Estante do Persona – Março de 2022

Arte retangular de cor azul. Ao centro há uma estante branca com três prateleiras. A primeira prateleira é dividida ao meio, a segunda prateleira é dividida em três e a terceira prateleira é dividida em três. Na parte superior lê-se em preto 'estante’, na primeira prateleira lê-se em preto 'do persona', à direita nessa prateleira está a logo do Persona, um olho com íris azul clara. Na segunda prateleira, ao meio, está a capa do livro “Homens sem mulheres”. Na terceira prateleira, à direita, está o troféu com a logo do persona. Na parte inferior lê-se em branco ‘março de 2022'.
Em Março, o Estante do Persona discutiu o melancólico Homens sem mulheres, do escritor japonês Haruki Murakami, e recuperou algumas obras de destaque para o Cinema das adaptações literárias (Foto: Reprodução/Arte: Ana Clara Abbate/Texto de Abertura: Bruno Andrade)

Depois de acompanhar os relatos cruéis de Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de despejo, o Clube de Leitura do Persona chegou em Março inspirado pela quase onipresente cerimônia do Oscar 2022, e decidiu reunir-se para debater a coletânea de contos Homens sem mulheres, do escritor japonês Haruki Murakami

Drive My Car, história que abre Homens sem mulheres, foi incrivelmente adaptada para o Cinema pelo diretor Ryûsuke Hamaguchi, em um filme de quase três horas com trechos inspirados em mais dois contos da mesma obra, Sherazade e Kino. Após suas quatro indicações no Oscar, vencendo na categoria de Melhor Filme Internacional, o tão aguardado longa chegou ao Brasil no dia 1º de abril, através da plataforma MUBI

No único encontro do mês, os membros do Clube do Livro debateram as nuances da obra, observando sua melancolia – que perpassa as sete histórias do livro –, a maneira a qual o autor reproduz homens quebrados e falidos em seus textos, e, principalmente, a forma como Murakami retrata o gênero feminino em seus contos. 

Além do escritor japonês, outro nome que se destacou no meio literário em Março foi o de Abdulrazak Gurnah. Ao final do mês, a Companhia das Letras lançou Sobrevidas, a primeira obra lançada no Brasil do tanzaniano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2021. A publicação dá início a uma série de quatro lançamentos do autor que a editora deve entregar futuramente. Entre eles, além de Sobrevidas, estão Paradise (finalista do Booker Prize de 1994), By the Sea e Desertion

A editora também montou uma campanha de arrecadação de fundos, junto ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), para as vítimas na Guerra da Ucrânia; por esse motivo, o livro Contos de Odessa, do ucraniano Isaac Bábel, passou a ser vendido no site da editora com mais de 65% de desconto, sem a cobrança de frete, cujo valor integral das vendas será entregue ao CICV. A obra clássica do autor captura o dia a dia na Ucrânia do século XX.

Como uma despedida de viagem – mas com o retorno breve e já agendado –, você fica agora com as dicas de leitura que os membros do Clube do Livro deixaram no Estante do Persona, as quais se pode ler no carro, deitado, no smartphone, ou como bem entender.

Livro do Mês

Capa do livro Homens sem mulheres, de Haruki Murakami. A imagem mostra um fundo preto, no qual estão espalhadas no lado esquerdo e na parte superior círculos nas cores preto, branco e rosa. Há uma faixa de cor rosa pouco acima do centro e dentro dela está escrito Haruki Murakami em fonte de cor preta, e Homens sem mulheres, em fonte de cor branca. No lado esquerdo ao nome do autor está o símbolo da editora Alfaguara, em fonte de cor preta.
Composta por sete contos ligados pela ideia de relacionamentos entre homens e mulheres, a obra é marcada por seu lirismo, e foi adaptada para o Cinema no longa Drive My Car (Foto: Alfaguara/Companhia das Letras)

Haruki Murakami – Homens sem mulheres (240 páginas, Alfaguara)

Lançado em 2014, Homens sem mulheres, do japonês Haruki Murakami, tem seu título inspirado em um conto de Ernest Hemingway, e é composto por sete narrativas que mesclam elementos oníricos e melancólicos, sempre deixando em aberto a dimensão sentimental dos personagens. A coletânea se abre com Drive My Car, conto que inspirou o laureado filme homônimo de Ryûsuke Hamaguchi, e conta a história de um ator e diretor de teatro que contrata uma mulher para dirigir seu carro. Esse mesmo personagem está adaptando Tio Vânia, de Tchékhov, em uma peça, e as questões levantadas ao longo da história – por que ele não dirige? O que aconteceu com a sua esposa? – são respondidas de forma lenta, como uma uma viagem tranquila de carro.

