Na obra de Roberto Bolaño, a memória é o nosso Amuleto

Com tradução de Eduardo Brandão, Amuleto, de Roberto Bolaño, foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Agosto de 2022 (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes)

Bruno Andrade

“Soube que tinha de resistir. De modo que me sentei nos ladrilhos do banheiro das mulheres e aproveitei os últimos raios de luz para ler mais três poemas de Pedro Garfias, depois fechei o livro, fechei os olhos e disse para mim: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai, latino-americana, poeta e viajante, resista” (pág. 29).

À primeira vista, Roberto Bolaño é lembrado por dois romances – possivelmente os mais importantes da Literatura na América Latina no final do século XX e início do novo milênio: Os detetives selvagens (1998) e 2666 (2003). O último – uma espécie de testamento do autor chileno, lançado postumamente e com quase mil páginas – desfez a ideia de que o apocalipse ocorrerá sob sirenes e explosões; na verdade, o fim do mundo já começou, e é tão silencioso quanto os assassinatos constantes e sigilosos dos jovens latino-americanos. Por outro lado, com seu romance de 1998, Bolaño deu vida à aura libertária das revoltas deste lado da América, sob uma perspectiva idealizada que, não obstante, é ela mesma rechaçada no livro. Ainda assim, é em Amuleto (1999), lançado entre uma obra e outra, que o autor concentra magistralmente seus temas principais: a poesia, a política e a violência.

Mesmo que o pequeno romance (ou novela) tenha saído de um trecho emblemático de Os detetives selvagens – se trata de uma versão “expandida” de um capítulo do livro –, a obra funciona muito bem de maneira avulsa, pois sua mensagem ressoa na forma política e no cuidado de Bolaño com a linguagem (as repetições e a poesia “proseada”). A protagonista e narradora, Auxilio Lacouture, uma imigrante uruguaia auto-denominada a “mãe de todos os poetas”, investiga mentalmente um crime hediondo, que será revelado próximo ao final do romance. Contudo, crimes de vários os tipos perpassam a trama, rememorados por Auxilio no banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), local onde se esconde após a tomada repentina da universidade pelos militares.

Nascido em 1953, em Santiago, Bolaño passou sua adolescência no México e retornou ao Chile após a vitória de Salvador Allende, para “ajudar a construir a revolução” (Foto: Alejandro Yofre)

Em setembro de 1968, durante as semanas que Auxílio se mantém escondida, comendo papel higiênico, o pequeno espaço do banheiro se transforma em um túnel do tempo, no qual a personagem revive seus anos na Cidade do México, lembrando dos poetas León Felipe e Pedro Garfias – pelos quais trabalhou como doméstica, de forma voluntária, para ficar mais próxima da poesia –, e também viajando para o futuro, quando conheceu, nos anos 1970, o jovem Arturo “Arturito” Belano – o alter-ego do próprio Roberto Bolaño. A forma não-linear com que se lembra dos acontecimentos talvez sintetize o trauma de Lacouture, mas mais do que isso, trata-se de um mecanismo, quase sempre utilizado pelo autor para dar vida a uma realidade fragmentada: a “real” e cotidiana, e a “subjetiva”, memorialística.

Assim como o romance antecessor, Amuleto apresenta o conflito do idealismo de uma geração com a realidade latino-americana. A verdade é que o ambiente claustrofóbico do banheiro se transforma, para Auxilio, em uma espécie de Aleph – do conto de Jorge Luis Borges, uma das principais referências do chileno –, em que se pode, paradoxalmente, enxergar o passado, o presente e futuro de uma só vez. Mas mesmo quando seus livros se repetem – sejam em temas ou em enredo, propriamente –, Bolaño nunca deixa de acrescentar novas informações, dando vida a uma espécie de obra infinita. O título de 2666, por exemplo, tem sua única explicação em Amuleto: “A [avenida] Guerrero, a essa hora, se parece mais que tudo com um cemitério […], mas com um cemitério de 2666, um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo” (pág. 65).

