foto: Companhia das Letras)

Roberto Bolaño – Amuleto (136 páginas, Companhia das Letras)

Com sua Literatura extremamente conectada às questões político-sociais da América Latina, não é surpresa para ninguém que o chileno Roberto Bolaño traga em Amuleto (1999) uma narrativa que ficcionaliza um drama da vida real. Na história, traduzida para o português por Eduardo Brandão, a protagonista é a imigrante uruguaia Auxilio Lacouture, auto-intitulada “mãe dos poetas e da poesia mexicana”.

Em 1968, o exército invadiu o campus da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Na ocasião, Auxilio se encontrava no banheiro e lá permaneceu por uma porção de dias, resistindo e sobrevivendo. Sob uma ótica quase surrealista no momento de escrever sobre os devaneios da personagem, Bolaño desvenda a violência do mundo, as dores, os medos e os anseios de uma pessoa que veio de fora e nunca foi bem recebida. Amuleto encontra espaço, ainda, para servir de mecanismo de escape para a fúria de seu autor, interessado em denunciar as injustiças que permeavam e ainda permeiam o continente que tanto amou.


Dicas do Mês

Capa do livro Ela se chama Rodolfo. Em um tom verde forte, próximo a um verde água escuro, se imita o casco de uma tartaruga, com suas formas hexagonais. Ao centro, lê-se o título do livro, em letras maiúsculas em um branco creme. Do lado direito superior, consta o nome da autora em letras minúsculas, Julia Dantas. No canto inferior esquerdo, em letras maiúsculas finas, o selo da DBA Editora.
Depois de uma imersão na América Latina em seu primeiro romance, Julia Dantas resgata Porto Alegre em uma literatura sobre afetos, inseguranças e carapuças humanas (Foto: DBA Editora)

Julia Dantas – Ela se chama Rodolfo (264 páginas, DBA Editora)

Um demônio da mobilidade assombra os personagens do segundo livro de Julia Dantas, um dos pilares do monumento da Literatura gaúcha contemporânea, que abriga nomes como Antônio Xerxenesky, Luisa Geisler, Daniel Galera e Tobias Carvalho. Em Ela se chama Rodolfo, reside uma road históriacomo cunhada pela autora – em que quanto mais os personagens se movimentam e se enfrentam com as miudezas que perpassam seus caminhos, mais eles se deparam com a mutação do mundos interiores e exteriores a si mesmos. Por trás da história de Murilo, que, ao chegar em seu apartamento recém-alugado, se estranha ao deparar-se com a tartaruga da locadora, Dantas constrói um romance que beira uma epopeia, proposta a se afundar nas fissuras do cotidiano e da emoção humana.

Na procissão desse homem – o que é um homem? – pela cidade de Porto Alegre, na busca de alguém que fique com o bicho, tanto o leitor quanto o personagem se esbarram com os mais diversos cenários e personagens: ruas, prédios, vozes, linhas de ônibus, nacionalidades, urubus e bares de esquina. Já Francesca, a dona do apartamento, também propõe inúmeras travessias – de relevos montanhosos a litorais – em seus e-mails que, em vez de responderem as perguntas do locatário, emulam um tom mágico de fábulas em suas reflexões sobre vida, morte e gênero.

Ao mesmo tempo que local e universal, Ela se chama Rodolfo, com sua prosa tomada de fluidez, é um mosaico formado pelos cacos e estilhaços de seus personagens, sob o fundo do que é uma trama essencialmente sobre identidade e existência perante o mundo. Sempre atravessada pela freneticidade do acontecimento e pela paralisia da descoberta, a beleza do acaso e dos encontros é exaltada em um texto que, como o casco de uma tartaruga, se faz um lar em trânsito. – Enzo Caramori


Capa do livro O Adversário Secreto. A arte da capa possui, à direita, um navio azul escuro com detalhes em amarelo afundando no mar azul escuro, com detalhes em vermelho. O navio possui, em amarelo, o escrito 'Lusitania', e, em vermelho, 'Um Caso de Tommy e Tuppence'. O céu aparece vermelho, com o nome da autora Agatha Christie em letras brancas vazadas. O nome do livro aparece em letras brancas preenchidas, na parte do mar, como se estivesse boiando. Há também um pequeno barco amarelo, ao lado esquerdo do navio.
Os investigadores Tommy e Tuppence são os únicos personagens de Agatha Christie que envelhecem ao decorrer dos livros; além de fazerem parte da única série da autora que é contada em sequência (Foto: Globo Livros)

Agatha Christie – O Adversário Secreto (384 páginas, Globo Livros)

Adicione um mistério a uma história de amor e terá a obra O Adversário Secreto, escrita por Agatha Christie, a Rainha do Crime. Publicado em 1922, esse é o primeiro dos cinco livros estrelados por Prudence “Tuppence” Cowley e por Thomas “Tommy” Beresford. A história começa com o naufrágio do navio Lusitania, durante a Primeira Guerra Mundial, quando um homem misterioso entrega alguns papéis confidenciais a Jane Finn. Quando chegam em terra firme, a jovem e os papéis desaparecem, sem deixar pistas nem rastros.

