Estante do Persona – Janeiro de 2023

Para começar 2023, Aos Prantos no Mercado desbota os cinzas e pretos da dor do luto no Clube do Livro do Persona (Arte: Nathália Mendes/Texto de abertura: Jamily Rigonatto)

“Às vezes, meu luto é igual a ter sido deixada sozinha em uma sala sem porta nenhuma. Toda vez que eu lembro que a minha mãe morreu, parece que estou batendo contra uma parede que se recusa a ceder. Não há escapatória, só uma superfície dura contra a qual eu me choco vez após outra, um lembrete da realidade imutável de que eu nunca mais vou voltar a vê-la.”

– Michelle Zauner

O Clube do Livro do Persona deu início ao ciclo de 2023 com direito a todas as emoções presentes nos processos do luto. Com a leitura de Aos Prantos no Mercado, de Michelle Zauner, nossos leitores experimentaram a dor, as memórias e os afetos através das prateleiras do H Mart em Nova York. Abrindo portas para a intimidade, a obra da vocalista da Japanese Breakfast caminha, entre temperos e lágrimas, pelas reflexões desencadeadas na artista após a morte da mãe.

Desde as primeiras páginas do livro, há o gosto de uma experiência sensorial. Enquanto narra a passagem pelos corredores de um mercado de comidas coreanas, a artista evoca cheiros, texturas e cores para ilustrar as questões que marcaram suas lembranças. A cada embalagem vista, o resultado é um conjunto de reações lacrimosas misturadas aos flashbacks de sensações e momentos em que a comida representava a ligação entre mãe e filha. 

O livro, publicado em outubro de 2022, é a continuação das páginas expostas na revista The New Yorker em 2018. A versão final da obra trouxe o ensaio na forma do primeiro capítulo das 288 páginas que compõem o conjunto. No Brasil, a editora Fósforo foi a responsável pela publicação, com tradução de Ana Ban e capa ilustrada pela quadrinista Ing Lee

Através de suas palavras, a cantora e escritora consegue expor não só como funcionava a relação com a própria mãe, como também gerar pensamentos sobre o amor e as formas singulares sob as quais esse sentimento se porta. Assim, as relações não ganham um tom de perfeição, mas mostram o apreço entre os gestos e atitudes. A austeridade e rigidez que envolvem a criação de Michelle ainda abrem espaço para as ponderações de sua visão acerca da mudança de perspectiva visível entre a adolescência e a vida adulta.

O texto também traz a birracialidade como pauta e explora os impactos dessa condição na própria concepção do ser e pertencer. Em diversos momentos, as pontas soltas da ideia de não se sentir inteira étnica e culturalmente passeiam ao redor das angústias proporcionadas pela perda. Zauner, que é filha de mãe coreana e pai estadunidense, percorre a trilha das fragilidades de suas tradições e relações com os Estados Unidos e a Coréia do Sul.

Em sua estreia literária, a cantora de 33 anos é pessoal e trabalha o processo de luto de um aspecto já apresentado em seus trabalhos musicais. Aqui, somos convidados em um universo extremamente particular e humano. Seja na tristeza, na raiva ou na inveja, tudo soa em notas de singularidade escritas de forma extremamente descritiva, e o uso da linguagem remonta as imagens em vivacidade na cabeça de quem lê. 

Mas como os aspectos de sentir são vorazes, o que não falta é experimentação, melancolia, possibilidades em mundos reais ou ficcionais. Por isso, como de costume, a nossa editoria deixa sua lista de selecionados nas mãos de quem busca mais lágrimas ou prefere se moldar às páginas bem humoradas com as indicações de Janeiro no Estante do Persona.

Livro do Mês

Lançado no Brasil em 2022, Aos Prantos no Mercado é uma investigação sobre o luto (Foto: Fósforo)

Michelle Zauner – Aos Prantos no Mercado (288 páginas, Fósforo)

Para Michelle Zauner, a comida é uma espécie de máquina no tempo. Em Aos Prantos no Mercado, é através dos alimentos que a artista rememora os momentos com a mãe, que faleceu em 2014, vítima de câncer. Isso ocorre, mais especificamente, quando Zauner vai ao H Mart, supermercado estadunidense especializado em comida coreana, onde compartilha experiências sensoriais de luto e identidade. 

