Dentro de si, escute as feras: entre a autobiografia e a etnografia de Nastassja Martin

Imagem retangular de fundo branco. No canto superior, está centralizado a logo do Persona, um olho com íris na cor cinza e pupila em preto no formato triangular de play. Ao lado da logo, está o selo “Clube do Livro” em letras transparentes colocadas sobre um fundo preto. Abaixo está escrito “Dentro de si, escute as feras: entre a autobiografia e a etnografia de Nastassja Martin” em letras pretas, sendo "escute as feras" em letras cinzas. Mais abaixo, no canto esquerdo, há a capa do livro cujo fundo é branco. Na parte superior direita da capa, há o nome da autora Nastassja Martin escrito em letras pretas. Na parte superior esquerda, há o título do livro “Escute as Feras” escrito em letras pretas. Mais abaixo, está uma ilustração de um borrão preto com uma silhueta similar ao de um urso. Ao lado direito da imagem da capa, está o escrito "Ao encontrarem-se uma no olhar da outra, a antropóloga e a ursa, próximas a um vulcão no extremo leste siberiano, marcam mutuamente os seus destinos e fundem a condição de fera e humana." em letras pretas. Abaixo do texto está escrito “Por" em letras pretas e "Enzo Caramori" em letras cinzas.
Nastassja Martin esteve na programação principal da 20ª Flip junto a Tamara Klink na mesa ‘‘Desterrando o susto’’, e seu Escute as feras foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Fevereiro (Foto: Editora 34/Arte: Ana Cegatti)

Enzo Caramori

Outono. Todo encontro com o Outro revela-se como uma experiência de arrebatamento: da violência de deixar um pedaço de si e desprender-se da unidade do Eu ao movimento da alteridade de achar-se nos olhos do desconhecido. No caso da antropóloga Nastassja Martin, ressonante no livro Escute as feras, a experiência é do deslumbramento de um beijo e da brutalidade de um ataque e contra-ataque. Ao encontrarem-se uma no olhar da outra, a antropóloga e a ursa, próximas a um vulcão no extremo leste siberiano, marcam mutuamente os seus destinos e fundem a condição de fera e humana.

Ursa-mulher e mulher-ursa, uma foge para dentro da bruma, com pedaços de uma mandíbula e ferida por um quebra-gelo; a outra, guarda-se na neve, vermelha de seu próprio sangue. Na falta do que se doou na troca desse primal encontro, refunda-se um sistema de crenças de povos como os evenki – estudados por Martin em 2015, quando é desfigurada – em que a predestinação do enlace de seus destinos é a base do exercício da vida, animal e humana, em comunidade. 

Escute as feras, trazido ao Brasil pela tradução de Camila Boldrini e Daniel Lühmanné, é regido pelo atrito que a própria autora estabelece entre si mesma e sua imersão em modelos de visualização da vida vinculados ao animismo: uma união do ambiente e da existência humana e animal em um único fluxo vital. Miêdka” e “matukha” são termos do idioma even que identificam sua condição de sobrevivência e transmutação, após o enfrentamento com o urso, à situação anormal de humanidade que lhe é atribuída. À antropóloga, esse estado de pária estrutura uma mudança na maneira que enxerga a si mesma – em um espaço de excepcionalidade, um tanto inadequado ao seu desenvolvimento de pesquisadora –, que altera o tom etnográfico para, também, hibridizar o texto.

Foto em preto e branco da antropóloga Nastassja Martin. No primeiro plano, uma mulher branca, de cabelos loiros presos em um coque desarrumado que cai em sua nuca. Ela olha ao horizonte e está vestida com uma blusa clara e um casaco, similar a uma jaqueta, preto. Ao fundo, montanhas rochosas e um céu nebuloso.
Orientada pelo antropólogo Philippe Descola, Nastassja Martin escreve sua tese de doutorado sobre o povo Gwich’in, do Alasca (Foto: Alexandre Lacroix)

Estilisticamente, Martin constrói um registro experimental e total do que se dedicou a analisar, no exercício de sua ciência, e de suas inscrições sensíveis aos acontecimentos, meticulosamente medidas pela sua escrita. Entre a etnografia e a autobiografia, a metodologia de Martin é o cruzamento de dois cadernos de viagem, descritos como diurno e noturno. 