Quatro anos depois, os amigos de infância – que se reconectaram em um hospital, durante a Grande Guerra – Tommy e Tuppence se reencontram em um restaurante. Falidos e desempregados, a dupla gasta suas últimas moedas para fundar e anunciar a agência “Jovens Aventureiros, Ldta.”, se dispondo a fazer qualquer coisa por dinheiro. E é assim que as histórias se entrelaçam: Tommy e Tuppence começam a investigar o paradeiro de Jane Finn e dos papéis, e, em meio às reviravoltas, identidades falsas, dinheiro, desaparecimentos e revelações, acabam desvendando outra coisa: o amor. –  Laura Hirata-Vale


Capa do livro Pulmão de Aço - uma vida no maior hospital do Brasil da escritora Eliana Zagui. A arte de capa é uma fotografia em preto e branco de Eliana quando criança em uma visita ao circo. Ela, uma menina branca de cabelos e olhos claros, possui paralisia causada pelo vírus da poliomielite, por isso, aparece deitada em uma cama com um espelho ao lado que reflete a sua maquiagem e fantasia de palhaço e o seu chapéu de festa. Na parte superior, o título do livro está escrito em letras escuras enquanto o subtítulo e o nome da escritora estão destacados em letras claras.
A trajetória de Eliana Zagui inspirou uma peça teatral (Foto: Belaletra)

Eliana Zagui – Pulmão de Aço: Uma vida no maior hospital do Brasil (136 páginas, Belaletra)

Pulmão de Aço: Uma vida no maior hospital do Brasil é a autobiografia de Eliana Zagui, sobrevivente do surto de poliomielite que atingiu o Brasil na década de 1970. Lançado em 2013, o livro é um registro do passado que ainda dialoga com o presente, afinal, no atual ano de 2022, a cobertura vacinal contra o vírus que pode causar paralisia está extremamente longe dos parâmetros ideais. Diagnosticada com 2 anos de idade, à época da publicação, Zagui morava no Hospital das Clínicas de São Paulo há 36 anos.

Repleta de passagens emocionantes e imagens que retratam o sofrimento vivido pelas vítimas, em grande parte crianças, a obra ultrapassa o objetivo de narrar uma história de vida para alcançar a eternização de um tempo que não deve ser esquecido. Com Pulmão de Aço: Uma vida no maior hospital do Brasil, Eliana Zagui não somente comove, como também faz das palavras escritas com a boca a sua maior demonstração de força. Uma leitura imprescindível do passado para se entender o futuro. – Nathalia Tetzner


Capa do livro I’m Glad My Mom Died, da autora Jennette McCurdy. A capa é amarela bem claro e tem uma imagem de Jennette segurando uma urna funerária cor-de-rosa, olhando para o lado com um sorriso no rosto. A foto está dentro de um retângulo cor-de-rosa. Acima dele, no topo da capa, e também em rosa está o nome do livro e abaixo dele, em branco, o nome da autora. Em cada lado da foto dela, vemos frases em preto e na parte baixo da capa, o nome da editora Simon & Schuster.
O livro tem previsão de ser lançado no Brasil em 15 de novembro, publicado pela nVersos Editora (Foto: Simon & Schuster)

Jennette McCurdy – I’m Glad My Mom Died (319 páginas, Simon & Schuster)

Quando foi anunciado que iCarly voltaria à ativa, os fãs do programa foram à loucura. Mas, junto do sinal verde para a série do Paramount+, veio um asterisco: dessa vez, Miranda Cosgrove não contaria com a presença de Jennette McCurdy frente às câmeras. O motivo ainda era um pouco nebuloso, já que a atriz havia se afastado dos holofotes, perdido a mãe e não queria envolvimento com o show business. Em 2022, chegou a hora dela assumir o controle da narrativa no doloroso I’m Glad My Mom Died (Estou feliz que minha mãe morreu).