No conto Sherazade, Murakami narra uma história com evidentes referências ao Livro das Mil e uma noites, mas a subverte e transpõe seu ar fantástico na banal vida cotidiana. Kino, o mais longo conto da coletânea, tem semelhanças com outras de suas obras – principalmente Kafka à beira-mar (2002) –, e retrata um episódio no qual o protagonista homônimo encontra sua esposa dormindo com o melhor amigo. Depois desse evento, abandona sua vida pregressa e decide abrir um bar; no entanto, os clientes estranhos que passam a frequentar o lugar forçam com que Kino desobedeça as regras estabelecidas por ele próprio, e sua jornada solitária de reclusão se transforma.

O conto que dá título ao livro fecha a coletânea, e tem seu início com um telefonema, no qual o homem que a recebe ouve de outro indivíduo que “a mulher dele” se suicidou, e por esse motivo entrou em contato para informá-lo. A mulher em questão era sua amante, e o homem que ligou era o real marido da mulher. A partir desse momento, o protagonista começa a rememorar como a conheceu. O mais interessante é a forma como todos os contos do livro se interligam pelo sentimento de solidão, transposto inclusive na forma lenta de narrar. “Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres”.


Dicas do Mês

Capa do livro Me Chame Pelo Seu Nome. A capa mostra desenhos abstratos e coloridos, em laranja, verde, azul e marrom. No topo esquerdo da capa, vemos o nome do autor escrito em fonte branca. Na parte inferior direita, vemos o nome do livro, na mesma tipografia e cor.
O livro foi adaptado para as telas em 2017 e o texto de James Ivory venceu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado do ano seguinte (Foto: Intrínseca)

André Aciman – Me Chame Pelo Seu Nome (288 páginas, Intrínseca)

Em uma Itália fumegante em clima e desejo, o jovem Elio é encantado por Oliver, um estudante que vem passar as férias na casa de sua família. O homem será instruído pelo pai do jovem, um acadêmico de renome que, sazonalmente, recebe novas mentes para auxiliá-lo com os livros e sua pesquisa. De supetão, o franzino e contemplativo adolescente acaba se entregando a uma troca intensa com o recém-chegado, que chega para chacoalhar sua visão de mundo e seus sentimentos em efervescência.

Pelas palavras do egípcio André Aciman, ficamos tão enamorados e em transe quanto os protagonistas dessa combustão de verão. A adaptação cinematográfica, que tem em seu miolo o envolvimento de Luca Guadagnino, Timothée Chalamet e Armie Hammer, resgata o máximo que consegue da obra, mas quem se aventura pelas menos de trezentas páginas, embrenhadas em luxúria, encontra uma visão pouco esmiuçada do que significa o ato de estar apaixonado, de se ver entregue de corpo, alma e pêssego. – Vitor Evangelista


Capa do livro Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. A capa mostra o título do livro numa grafia estilizada, em fonte branca, em caixa alta, com arabescos, sob um fundo azul claro. Ao redor, existem ilustrações de teclas de piano, pincéis de pintura, notas musicais, folhas de livros, chapéus, luvas e flores, todas coloridas. Na linha inferior da imagem, existe uma faixa preta, onde está escrito, em fonte amarela e em caixa alta, “Louisa May Alcott”. Embaixo disso, está escrito o nome do livro, em branco e com apenas a inicial maiúscula. Em cima da faixa preta, existe uma faixa branca, onde está escrito, em preto, “Penguin Companhia”, e existe um desenho de pinguim colorido ao centro.
Se o tema é obra literária adaptada para o Cinema, Little Women não pode ficar de fora (Foto: Companhia das Letras)

Louisa May Alcott – Mulherzinhas  (592 páginas, Companhia das Letras)

