Shameless: essa família é muito unida e também muito ouriçada

William H. Macy é o único ator de Shameless nomeado no Emmy 2021 (Foto: Showtime)

Ana Júlia Trevisan

Não vamos mais contar o que rolou semana passada” “Acabou”, “Não vai rolar”, “É um insulto”: dessa maneira se encerra o ciclo de onze anos da série que recepcionava com um atrativo recap e finalizava seus episódios com uma cena pós-créditos nível Marvel. Shameless é uma comédia com todos os modos de um bom drama. A produção gira em torno dos Gallagher: uma família disfuncional de seis irmãos, onde a mãe tem bipolaridade e abandonou o lar e o pai é um bêbado, drogado e negligente. Assim como grandes séries vide The Office e Skins, Shameless é um remake americano da série britânica de mesmo nome.

Para assistir Shameless você precisa ter certeza que está pronto para dar play na vida dos irmãos. Não há nada de bobinho na vida em Chicago, o consumo de drogas é feito na mesa de jantar ao lado das crianças, o mundo passa rasteiras diárias na família, mas ainda assim os Gallagher não se veem contra o ambiente e o sistema que conspira ao máximo contra eles. Os plots tem o propósito – reproduzido de maneira quase desproposital – de escancarar as desigualdades sofridas pela família de renda média baixa, aproximar o telespectador deles, oferecendo um espaço no sofá e compartilhando toda aflição, choro e pequenas alegrias.

Após 11 anos vivendo em Chicago, chegou a hora de nos despedir dos Gallagher (Foto: Showtime)

Se engana quem pensa que não há como dar boas risadas com Shameless – é que a vontade de chorar é maior. De todos os aspectos que tornam a série única, rir da própria desgraça é o maior alívio cômico deles. Antes de se aprofundar mais em um dramão, a produção tinha plots mais leves para equilibrar o texto, e é isso que os roteiristas trazem para a décima primeira temporada, que veio com a missão de colocar um ponto final na jornada dos Gallagher.

Com direito a referências ao piloto, o começo da temporada é mais descontraído. Após a pancadaria dos anos anteriores, Shameless se concentra em iniciar seu último ano com quase uma hora de episódio com pegada cômica. Uma liberdade para risadas com a família que começava a se despedir. Família essa que tinha como sua alma Fiona (Emmy Rossum), a irmã mais velha e guardiã dos mais novos. Fiona se despediu da série em sua nona temporada trazendo desafio para a season finale, já que o primeiro ano se ela na série foi atolado no barro. Outro grande desafio foi retratar a pandemia. FUCK 2020.

Diferente das outras séries que ignoraram o terror da pandemia em seu roteiro ou que a trouxeram com todos os meios de segurança, Shameless foi realista. Sem álcool em gel, máscaras no queixo, bares abertos clandestinamente e claro, um negacionista, a covid-19 foi representada em seu cerne nessa ficção. As sátiras feitas por Shameless nos primeiros anos eram engraçadas pelo nível de absurdo. Hoje, são engraçadas pois qualquer fidelidade com realidade não é mera coincidência. 

A produção, que nunca foi a favor dos bons costumes da família tradicional, começa seu ano final de maneira mais nostálgica, explorando plots criados há cinco, seis temporadas e resgatando toda a energia caótica, baixaria e cretinice que deram nome à série. Shameless não poderia estar mais sem vergonha, mostrando mesmo que as personagens estão tentando de verdade fazer o certo, ainda que seja do modo mais imoral possível. Vai dizer que eles roubarem uma ambulância, irem transar atrás dela, encontrarem um corpo morto e, por fim, se livrarem do defunto, é crime? 

Talvez seja toda essa imoralidade que fez com que a série, mesmo que completa em seus elementos de roteiro e atuação, nunca tenha saído vitoriosa no Emmy. Durante suas onze temporadas, Shameless ficou a estatueta apenas em 2015, com Joan Cusack levando Melhor Atriz Convidada em Série de Comédia, e em 2016 e 2017 por Coordenação de Dublês para um Programa de Variedades ou Série de Comédia. O nome que mais aparece na lista de indicados é dele, William H. Macy, o maior sem vergonha Frank Gallagher, patriarca da família. Emmy Rossum, a real, irrestrita e fantástica protagonista, nunca chegou a ser nomeada. É por causa do nome, hein Academia? 

O intérprete de Frank Gallagher concorre pelo episódio final da série (Foto: Showtime)

Mas chegou a hora de falar dele, Frank Gallagher, o pai dissimulado que tinha por filosofia que abandono e negligência são os melhores educadores para seu filho, você cria pessoas fortes e independentes. William H. Macy se mostrou um ator fenomenal e de talento ímpar ao dar vida a Frank, a origem dos traumas e problemas com os quais vimos os filhos tentando lidar em todos esses anos ao ar pela Showtime.