Nessas memórias, ter uma dupla origem é como viver uma fratura. Sendo a comida sua principal ligação com a Coréia do Sul, é também na comida que Zauner encontra uma das bases na educação sentimental, superando traumas da infância que dão lugar a uma nova responsabilidade sobre as escolhas da vida adulta. A autora aborda temas como perda, amor, saudade e família com uma sensibilidade tocante e um tipo de humor sutil.

Com uma linguagem poética e envolvente, a vocalista de Japanese Breakfast conduz o leitor por outros momentos marcantes de sua vida, como o relacionamento com seu pai e o processo de descoberta da Música, ao ganhar sua primeira guitarra da mãe – que logo se arrepende. Aos Prantos no Mercado também traz reflexões importantes sobre a cultura coreana e o impacto da imigração na formação da identidade.


Dicas do Mês

Capa do livro Se deus me chamar não vou, de Mariana Salomão Carrara, publicado pela editora Nós. Na imagem, de fundo rosa pink, há um ziguezague horizontal na cor laranja pastel que se faz presente em toda sua totalidade. Na parte superior, vemos o título centralizado e escrito em letras minúsculas na cor azul escuro. Na parte inferior, também centralizado, vemos o nome da autora escrito em letras maiúsculas na cor branca. Um pouco abaixo, no lado inferior esquerdo, vemos uma espécie de etiqueta da mesma cor que o título com o nome da editora dentro, escrito em letras maiúsculas na cor branca.
“Acho que vem daí a palavra solidão, pessoas tão sólidas que ninguém vem checar se estão ruindo” (Foto: Nós)

Mariana Salomão Carrara – Se deus me chamar não vou (160 páginas, Nós)

Se deus me chamar não vou faz parte do pequeno grupo de obras que possuem a capacidade de nos transportar de volta para determinadas fases da vida. Não é exagero dizer que a grande qualidade do livro é a incrível habilidade que a autora tem de reviver a idade dos onze anos – aquela que, como Maria Carmem esclarece com precisão, é uma espécie de limbo e se mostra como o suficiente para perder o medo de morrer e ter vontade de saltar de guarda-chuva pela janela de vez em quando. “Onze anos é a pior idade do universo, dura pelo menos cinco anos”, ela escreve.

O romance de Mariana Salomão Carrara acompanha os escritos da própria protagonista e expõe a sensibilidade de uma criança que tem sua costumeira solidão potencializada por uma nova presença em seu cotidiano, o que atravessa sua vida, suas relações e seus pensamentos e acaba por trazer transformações conflitantes. Ao experienciar o que é ser invisível justamente por ser visível demais, é no eco criado pela ausência das pessoas que a cercam que suas palavras reverberam. Densa e leve ao mesmo tempo, essa é uma leitura que permanece conosco mesmo após seu fim; afinal, todos nós estamos familiarizados com o turbilhão de sentimentos que acompanha a pior idade do mundo. – Raquel Freire


O conto A loteria foi publicado na prestigiada revista The New Yorker em 1948 e é considerado referência na Literatura norte-americana (Foto: Alfaguara)

Shirley Jackson – A loteria e outros contos (264 páginas, Alfaguara)

Grande referência na Literatura de Horror e tendo inspirado autores e cineastas contemporâneos, o trabalho de Shirley Jackson é – não misteriosamente – menos conhecido do que o dos homens do gênero. Resgatando a única coletânea publicada em vida pela escritora americana, A loteria e outros contos reúne contos curtos e horripilantes, que demonstram o poder de Jackson de criar uma atmosfera tensa com poucas palavras.

No curtíssimo A Bruxa, por exemplo, a Rainha do Mistério tensiona o leitor em um simples encontro no vagão: mãe e filho trombam com um desconhecido, que assusta a criança com a história de um assassinato. Em A Renegada, a cadela de uma dona de casa passou a matar galinhas e os vizinhos não vêem alternativa a não ser ‘dar um jeito nela’. Com cenários breves e personagens bem contextualizados, a crescente tensão dos contos-capítulos de A loteria e outros contos mostram o porquê de Shirley Jackson inspirar o Terror. – Vitória Gomez