Em 1868, Louisa May Alcott lançou uma das obras mais influentes e queridas da história da Literatura mundial, com uma roupagem que pressupunha exatamente o contrário para o contexto da época: um romance escrito por uma mulher, apresentando uma narrativa sobre mulheres, e intitulado Mulherzinhas (Little Women, no original em inglês). Para superar as expectativas e preconceitos, o livro mergulha no carisma de Meg, Jo, Beth e Amy, as irmãs March. Elas vivem, cada uma à sua própria maneira, entre os delicados anos de 1861 e 1865, marcados pela Guerra Civil Americana, que requisitou a presença de seu pai, precisando, assim, equilibrar as responsabilidades junto da mãe, Marmee, para manter a família e a casa em ordem. 

O cenário caoticamente familiar é o lugar que Alcott encontra para provocar reflexões sobre os padrões sociais que interferem na vida e liberdade das mulheres. Assim, através da observação de Meg, a obstinação de Jo, a mansidão de Beth e confiança de Amy, a autora desenhou – com contornos autobiográficos – uma analogia atemporal da vastidão feminina em eterno conflito com o mundo que tenta domá-la. De tão rica, a história de Mulherzinhas transcende a manifestação artística em que nasceu, destacando, entre diversas adaptações das mais variadas naturezas, o filme de Gillian Armstrong (Adoráveis Mulheres, de 1994) e, mais recentemente e principalmente, o de Greta Gerwig (mesmo título, de 2019), que foi indicado a seis Oscars em 2020, incluindo o de Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado. – Raquel Dutra


Capa do livro Pequenas Epifanias. Arte digital retangular. Na parte superior, vemos um céu azul-claro com uma nuvem branca. Próximo da nuvem, lemos Pequenas Epifanias em letras brancas. Na parte inferior, vemos um fundo branco e a mão direita de uma pessoa branca. O dedo indicador está levantado e, sobre ele, há uma borboleta azul e preta. Na linha que divide as partes superior e inferior da capa, lemos Caio Fernando Abreu. Caio e Abreu estão em letras pretas, enquanto Fernando está em letras brancas. No canto inferior esquerdo da capa, vemos o símbolo da editora Nova Fronteira. Ele é formado por um triângulo, um retângulo e as palavras Editora Nova Fronteira.
Embora Pequenas Epifanias não seja o melhor exemplo, a Literatura de Caio Fernando Abreu estabelece vários paralelos com a Sétima Arte (Foto: Nova Fronteira)

Caio Fernando Abreu – Pequenas Epifanias (240 páginas, Nova Fronteira)

Pequenas Epifanias é, antes de tudo, uma seleção de crônicas publicadas pelo escritor Caio Fernando Abreu entre as décadas de 1980 e 1990, nos jornais O Estado de São Paulo e Zero Hora. Afastando-se, no entanto, das coletâneas literárias mais convencionais, a primeira edição desse livro só foi desenvolvida em 1996, poucos meses após a morte do excepcional contista brasileiro. Mais do que uma publicação póstuma, a obra em questão é a escolha perfeita para quem quer ter um primeiro contato com os textos de Caio, já que ela compila elementos muito agradáveis aos mais diversos tipos de amantes dos livros, tais como a proximidade com o leitor, um constante tom de confissão, pessoalidade e subjetividade intensas, além de uma perceptível diversidade temática. 

De modo geral, a Literatura de Caio F. não é homogênea e, exatamente por causa disso, ela não assume um tom único, fugindo com maestria da mesmice. Em sintonia com essa constatação, Pequenas Epifanias consegue captar muito bem as nuances de uma escrita intensa, devota, artisticamente honesta, precisamente lapidada e, às vezes, até mesmo provocativa. Não é de se espantar, portanto, que algumas das crônicas presentes neste livro se aproximem demasiadamente daquilo que, por convenção, conhecemos como conto. Afinal, mesmo estampando páginas de jornais, Abreu pertencia de fato às artes literárias – e as minúcias do cotidiano nunca mais serão as mesmas para quem se apaixonar por essa figura artística tão encantadora. – Eduardo Rota Hilário