O primeiro tem suas páginas preenchidas por notas de viagem, fragmentos do que percebe em sua imersão com os even e a desperta atenção, mesmo com todos os dilemas que atravessam a etnografia. O segundo é do âmbito da escrita do sonho, que evoca o íntimo e o exterior numa poética de imagens quase ritualísticas, como pinturas rupestres que reincidem um mundo do sentimento selvagem e da máxima expressão da vida, na igualdade da relação animal ou humana. São contrastes significativos tanto em sua maneira de visualização do mundo e de sua própria sobrevivência que, na narrativa, não se institui de uma moralização da violência nem de um arco de redenção; quanto de sua escrita: variável de momentos cirúrgicos de descrição a até fluxos bestiais e oníricos de prosa.

‘‘Fantasmático do desejo próprio às florestas, aos predadores solitários, à sua raiva, ao seu orgulho e à sua vigília. Tensão de seus encontros inesperados, inconfessáveis, improváveis, em devir, no entanto. Porque sozinhos eles se perdem, porque sozinhos eles se fecham, porque sozinhos eles esquecem. O cruzamento de seus olhares os salva de si mesmos ao projetá-los na alteridade daquele que os enfrenta. O cruzamento de seus olhares os mantém vivos.’’

Na dualidade estabelecida à estrutura de seu texto, a autora mobiliza a etnografia para a escrita de si quando desafiada a redescobrir a si mesma – com seu rosto desfigurado, do qual a ursa tomou-lhe parte da maçã do rosto e da mandíbula –, nesse novo território tomado de tensões: o seu próprio corpo. As questões psicológicas que a atravessam durante transferências incessantes por antigos hospitais da antiga ordem soviética, onde é posta à selvageria dos procedimentos médicos e legais envolvendo nacionalidade e gênero, é onde pensa um motivo maior a seu fatal encontro, que lhe propõe um novo significado por ainda estar viva. Portanto, no equívoco de sua epistemologia mas no exercício de uma liricidade autobiográfica, a evidente marca deixada pela espécie companheira à crença even é mais uma oportunidade individual de entender-se do que realmente uma maneira de debruçar-se sobre sua estrutura de pesquisa.

Rascunho feito a grafite pelo artista expressionista Edvard Munch. Na esquerda, observa-se um vulto de uma mulher ajoelhada abraçando um urso, não preenchido, o que lhe dá a impressão de ser branco ou claro. Os traços de grafites são evidentes. À direita, observa-se uma figura parecida, no entanto a mulher está mais agachada e abraça um urso agora escuro, negro, preenchdio pelo grafite.
‘‘Há tempos vim preparando o terreno que me levaria até a boca do urso, em direção ao seu beijo’’ (Arte: Edvard Munch)

Ainda é tempo das mitologias. Existe, nos gestos conflitantes do enquadramento de seu encontro com a ursa — muitas vezes descrito enquanto um abraço e um beijo — uma determinada eroticidade que parte da percepção de uma afetação, para além de necessariamente, de afeto, na qual a violência torna-se um espaço de proximidade inigualável. Se Escute as feras é uma fábula calculada nesses contrastes e escrita sobre a tradição indígena do sonho explorada por Ailton Krenak e pelas filosofias yanomami estudadas por Hanna Limulja, sua moral naturalmente reivindica outros modos de vida, ou, como colocado pela pensadora Donna Haraway, uma “autre-mondialisation” (outra-mundialização). 

Quando o pulso ferino de primalidade toma conta da experimentação de Nastassja Martin, é pela memória que constrói um espaço conjunto e verdadeiro. Aquele que, como nas imagens feitas a dedo em escuras grutas, remonta um passado mágico e possível, por outros exercícios de fazer o mundo, onde a técnica não colocou um corpo acima do outro, uma mulher abaixo de um homem e um humano-bixo acima de outras vidas.

Escavar o susto é, para essa narrativa de sobrevivência tomada de divagações — importantes para a composição do retrato sensível de si mesma —, encontrar sua própria essência, ao mesmo tempo que acessa a realidade antropológica da península de  Kamtchátka, o lugar de seus estudos. Para a mitologia even, o olhar do urso em si não é perigoso pela tentativa de vingança do antropocentrismo ou do domínio de um espaço vital, mas sim pelo fato de que, nos olhos da animalidade humana, as outras formas de vida encontram-se e entendem a si próprias em sua condição de alteridade. A ursa é tanto atacada por Nastassja – uma fera, em seus próprio papel – quanto devolve o susto, em uma metáfora da vida real sobre o misterioso assombro que é entender a si no outro.

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