Em Aos prantos no mercado, Michelle Zauner chora entre temperos e memórias

Imagem retangular de fundo branco. No canto superior, está centralizado a logo do Persona, um olho com íris na cor amarela e pupila em preto no formato triangular de play. No lado direito dessa logo, está escrito "Clube do Livro do Persona" preenchido por um fundo preto e com letras transparentes que correspondem à cor do fundo branco. Abaixo está escrito “Em Aos prantos no mercado, Michelle Zauner chora entre temperos e memórias” em letras pretas, sendo "Aos prantos do mercado" em letras amarelas. Mais abaixo, no canto esquerdo, há uma imagem retangular da capa do livro de fundo vermelho. No topo da capa, de forma centralizada, está escrito o nome da autora "Michelle Zauner" na cor branca e, logo abaixo, uma ilustração de uma sequência de quadrinhos. O primeiro quadrinho mostra uma cesta cheia de mercado, o segundo mostra um vaso de flor, o terceiro mostra uma laranja sendo descascada e o último mostra a preparação de uma refeição com muitos ingredientes postos sobre uma mesa. Na parte inferior da capa, de forma centralizada, está escrito o título do livro "Aos prantos no mercado" em letras amarelas. Ao lado direito da imagem, está escrito "À medida que Zauner se aliena ao preparar as refeições para a mãe, com a garantia de que Chongmi recebe as calorias suficientes para sobreviver, o seu próprio apetite diminui, consequência da 'esperança desesperada de que a escuridão não fosse invadir'." em letras pretas. Abaixo do texto está escrito “Por" em letras pretas, seguido de "Bruno Andrade" em letras amarelas. No canto inferior há um sombreado amarelo que está iluminando o escrito "Crítica", também em amarelo.
Lançado no Brasil em 2022, com tradução de Ana Ban, Aos prantos no mercado foi a obra debatida no Clube do Livro do Persona em Janeiro de 2023 (Foto: Fósforo/Arte: Ana Cegatti)

Parecia que o mundo tinha se dividido em dois tipos diferentes de pessoas, as que haviam sentido dor e as que ainda iriam sentir” (pág. 192)

Bruno Andrade

Com a morte da mãe, Michelle Zauner passou a enfrentar uma terrível nostalgia ao entrar no H Mart, supermercado especializado em comida asiática. Embora seja amargo lembrar de quando sua matriarca, Chongmi, morreu vitimada por um câncer em 2014, ela pode se lembrar com tranquilidade do gosto que sua mãe tinha para comida: entre o salgado e o “fumegando de quente”, que, por algumas razões, definiam sua forma de exercer a maternidade. “Por mais crítica ou cruel que ela pudesse parecer – sempre me forçando a atender a suas expectativas obstinadas –, eu sempre sentia o afeto dela irradiando das merendas que ela preparava para eu levar à escola e das refeições que ela cozinhava para mim bem do jeito que eu gostava”. As peregrinações repletas de tristeza sustentam o primeiro capítulo de Aos prantos no mercado, livro lançado em 2022 no Brasil pela editora Fósforo, cujo primeiro capítulo é o ensaio homônimo publicado na The New Yorker.

Diferente do que se pode imaginar, Zauner decidiu escrever o livro somente depois de ter publicado o ensaio. A repercussão avassaladora do texto na revista foi reproduzida na obra literária, que ficou 14 semanas seguidas nas listas de mais vendidos do The New York Times. Para a escritora coreana-americana, artista musical e fundadora da banda Japanese Breakfast, a comida é um portal. Na praça de alimentação do H Mart, Zauner chora ao consumir seu almoço, enquanto percebe que todos estão sentados, comendo em silêncio, porque estão “em busca de um pedacinho do nosso lar, de um pedacinho de nós mesmos. Procuramos um gostinho disso nos pedidos de comida que fazemos e nos ingredientes que compramos. Então nos separamos. Levamos as compras para o alojamento da faculdade ou para uma cozinha suburbana e recriamos o prato que não poderia ser preparado sem essa viagem”.