Com um título desses, o livro já começa com um chute na porta e, logo no prólogo, Jennette confessa que, no leito de morte da mãe (Debra) e na esperança de acordá-la do iminente falecimento que o câncer causou, ela revelou seu peso (“eu estou tão magra, mãe”). É claro que isso não foi o bastante para que a doença poupasse a vida da mulher que a atormentou, abusou física e mentalmente e a subjugou por tantos anos. Acontece que, desde o começo, Jennette nunca quis ser atriz, apenas seguiu as orientações de Debra, e nunca disse não.

O relato, que se estende por pouco mais de 300 páginas, acarreta em questões emocionais profundas, indo desde a infância até a vida adulta da atriz e escritora, mostrando as cicatrizes agudas que ainda penam para se fechar em seu corpo e mente. Desde banhar a filha até a idade adulta até controlar as porções de comida que chegavam ao seu prato, a mãe de McCurdy fez de sua existência um inferno impossível de escapar. Ao final da leitura, que ainda toca em pontos como o comportamento criminoso e pedófilo de Dan Schneider e a relação da atriz com Ariana Grande nos bastidores de Sam & Cat, o sentimento de alívio pela desintegração do mal não é o bastante para apagar o tormento que perdurou por tanto tempo. Sucesso de crítica e de vendas, I’m Glad My Mom Died se mostra um pontapé certeiro para que discussões sobre pais narcisistas e o mundo da Arte aconteçam, e a coragem de sua autora é o feito mais louvável disso tudo. – Vitor Evangelista


Traduzido para o português pelo escritor Daniel Galera, Jimmy Corrigan: O menino mais esperto do mundo chegou ao Brasil em 2009 (Foto: Quadrinhos na Cia)

Chris Ware – Jimmy Corrigan: O menino mais esperto do mundo (388 páginas, Quadrinhos na Cia)

Quando você passa pelo portão de casa, anda pelos entremeios das ruas, sobe e desce calçadas, o que mais se vê é publicidade. Essas peças publicitárias, por sua vez, são efêmeras, e não dizem praticamente nada a nós. São cartazes coloridos e chamativos, pessoas sorrindo com produtos expostos em ambientes visivelmente irreais. Parece que tudo tenta ser um esconderijo de uma tristeza generalizada, uma espécie de possibilidade de distração da vida real conturbada. Contudo, quem resiste a um pouco mais de tristeza? Quem resiste a tentação de se infiltrar um pouco mais na sua própria condição melancólica? Certamente, Chris Ware tem consciência de tudo isso, e engloba essas questões em sua premiada graphic novel.

 Jimmy Corrigan: O menino mais esperto do mundo foi lançado em forma de livro em 2000, mas teve iniciada, em 1995, sua serialização (publicação periódica) no jornal Newcity e na revista de quadrinhos Acme Novelty Library. Fora a questão melancólica que paira por toda a trama, a História em Quadrinhos parece ser inclassificável. Ware mistura elementos do design gráfico com formatos pouco convencionais de narrativização, elaborando um mosaico da vida do protagonista Jimmy, homem com 36 anos de idade, problemas de sociabilidade e uma possível depressão não diagnosticada. O protagonista tem como influência o próprio autor – tanto em sua personalidade como fisicamente –, que começou a história na preparação para conhecer o pai, que o procurou mais de 30 anos depois de seu nascimento. Na espécie de posfácio da obra – parece apenas mais um elemento da trama, porém com o próprio autor na narrativa –, Ware escreve que “as quatro ou cinco horas que sua leitura tomaram quase correspondem ao tempo total que passei ao lado de meu pai”.

Ao conhecer o pai na trama fictícia, Jimmy Corrigan enfrenta uma série de problemas, pois não consegue se comunicar com ninguém além de sua mãe. Desajustado, triste e com uma vida social limitada, Jimmy percebe que tem pouco de seu pai, um homem racista e extremamente imprudente. Porém, Chris Ware utiliza seus originais meios de narrativizar para compor flashbacks e histórias paralelas na consciência dos personagens, apontando para os antepassados de Jimmy Corrigan e a violência generalizada na vida de seu pai e seu avô, mostrando, assim, as origens dessas figuras opressivas. Além disso, Ware utiliza um mecanismo narrativo muito “pós-moderno”, inserindo elementos de uma publicidade falsa dentro da própria trama – uma forma de sintetizar o caos da vida contemporânea. Repleto de piadinhas e sacadas autorreferenciais, Jimmy Corrigan: O menino mais esperto do mundo é incontornável. – Bruno Andrade

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