A face por trás de Confissões de uma máscara

Capa do livro Confissões de uma máscara, do autor Yukio Mishima, retratando um leque sobre um fundo azul com o título e o nome do autor ao centro
De maneira bastante intimista, Confissões de uma máscara explora temas de autoconhecimento e rejeição (Foto: Companhia das Letras)

Pedro Yoshimatu

“Pressenti então que neste mundo há um tipo de desejo semelhante à dor pungente. ‘Quero me transformar nele’ foi a vontade que me sufocou ao olhar para aquele rapaz todo sujo: ‘Quero ser ele’”.

Publicado no Japão em 1949 pelo aclamado autor Yukio Mishima, Confissões de uma máscara é um interessante retrato de muitas crises. A crise de seu protagonista, certamente – Koo-chan é um jovem em processo de descoberta da sua própria homossexualidade, em constante conflito com suas crenças pessoais sobre honra, valor próprio e masculinidade -, como também a crise de seu contexto histórico, marcado pela ideologia militarista do Japão Imperial e uma herança cultural em processo de transição e ressignificação. Mas é, principalmente, um livro sobre as crises de seu próprio autor, marcado pelo tom quase biográfico, uma sincera proximidade com o leitor na prosa e uma percepção bastante honesta sobre os dilemas enfrentados por um jovem LGBTQIA+ num período de grande repressão social.

O livro segue a história de vida de seu protagonista, desde as particularidades de seu nascimento, passando pelas primeiras memórias de infância e experiências com a puberdade, até sua idade adulta. Nela, o personagem principal se vê em meio a um cenário politicamente tenso e socialmente conturbado, com o horror da guerra pairando sobre todos. 

Essa decisão narrativa dá à trama uma cadência natural, espelhando-se, muitas vezes, em episódios da própria vida pessoal do autor; Koo-chan, o protagonista, tem seu nome inspirado no diminutivo de “Kimitake”, o nome de nascimento por trás do pseudônimo Yukio Mishima. Os temas de descoberta de si mesmo enquanto LGBTQIA+ perpassam esses cenários mais históricos, mas também possuem profundidade no percurso humano do próprio protagonista.

Yukio Mishima segurando um microfone enquanto discursa em um palanque, em frente a um quadro negro, com uma expressão austera
Mishima teve muito participação enquanto figura pública na política japonesa, muitas vezes de maneira controversa (Foto: Shinchosha/Japan Forward)

É interessante pensar em como a temática e o estilo narrativo de Mishima se articulam. Uma questão levantada desde o início do livro é o físico do protagonista, considerado longe do modelo tido como adequado ao seu redor. Num contexto em que a masculinidade é vista como algo austero, rígido e militarizado, Koo-chan encontra grandes dificuldades em se perceber como reflexo desse ideal inalcançável. Em contrapartida, Koo-chan venera as imagens pertencentes ao tipo de masculinidade que lhe é imposto; suas primeiras experiências de atração sexual são de contemplação quase platônica de homens com corpos esbeltos e que demonstram se encaixar nesse rígido modelo de beleza e autoaceitação. 

Um paradoxo instigante é proposto durante a sua infância: Koo-chan idealiza e se sente atraído pela imagem de um cavaleiro ocidental, vestido em uma resplandecente armadura e demonstrando, com grande ênfase, todos os valores masculinos repassados pela sociedade em seu entorno. Tal atração é posta em cheque quando uma de suas babás revela que o cavaleiro é, na verdade, Joana d’Arc, e a ideia de que uma mulher poderia utilizar vestes consideradas masculinas e desempenhar valores idealizados enoja e confunde o protagonista.

O autor Yukio Mishima sorri sem camisa sentado em um balcão, enquanto veste uma calça branca e revela o seu porte físico
O autor trabalhou, em seus textos e em sua vida pessoal, a questão do físico e o esforço para se adequar a um padrão (Foto: Getty Images)

Em 1970, Yukio Mishima cometeu suicídio, após uma tentativa de golpe no governo estabelecido depois da Segunda Guerra Mundial. O método escolhido é reflexo de seu percurso em vida: o autor optou por cometer seppuku, o ritual tradicional de suicídio do código de honra dos samurais. Mishima foi um grande crítico de uma ocidentalização do Japão, e um fervente crítico de ideologias estrangeiras se expandindo em seu país natal. 

Ainda assim, seu contexto social é o da intensa ressignificação da identidade nacional, e nesse sentido o autor se apega a elementos fundacionais da cultura japonesa como âncoras culturais (sobretudo a tradição xintoísta, a sacralização do Imperador enquanto figura política e a valorização de ideias militares tradicionais). 

Com tradução de Jaqueline Nabeta, Confissões de uma máscara permite ao leitor interessado observar mais de perto os detalhes de uma mente literária imersa em muitos conflitos, assim como seus dispositivos para administrar as crises internas e externas. Mais do que uma leitura recomendada para todos os interessados em questões LGBTQIA+, o livro debate sobre os conflitos inerentes a processos de transição, e aponta com maestria para a Literatura japonesa do século XX.

Deixe uma resposta