“O amor dela era mais do que inflexível. Era brutal, com força industrial” (Foto: Michelle Zauner/The New York Times)

Michelle Zauner se mudou com a família para Eugene, nos Estados Unidos, quando tinha nove meses de idade. Aos 15 anos, após ver uma apresentação de Karen O – a vocalista do Yeah Yeah Yeahs –, ganhou a primeira guitarra da mãe que, pouco depois, se arrependeu do presente. Mas, mesmo que a Música tenha sido um refúgio para a adolescente deprimida, Zauner foi influenciada textualmente por Joan Didion, Philip Roth, Vladimir Nabokov e pela HQ Fun Home (2006), de Alison Bechdel, decidindo, então estudar Escrita Criativa na Bryn Mawr College. Na faculdade, escreveu majoritariamente textos de ficção – foi lá, inclusive, que iniciou os primeiros projetos musicais, consolidados em Japanese Breakfast. Aos 25 anos, após concluir a graduação, Zauner viveu ostensivamente sem roteiro, se “debatendo com a realidade, vivendo a vida de uma artista sem sucesso”. Nesse período, Chongmi ficou doente.

Sua primeira publicação musical foi June (2013), um disco amador resultado da parceria com Rachel Gagliardi, criado a partir das canções disponibilizadas diariamente no mês de Junho de 2013 em uma página do Tumblr. Mas é em Psychopomp (2016), o primeiro disco de estúdio de Japanese Breakfast e a primeira publicação após a morte de Chongmi, que Zauner enfrenta abertamente a perda da mãe, cujo título tem origem na história mitológica dos psicopompos, que tem a missão de guiar as almas dos mortos para o pós-vida.

No fim da vida da mãe, os papéis parecem se inverter. À medida que Zauner se aliena ao preparar as refeições para a mãe, com a garantia de que Chongmi receberá as calorias suficientes para sobreviver, o seu próprio apetite diminui, consequência da “esperança desesperada de que a escuridão não fosse invadir”. Talvez, se ela pudesse carregar a dor da mãe e realizar o “ritual da filha única”, haveria a possibilidade de intermediar uma cura, na expectativa de fazer as pazes com a rebeldia adolescente de uma jovem com anseios desvinculados dos interesses maternos.

A bem da verdade, o que Crying in H Mart (no original) esclarece é que os principais momentos de conexão legítima entre Zauner e Chongmi se davam através da comida; principalmente por isso, a tristeza ressurge ao entrar no mercado. A prosa íntima do livro é, ao mesmo tempo, autodepreciativa e atenta, com descrições texturizadas das qualidades estéticas e sentidas dos momentos vividos pela artista. Trata-se de um livro de memórias muito ancorado no ensaio, cujas ligações entre experiências pessoais de luto e identidade ganham corpo em todo o texto. 

“Falei sobre como o amor era uma ação, um instinto, uma reação suscitada por momentos não planejados e pequenos gestos, uma inconveniência a favor de outra pessoa” (Foto: Rebecca Sapp)

A morte e a melancolia perpassam toda a obra de Michelle Zauner, talvez resultado da vida fragmentada da artista, dividida entre a ancestralidade sul-coreana e a vivência contemporânea nos Estados Unidos. O sentimento de ausência parece presente em toda a obra – seja pela morte da mãe, propriamente, ou seja na morte simbólica de um tipo de cultura. Não por acaso, suas melhores canções representam estados avançados de autoconsciência, mesmo em faixas que compõem Jubilee (2021), álbum descrito por Zauner como seu projeto “mais alegre”.

Em adaptação para o Cinema por Will Sharpe, ator de The White Lotus, com roteiro assinado pela própria Michelle Zauner, Aos prantos no mercado não é necessariamente um livro difícil de ler, mas uma obra melancólica. No final do livro, Zauner nos conta que decidiu fazer um casamento de última hora em seu próprio quintal, sabendo que sua mãe poderia não viver muito tempo. Parece que, ao compartilhar suas experiências, Michelle Zauner constrói uma ode à memória de Chongmi – e nos permite enxergar sob seus olhos e consciência por algumas páginas.

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