Capa do livro O queijo e os vermes. Na parte superior da capa, de fundo verde esmaecido, está escrito o nome do autor Carlo Ginzburg centralizado, em branco e com um sublinhado em vermelho. Logo abaixo, está escrito o título do livro “O queijo e os vermes” centralizado e em amarelo. No centro da capa, há uma imagem de uma cesta com tipos variados de queijo. Na parte inferior, está escrito “O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição” centralizado e em branco, seguido pela logo da editora Companhia das Letras.
O queijo e os vermes é um alerta de gatilho à consciência da Igreja (Foto: Companhia das Letras)

Carlo Ginzburg – O queijo e os vermes (271 páginas, Companhia das Letras)

Carlo Ginzburg coloca uma lupa sobre uma trama que, tradicionalmente, passaria despercebida pelo olhar macro-histórico, ou seja, O queijo e os vermes é a degustação da individualidade a qual pouco aparecia no cardápio da Idade Média. Publicado pela primeira vez na Itália em 1976 e lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 1987, o livro assume o compromisso de manter o tema da Inquisição relevante em um mundo que luta para esquecê-lo, ou melhor, abafá-lo.

O queijo e os vermes é um retrato do cotidiano monótono e, ao mesmo tempo, tenso da Idade Média sob a perspectiva de Menocchio, um moleiro que tinha, literalmente, a faca e o queijo na mão e não hesitou em usá-los contra a Igreja. Em outros termos, a obra percorre as crueldades difundidas pela Inquisição, assim como a ousadia do protagonista em enfrentar o Tribunal do Santo Ofício com apenas uma ideia herege e um sonho. O assunto da liberdade religiosa ainda segue em pauta e a Igreja, apesar de alegar estar diferente, fez mudanças significativas apenas na moda, trocando túnicas por ternos. – Ana Cegatti


Capa do livro Se não eu, quem vai fazer você feliz?: Minha história de amor com Chorão da escritora Graziela Gonçalves. Na arte de capa, uma imagem de Graziela e Chorão é sobreposta por um filtro azul e vermelho. Ela é uma mulher branca de cabelos e olhos claros. Ele é um homem branco de cabelos escuros e olhos claros. Ambos sorriem. Na parte superior centralizada, o título principal do livro “Se não eu, quem vai fazer você feliz?” está escrito em letras garrafais vermelhas. Logo abaixo, o subtítulo “Minha história de amor com Chorão” está escrito em letras garrafais brancas. Na parte inferior e centralizada está escrito o nome da autora “Graziela Gonçalves” em letras vermelhas.
O livro de memórias de Graziela Gonçalves foi lançado 5 anos após o falecimento de Chorão (Foto: Paralela)

Graziela Gonçalves – Se não eu, quem vai fazer você feliz? Minha história de amor com Chorão (262 páginas, Paralela)

Se não eu, quem vai fazer você feliz? Minha história de amor com Chorão é o primeiro e único livro de Graziela Gonçalves, viúva de uma das vozes mais célebres da Música brasileira, o Chorão. Com uma escrita sincera, vulnerável e apaixonante, a musa de grande parte das composições do vocalista do Charlie Brown Jr. transborda as emoções deixadas por uma trajetória não somente marcada pelo romance, mas também pela decepção e pelo amadurecimento.

O conjunto de memórias é repleto de fotografias inéditas e revelações. A leitura, que precisa ser cadenciada para a total compreensão de fatos atordoantes, faz com que a curiosidade não se torne o foco da obra, mas sim os sentimentos guardados no olhar de quem partiu deste plano e que, incrivelmente, permanece intenso. Com a sensibilidade de Gonçalves, Se não eu, quem vai fazer você feliz? traz a realidade de uma das histórias de amor mais cantadas do país. – Nathalia Tetzner


Capa do livro Jurassic Park de Michael Crichton, Editora Aleph o título do livro está centralizado no meio da capa, em vermelho, com uma faixa branca dentro das letras. Ao fundo há o desenho de um fóssil de Tiranossauro Rex na vertical
O clássico filme dos anos 90 tem inspiração literária (Foto: Aleph)

Michael Crichton – Jurassic Park (525 Páginas, Aleph)

Inspiração para o filme Jurassic Park (1993) de Steven Spielberg, o livro homônimo de Michael Crichton é uma aventura científica estonteante que nos leva a uma versão menos Family Friendly do já famoso parque dos dinossauros. Desta vez o suspense e o terror se misturam em um alerta importante sobre a manipulação genética e quão longe a ciência moderna pode ir.