Alcira Scaffo, a verdadeira Auxilio Lacouture, se tornou uma lenda do movimento estudantil mexicano, após resistir à invasão militar na UNAM (Foto: Arquivo MUAC)

O escritor chileno entrelaça fato e ficção de forma natural, sempre carregando uma ampla carga histórica por volta do enredo. Em Amuleto – assim como no capítulo de Os detetives selvagens –, Auxilio Lacouture é baseada em uma pessoa real: no histórico ano de 1968, momento em que o exército mexicano realmente reprimiu manifestantes na Cidade do México, a poetisa Alcira Soust Scaffo manteve-se escondida no banheiro da UNAM, pós tomada da Cidade Universitária pelos militares. Ela sobreviveu bebendo apenas água da torneira durante os 12 dias que se manteve escondida. Assim como Auxilio, Scaffo foi amiga de León Felipe, e Bolaño a conheceu pessoalmente em 1970.

Em diversos momentos, a tensão sobre a produção cultural na América Latina domina a narrativa, e, diante dos atos repressivos na trama, são construídas metaficções cujo objetivo é refletir sobre a violência e uma forma melancólica de resistência. É nesse sentido que o filósofo Walter Benjamin, através do ensaio Sobre o conceito da história (1940), ascende como referência. “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”, escreve Benjamin, visto que os bens culturais são concebidos através da perspectiva do horror.

“Esta será uma história de terror. Será uma história policial, uma narrativa de série negra e de terror. Mas não parecerá. Não parecerá porque sou eu que conto. Sou eu que falo e por isso não parecerá. Mas no fundo é a história de um crime atroz” (pág. 9).

O nome de Auxilio Lacouture sinaliza para os dois objetivos de sua história, narrada por ela própria, através de um jogo de palavras que não parece coincidência. Enquanto “Auxilio” em espanhol realmente signifique “ajuda”, “Lacouture” tem uma sonoridade parecida com “la cultura”. Assim, seria uma espécie de “pedido de socorro da Cultura”, que se vê ameaçada por forças externas, ao mesmo tempo em que Auxilio luta para não deixar que ninguém se esqueça daquele momento histórico. Ainda assim, Bolaño é sempre perspicaz ao deixar pistas de interpretação.

O romance se abre com o aviso de que será uma história de terror, cuja afirmação ganha importância, de forma cíclica, ao final, quando – após revelado toda a barbárie – percebemos que nos deixamos levar por essa narradora pouco confiável. Não porque não seja verdadeira – ou que não queira realmente transmitir o ocorrido –, mas porque suas memórias estão em ebulição e, por isso, confusas e delirantes, de modo que a trama “não parecerá” uma narrativa de terror, mas uma ode à memória histórica e à poesia. O pano de fundo violento é não somente o cenário tenebroso avisado desde o ínicio, mas também é seu aviso final: Amuleto relembra que esquecer os horrores da Ditadura leva o terror ao esquecimento, deixando à História sua inevitável repetição. Auxilio Lacouture é, sozinha, a única resistência contra as forças fascistas.

Patti Smith considera 2666, de Bolaño, a “primeira obra-prima do século 21” (Foto: Basso Cannarsa)

Quase toda a ficção de Bolaño se preocupa com a vida dos escritores, especialmente dos poetas marginais – seus “poetas-protagonistas” tendem a ser párias empobrecidos, isolados do mainstream literário. O próprio autor se via antes de tudo como um poeta, e começou a escrever romances e contos porque a poesia “não pagava as contas”. Não muito diferente do que acontece com a maioria dos ficcionistas, a vida do chileno foi essencialmente sua fonte de inspiração (ele até possuía um cartão impresso com os escritos “Poeta e Vagabundo”).