Capa do livro O Silêncio dos Inocentes. A lateral esquerda é amarela. Ao centro vemos a silhueta de uma cabeça de caveira com asas de mariposa na cor marrom. Atrás há formas irregulares e de simetria horizontal nas cores amarelo e marrom. Abaixo do meio há uma faixa amarela e nela lê-se em preto “O SILÊNCIO DOS INOCENTES”. Abaixo lê-se em branco “THOMAS HARRIS”. À direita vê-se em preto a logo da editora Record. O fundo é branco.
Apesar de pertencer a uma trilogia, Silêncio dos Inocentes pode ser lido separadamente (Foto: Record)

Thomas Harris – O Silêncio dos Inocentes (318 páginas, Record)

Poucos são os filmes que se consagraram Big Five na cerimônia de premiação do Oscar, mais incomum ainda é uma produção de Terror sair com a estatueta do maior prêmio da noite. O Silêncio dos Inocentes conseguiu o duplo feito se baseando na obra homônima de Thomas Harris. O livro de 1988 é o segundo na trilogia protagonizada por Lecter e responsável por introduzir a ávida Clarice Starling, uma das melhores alunas da turma do FBI. Explorando o processo de investigação e suas burocracias, a leitura fluida é um auxílio para entender toda glorificação da obra. 

Diferente de seu antecessor, Dragão Vermelho, a obra foca menos na mentalidade doentia de seu assassino e mais na sádica perspicácia de Hannibal e em sua relação com Clarice. Ela, por sua vez, é peça chave para os momentos de maior deleite de O Silêncio dos Inocentes. A construção da personagem abarca o machismo e o sexismo da área pericial e toda força de Starling no desafio de se encontrar com Lecter, mesmo que para isso precise passar pelos imundos corredores da cadeia, causando as cenas de maior desconforto no leitor. A maior responsabilidade de Harris nessa publicação foi esclarecer que Buffalo Bill não é um personagem transsexual, livrando o produto de um beco de problemáticas, principalmente pela época na qual foi escrita. – Ana Júlia Trevisan


Capa do livro Coração tão branco, de Javier Marías. Na imagem, há na parte inferior esquerda o desenho de um sutiã de cor branca, em um fundo de cor roxa. No lado direito, há, em um fundo de cor laranja, os escritos Coração tão branco, em fonte de cor branca. Abaixo desse título está o logo da editora Companhia das Letras, em fonte de cor preta. Na parte superior está escrito Javier Marías, em fonte de cor roxa em um fundo de cor rosa.
Com tradução de Eduardo Brandão, Corazón tan blanco é uma das obras fundamentais na carreira do espanhol Javier Marías (Foto: Companhia das Letras)

Javier Marías – Coração tão branco (272 páginas, Companhia das Letras)

A sequência de eventos que compõem nossas vidas e se sucedem ao longo dos dias parece ser uma causalidade esquisita. Essa é uma das obsessões de Javier Marías, que de alguma forma suspeita não existirem causalidades, pois tudo depende de nossa forma arbitrária de recortar o presente e transformá-lo em alguma mensagem oculta. Em Coração tão branco (1992), o escritor espanhol traça uma história através do fluxo da consciência de seu protagonista, Juan, um tradutor e intérprete que, desde o dia de seu casamento, começa a sentir “pressentimentos de desastre” – sem ter conhecimento que essa sensação é um tipo infortúnio de herança –, agravados durante a viagem de núpcias com Luisa, em Havana. Até então, ele ainda não sabia que sua tia, Teresa, havia se suicidado assim que regressou de sua própria lua de mel (o suicídio é, literalmente, a abertura do romance).

O que chama atenção na obra é a maneira a qual Marías reproduz as incertezas dos segredos, os mesmos que, apesar de longínquos, guardam reações explosivas quando revelados. Cada personagem em Coração tão branco reage de forma diferente às confissões descobertas, e o mote das histórias fica evidente desde o início: o título é uma referência a Macbeth, de Shakespeare, e é proferido na obra clássica quando Lady Macbeth apunhala o já morto rei Duncan – para dividir o peso do assassinato –, mas se envergonha por agora possuir um “coração tão branco”. A forma envolvente que Javier Marías desenvolve a história vale todo o esforço de leitura; ao terminar o livro, é muito difícil esquecer todas as revelações que nos foram confiadas. – Bruno Andrade

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