Um personagem odiável, mas que não dá para deixar um certo carinho de lado. Foram onze anos indo contra a própria índole e desejando a morte de Frank e quem diria que alguém como ele pudesse ter uma redenção. Com anos de abuso no álcool e nas drogas, o fim do personagem poderia acontecer por qualquer doença possível, mas os roteiristas tomaram o caminho um tanto surpreendente que foi de trazer o Alzheimer. A memória de Frank, se desfazendo aos poucos, por momentos parecia uma brisa pelas drogas ilícitas, mas logo se transformaram em cenas dolorosas pela perda prevista.

A décima primeira temporada trouxe um sentimento de ser dividida em duas partes. No começo nostálgico Frank se mostra um bom avô, pela primeira vez se importando com alguém sem esperar nada em troca. A relação que ele desenvolve com o filho mais novo, Liam (Christian Isaiah), é uma das mais agradáveis de assistir, é divertido ver ele e Frank juntos como eram Frank e Carl e ajuda a criança a ter uma das melhores evoluções das temporadas e traz um aparato no roteiro em lidar de uma forma mais fraterna com a figura deplorável que ainda é o pai da família.

O último episódio da primeira temporada e o último episódio da décima primeira temporada recebem o mesmo nome: Father Frank, Full of Grace (Foto: Showtime)

Falando em Carl (Ethan Cutkosky), ele é um dos grandes destaques da temporada. Com um desenvolvimento bem trabalhado, ele amadureceu, encaminhou seu futuro e se mostrou muito maior do que as ratazanas de farda. Foi no ato de Carl, que Shameless mais uma vez encontrou espaço para, sem tabus, trazer a tona a pauta do estupro, suas consequências na vitima e que ele pode acontecer de várias formas. Depois do “não” é estupro

Em contrapartida, Lip (Jeremy Allen White) foi um dos pontos negativos do ano. No início, os diretores acertaram o ponto do personagem como protagonista, mas depois, conforme a trama avançava, vimos a história dele voltar à estaca zero. Após o sexto episódio, que foi um divisor de águas (das límpidas para as águas do esgoto), Lip foi colocado para nadar em círculo na mesma história de colocar tudo a perder. Um dos personagens mais promissores da série não se importou com os irmãos, perdeu a casa, o emprego e teve outra recaída, tudo para inflar o próprio ego.

A pandemia pode ter sido um dos motivos para Emmy Rossum não ter retornado no encerramento de Shameless (Foto: Showtime)

Ian (Cameron Monaghan) e Mickey (Noel Fisher) foram praticamente as únicas salvações do fracasso que foi a décima temporada. Recém-casados, a série até acertou em colocar o casal Gallavich tendo problemas e ainda se ajustando no casamento, mas escolheram o assunto completamente desconexo com o tipo de casal que foi mostrado a série toda. Ao menos, a relação volta aos trilhos e eles são quase os únicos a terem um final concluído. Na temporada onze, o clima de casório está com Kevin e Veronica. A base estrutural mais firme de Shameless mereceu a linda cena de casamento dirigida por Shanola Hampton, intérprete de V.

Para a quase impossível missão de substituir Fiona, quem foi escalada foi Debbie (Emma Kenney). Obrigada a amadurecer desde os primeiros anos de Shameless, as decisões inconsequentes tomadas por ela durante a temporada, evitando os problemas, enchendo a cara, se drogando e destruindo relacionamentos, inclusive o dela, lembra Fiona. Mas, a tentativa descarada de arrumar uma substituta torna Deb uma chata de galocha. Dá para concordar com a garota em relação a futura venda da casa, porém não existe um centímetro de pano pra passar nas falas homofóbicas dela.

Shameless foi da água pro vinho, mas deixou o vinho avinagrar, se encerrando como sempre: sem a menor vergonha na cara de fazer os personagens evoluírem e sem concluir plot nenhum. Em 11 anos de cretinice, Shameless nunca teve um final feliz e não era cobrado da série que entregasse muito em seu encerramento mas não entregar nada foi sacanagem. A série sempre seguiu a linha de que tudo dá errado pra eles, mas usar seguir esse caminho até o segundo final incomoda. 

Não ver o crescimento profissional, nem de um deles que seja. A personagem mais proveitosa, por incrível que pareça, é Frank, com uma redenção a essa altura do campeonato que só funcionou por fazermos parte da família. Fiona que carregou a série por nove anos não chega a ser mencionada, nem dizem que ela enviou mensagem ou ligou. Foram doze episódios para uma despedida digna, mas por fim todos ficaram à mercê da própria sorte. Fucking Frank! Fucking Gallaghers!

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