Ian Malcolm, Alan Grant e Ellie Sattler também são os protagonistas no livro, e são eles que irão desvendar os segredos sobre a clonagem e proteger os netos do bilionário John Hammond, dono do parque, quando as criaturas pré-históricas fugirem do controle. O romance nos traz uma versão mais completa e filosoficamente profunda em relação ao filme clássico dos anos 1990. – Guilherme Dias Siqueira


Vencedor do National Book Critics Circle Award, o relato de Maggie Nelson foi colocado como um dos melhores livros do ano de 2015 pela revista New York Times (Foto: Autêntica)

Maggie Nelson – Argonautas (160 páginas, Autêntica)

Cartas de amor, sejam na forma de poemas enamorados ou de romances epistolares, são construções recorrentes à Literatura. O que pouco se analisa é que a escrita de cartas de amor pouco são realmente um exercício de alteridade: são mais gestos narcísicos de quem escreve, tanto na tentativa de entender essa estranheza gigantesca do sentimento quanto de, minimamente, se fazer reconhecido e transparecer-se, um pouco, a quem lê.

Inspirado na estrutura de Fragmentos de um discurso amoroso (1977), de Roland Barthes, a escrita em torrente de Maggie Nelson reconhece, em si mesma, esse traço monologuista que circunscreve, numa cronologia não linear, os limites de Argonautas. No entanto, a leitura de seu texto, que mistura um relato autobiográfico com um artigo teórico que movimenta, como guias a sua escrita, a filosofia de Ludwig Wittgenstein, Eve Sedgwick e Judith Butler, emula nada além de uma vital aproximação ao outro. A carta de amor de Maggie Nelson possui variados destinatários – do próprio ato de se escrever até os estudos de pediatria desenvolvidos por Winnicott –, mas seu remetente central se figura no corpo. 

No seu próprio corpo, atravessado pela mudanças da gravidez de seu filho, descrito como um evento magicamente queer, onde o que existe é a relação íntima e diferentemente radical entre si e o outro. No corpo de seu companheiro, uma pessoa não binária que a desafia a entender como se constroem as paixões e dinâmicas de uma união entre duas pessoas quando uma delas declara-se, como sempre ressalta Paul B. Preciado, um indivíduo em travessia. Contudo, é no corpo do texto que se enraíza a mais bela de suas reflexões: seriam as palavras capazes e boas o bastante para capturara complexidade de seu sentimento? São inúmeras as respostas, mas, em Argonautas, Maggie Nelson prefere encontrar o amor na inexpressibilidade que suscita toda a sua escrita e em todas as palavras que, em tentativas falhas, tentam apanhar aquilo que lhes escapa. – Enzo Caramori


Traduzido por José Rubens Siqueira, o livro foi adaptado para os cinemas em 2009, no filme homônimo dirigido por John Krasinski (Foto: Companhia das Letras)

David Foster Wallace – Breves entrevistas com homens hediondos (376 páginas, Companhia das Letras)

Breves entrevistas com homens hediondos (1999) é marcado por uma questão primordial: trata-se da primeira obra publicada por David Foster Wallace após todo o barulho que Infinite Jest (1996; Graça Infinita, 2014) fez, quando, três anos antes, implodiu o mundo literário e abriu um horizonte de possibilidades linguísticas. Em 25 contos – alguns “minicontos”, como o primeiro de apenas oito linhas – caracterizados pela repetição e interrupção, o livro é marcado por novos experimentos de forma e linguagem, culminando nesse que possivelmente é o trabalho mais experimental do escritor.

Embora Wallace force, em diversas ocasiões, o leitor a participar do exercício literário – exigindo reflexões agudas ou criando metanarrativas –, nada chega a ser “vazio” ou sem propósito. De fato, nada estaria tão longe de seu projeto literário, que primava pela sinceridade e honestidade. Esse processo, então, se sintetiza em contos como A pessoa deprimida – em que as notas de rodapé se expandem à medida que a protagonista se afunda ainda mais na depressão –, Para sempre em cima ou Octeto. Seu brilho especial reside nos diversos fragmentos de “entrevistas” espalhados pelo livro (que dão título à coletânea), nas quais as perguntas e réplicas da entrevistadora são suprimidas e só lemos as respostas de homens hediondos, que apresentam variados tipos de disfunções sociais. Por essas e outras razões, Wallace sempre vale a leitura. – Bruno Andrade

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