O “Realismo Visceral”, movimento literário que Ulisses Lima e Arturo Belano fazem parte em Os detetives selvagens, é apenas outro nome para o “Infrarrealismo”, criado por Roberto Bolaño e Mario Santiago Papasquiaro – a quem Amuleto é dedicado – em 1975, na Cidade do México, no qual se negava nomes como Octavio Paz, vencedor do Nobel de Literatura em 1990 e condenado por Bolaño por ser o “líder do establishment cultural mexicano”. Os infrarrealistas atacavam essa ordem ideológica porque, através dela, se criou uma cisão entre a “alta cultura” e a “cultura popular”, mantendo sempre uma diferenciação na qual se classificava a “alta cultura” como única forma autêntica de manifestação artística. Por essa razão, o movimento também se notabilizou por sabotar lançamentos de livros, cerimônias de premiação e atividades literárias gerais de poetas pertencentes a esse mundo da “alta cultura”.

“Pensei: a vaidade da escrita, a vaidade da destruição. Pensei: porque escrevi, resisti. Pensei: porque destruí o escrito vão me descobrir, vão me pegar, vão me violentar, vão me matar. Pensei: ambos os fatos estão relacionados, escrever e destruir, se esconder e ser descoberta. Depois me sentei no trono e fechei os olhos” (pág. 125).

Antecedendo o que seria sua obra máxima, Amuleto insere uma protagonista feminina vítima de violência. Tempos depois, em 2666, o mote da história gira em torno do feminicídio na fronteira México-Estados Unidos, cujo assassinato de diversas mulheres em Santa Teresa levanta mistérios. Esses homicídios vêm ocorrendo há anos (o romance se passa na década de 1990), e os culpados – ou culpado – seguem desconhecidos. Santa Teresa é uma versão ficcional de Ciudad Juárez, uma verdadeira cidade fronteiriça mexicana que se tornou notória nesse período pelo grande número de mulheres assassinadas. Por vários anos, quase semanalmente, os corpos de mulheres jovens – algumas com 11 ou 12 anos – apareciam no deserto ao redor da cidade.

A maioria das vítimas eram trabalhadoras nas maquiladoras da cidade (fábricas de propriedade norte-americana), e muitos corpos sequer foram identificados. Embora várias prisões tenham sido feitas, nunca se estabeleceu um único assassino ou grupo de assassinos que estavam por trás dos crimes. Nos últimos anos de vida, Roberto Bolaño se tornou obcecado pela brutalidade e mistério em torno desses delitos: como algo tão bárbaro e cotidiano pode passar despercebido? Como pode se tornar habitual? Assim, ele começou a trocar correspondências com jornalistas que cobriam ou cobriram casos passados no local, pedindo aspectos específicos dos assassinatos – como os detalhes forenses –, mas também características geográficas da Ciudad Juárez, reconstruídas com precisão nas páginas de 2666. Essa violência, inclusive, está presente no título do próprio romance: trata-se do número da besta duas vezes – uma violência que, após se tornar naturalizada, torna-se maior que o próprio Apocalipse.

Com 2666, Roberto Bolaño se tornou um dos poucos escritores latino-americanos a vencer o National Book Critics Circle Awards (Foto: Anna Oswaldo-Cruz Lehner)

Amuleto condensa, em pouco mais de 100 páginas, todo o interesse de Roberto Bolaño pela violência. A origem desse ímpeto está relacionada não apenas com sua própria juventude – um jovem pobre do Chile que, se não fosse escritor, seria detetive ou delegado, e que, mesmo após publicar livros, vendia bijuterias para sobreviver –, mas também com sua própria maneira de enxergar a Literatura: uma “vocação perigosa”.

Bolaño analisa que a América Latina é toda constituída pela concepção da violência, em suas diversas facetas, e como ele próprio profere no famoso Discurso de Caracas (1999), “toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos”. Auxilio, “a mãe de todos os poetas”, é também a “mãe” da memória histórica do México e do Chile. Esquecer tudo é o maior pesadelo de Lacouture, e embora os gritos de protesto e indignação sejam aquilo que ressoa em sua memória, embora o canto das revoltas seja aquilo que ela e nós mantemos ressoando em nossas cabeças, é esse mesmo som que nos permite recordar; “esse canto é o nosso Amuleto” (pág. 131).

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