A fuga de si mesmo em Jamais o fogo nunca

Durante as 172 páginas de Jamais o fogo nunca, a escritora Diamela Eltit destrincha os paradoxos da militância política durante a Ditadura chilena (Foto: Reprodução/Arte: Jho Brunhara)

Bruno Andrade

“Pode o subjugado falar? Pode o oprimido falar? Pode o desiludido falar? Pode o derrotado falar?”, indaga Julián Fuks no prefácio de Jamais o fogo nunca, livro da chilena Diamela Eltit traduzido por ele. “Nas páginas deste livro não despontará nenhuma resposta precisa a essas questões fundamentais”, conclui. Essas são as cartas postas à mesa: Eltit não tem interesse em responder nenhuma das questões levantadas ao longo do romance, considerado seu trabalho principal; no entanto, o leitor encontrará uma espécie de distopia do século XXI, narrada de forma íntima, na qual há o aceno constante ao esquecimento em que são jogados aqueles que lutaram em favor da democracia, deixados à deriva.

Publicado no Brasil em 2017, com o lançamento oficial no Chile em 2007, Jamais o fogo nunca marcou a chegada das obras de Diamela Eltit no país, com um atraso de mais de 30 anos desde sua estreia literária, em 1983. O título do livro surge do poema Os nove monstros, do peruano César Vallejo, no qual escreve: “Jamais o fogo nunca/Fez melhor seu papel de morto frio”. O trecho, que também é a epígrafe da obra de Eltit, serve como uma das possíveis chaves de interpretação que o romance possibilita, a considerar o caráter de denúncia que lemos nos versos de Vallejo e durante todo o trabalho de Eltit, acenando desesperadamente para a desumanização que alguns indivíduos promovem, transformando-se em carrascos.

No livro, entramos em contato com um casal de ex-militantes políticos durante a Ditadura de Pinochet, subjugados dentro de um quarto onde as questões impostas pela vida política, que tanto exigiu de ambos, são colocadas em xeque. Existem ressonâncias beckettianas no espaço claustrofóbico do quarto, nas quais a narradora-protagonista examina o presente colapsado, compartilhado com seu marido, através dos olhos do absurdo, sendo esse homem um paradoxal líder militante libertário, porém extremamente autoritário. O engajamento político dos dois custa a vida do filho – e não somente –, o qual, em virtude do estilo de vida clandestina, morre no cômodo em que a narradora agora rememora seu passado.

Foto retangular colorida da escritora chilena Diamela Eltit. Na imagem, Eltit está com as duas mãos no bolso da calça, encostada em uma porta de madeira. Ela é uma mulher branca, com cabelos lisos curtos e grisalhos, veste uma camiseta roxa e um colar de cor cinza. Ao fundo há um banco de madeira, com duas almofadas floridas de cor preta e cinza, respectivamente, e uma janela com detalhes de madeira, na qual pode-se ver algumas árvores.
Diamela Eltit já ganhou diversos prêmios literários de renome, cujo mais recente foi o da Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), recebido em 2021 [Foto: Diario Pagina Siete]
Diamela Eltit nasceu em 1949 em Santiago, e obteve formação em Letras na Universidade do Chile, iniciando sua carreira como professora em escolas públicas. Desde 2007, dá aulas de Escrita Criativa na New York University. Sobre Jamais o fogo nunca, Eltit disse em entrevista que elaborou a história do romance após visualizar a militância como um símbolo do pertencimento. Além desse aspecto, a escritora motivou-se a dar voz à mulher militante, “que ficou fora do protagonismo durante esses anos”. Ao apresentar o marido da protagonista como um ser desprezível, monossilábico e violento, Eltit aponta para uma característica assustadora dos regimes repressivos: a totalidade violenta da Ditadura engloba inclusive aqueles que seriam suas alternativas, suas chances de libertação. 

O livro apresenta, talvez por uma escolha estética, personagens principais (a narradora e o marido) sem nome, cuja ausência coloca os corpos no centro do debate. Essa característica cria um diálogo com a política de desaparecimentos recorrentes nas Ditaduras, mesmo que de forma subjetiva. Desse modo, os corpos do romance estão desaparecidos, pois a falta de nome evidencia uma possível falta de identidade dessas pessoas. Sabe-se, porém, que o livro acontece em uma espécie de futuro pós-ditadura, no qual a protagonista segue como um espectro, viajando entre passado e presente, mas ainda, por alguma razão, vivendo enclausurada. Ela assume, assim, a posição de vigilante de seu marido – algo que só vamos entender o porquê próximo ao final do livro.

“Eu já tinha caído, apreendida como um animal selvagem ou um animal de circo, em plena via pública, cercada e capturada. Depois você cairia. Uma soma implacável, a célula completa: os dez. Sobrevivemos sete. Três mortos.”

Os caminhos entre ficção e memória também estão interligados em Jamais o fogo nunca, tendo em vista que Eltit constrói, através da oralidade, uma paisagem cerebral na qual o leitor tende a assimilar a clandestinidade do casal e o aprisionamento do quarto como uma evocação da claustrofobia de se viver em um regime ditatorial. Nesse aspecto, existem similaridades com os trabalhos de W.G. Sebald, escritor alemão conhecido por sua prosa prolixa e construção literária que embaça e mistura ficção com a não-ficção, abordando temas como a relação entre as vítimas da Segunda Guerra e do Holocausto – os mortos e seus parentes que sobreviveram – e a iminente dificuldade de se abordar a tragédia de nossos antepassados (o que, no fim, é também a nossa própria tragédia). Todavia, a premissa que norteia os trabalhos de Eltit e Sebald poderia ser a mesma: memória é ficção.

A abordagem literária da escritora dialoga com seu próprio passado, pois ela foi uma das fundadoras do Colectivo Acciones De Arte (CADA), grupo artístico criado em 1979 para lutar em favor da preservação da cultura, em plena Ditadura chilena. O coletivo propunha ideias de intervenção artística no espaço urbano, destruindo, assim, o conceito de ‘sala de arte’ – todo o espaço público deveria se transformar em uma sala de arte. Esse dado biográfico acena para a abordagem dos corpos ao longo do romance – às vezes chamados de “células” –, visto que há uma ideia de intervenção artística de forma visceral na vida cotidiana, transformando, assim, o objeto artístico em uma potente arma contra a repressão.

Foto retangular em preto e branco, na qual vemos, da esquerda para a direita, Juan Castillo, Lotty Rosenfeld, Raul Zurita, Diamela Eltit e Fernando Balcells. Os cinco são pessoas brancas, e estão sentados em degraus. Juan veste uma camisa cinza de manga longa, utiliza barba de cor preta e possui cabelos lisos de cor preta. Lotty possui cabelos grandes pretos, veste camiseta branca e calça de cor cinza, e está com as duas mãos unidas. Raul está sentado com os braços cruzados, vestindo calça preta e camisa de manga longa branca. Ele possui poucos cabelos e uma barba grande de cor preta. Diamela está com os dois braços cruzados à frente de suas pernas. Ela veste uma calça preta e camiseta preta, e possui cabelos lisos curtos, de cor preta. Por fim, Fernando veste calça cinza, camiseta cinza, porém mais escura, e possui cabelos pretos e um bigode de cor preta.
Da esquerda para a direita estão Juan Castillo, Lotty Rosenfeld, Raul Zurita, Diamela Eltit e Fernando Balcells; juntos, formavam o CADA (Foto: Paz Errázuriz)

Entretanto, a virada do milênio foi marcada por especulações sobre como os computadores e a internet seriam o futuro, e como poderiam controlar o planeta. Assim, o corpo humano estendeu-se (ou diluiu-se) em bits e bytes, em representações virtuais e alegações. Talvez por isso haja o esquecimento daqueles que lutaram pela democracia, visto que não há memória coletiva capaz de sobrepor a grandiloquência individualista proporcionada pelas redes. Vale lembrar que o livro foi publicado em 2007, e não por acaso trata-se de um romance que, mesmo transitando entre os tempos, se passa no pós-horror ditatorial. Desde o início se trata de uma lembrança.

Jamais o fogo nunca foge das convenções naturais sobre o romance, sendo uma obra questionadora e desafiante do ponto de vista formal, mas profundamente original. Com um panorama histórico, social e político que ainda marca todos nós latino-americanos, o livro mostra o poder – seja político e social (Ditadura), seja físico (marido) – não apenas como um exercício executado por aqueles que o assumem, mas também como uma ordem capaz de deixar marcas profundas nos indivíduos – como as cicatrizes em um corpo.

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