Time: tudo pode mudar em vinte anos e nada pode mudar em duzentos deles

Imagem do filme Time. A imagem apresenta um porta-retrato de uma familía repousado em uma mesa inclinado levemente para a diagonal. No porta retrato, na vertical, está a foto de parte da família. Ao centro da fotografia, está a mãe, Fox Rich, uma mulher negra de cabelos cacheados que usa um lenço no pescoço. Ao redor dela, atrás e em cima e na frente e embaixo, estão quatro filhos, todos entre 10 e 6 anos negros. Os que estão atrás dela são os mais velhos, e os que estão na frente são os mais novos. Todos sorriem e posam para a câmera. A moldura do porta-retrato é simples, sem decorações trabalhadas, e branca. A imagem está toda em preto e branco.
Time, filme realizado em parceria com o jornal The New York Times, debate os impactos do encarceramento em massa e pauta o abolicionismo penal na categoria de Melhor Documentário do Oscar 2021 (Foto: Reprodução)

Raquel Dutra

Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados”, diz a 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que ‘aboliu’ a escravidão no país em 1865. Um dos maiores marcos da Terra da Liberdade, no entanto, guardou uma ressalva em seu texto, definindo logo em seguida que “os devidamente condenados por um crime” eram a sua exceção, criando em si mesma uma condição que permitia a prática do que acabava de extinguir. A conclusão da premissa da Emenda é literal e simples: quando você é condenado, você se torna um escravo do Estado.

Não à toa, o termo que se usa para definir a quem luta pelo fim do sistema carcarário vigente é o mesmo que se usava para se referir a quem lutava pelo fim da escravidão. A longo prazo, o que o governo de Abraham Lincoln fez com o que deveria ser um avanço na garantia do direito à liberdade, à vida e à igualdade foi permitir o desencadear de um fenômeno social denominado por estudiosos como o sistema escravista moderno. No país que abriga 5% da população mundial, está 25% da população carcerária do planeta. Assim, a cada quatro presidiários ao redor do mundo, um está encarcerado nos Estados Unidos. Como diz sua própria lei, essas são as pessoas submetidas à escravidão no século 21, e essa é a provocação de Time.

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A Liga da Justiça de Zack Snyder não foi feita para você

Cena do Snyder Cut. Na cena, vemos Diana segurando uma flecha. Ela é branca, tem pele clara e cabelo escuro preso num coque, veste roupas pretas e olha para o horizonte com expressão de preocupação. O cenário ao fundo está desfocado mas podemos ver ruínas de templos de mármore branco.
Lançada 4 anos depois de sua concepção, a Liga da Justiça de Zack Snyder é mais que um reles exercício de ego, é uma demonstração de empatia (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

A Liga da Justiça de Zack Snyder não foi feita para você. E nem para mim. Por mais que a liberação do filme tenha acontecido pelo apoio massivo dos fãs do diretor, as quatro horas e dois minutos de exibição não são destinadas a ninguém além de Autumn Snyder. A jovem filha do cineasta se suicidou enquanto os pais trabalhavam na primeira versão da aventura da Liga. A tragédia familiar afastou Zack do controle criativo dos personagens, logo em seguida veio a contratação do crápula Joss Whedon e a finalização do longa de 2017 naquele misto de martírio e bugiganga defeituosa.

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Bela Vingança incomoda e você sabe o porquê

Cena do filme Bela Vingança. A foto tem um formato retangular com cores fortes e quentes e iluminação baixa. A cena é em um ambiente interno. Ao fundo, no canto superior, ocupando parte da foto, temos um espelho que reflete imagens de uma boate, com alguns elementos de brilho e reflexos de algumas pessoas. A esquerda, em desfoque, um homem de idade mediana e cabelos curtos escuros veste uma camisa branca de manga longa acompanhada de um terno social da cor cinza. Logo ao centro, com um foco de luz, a personagem Cassie, de trinta e cinco anos, com os cabelos loiros claros presos em coque e uma franja solta, veste uma camisa social branca de mangas longas, um terno e saia femininos da cor cinza escuro acompanhados de um salto alto preto. A personagem está sentada em um sofá de couro vermelho que se estende por toda a foto e apresenta um semblante exaustivo.
O chute nas bolas de Hollywood foi tão bem dado por Emerald Fennell que conquistou 5 indicações ao Oscar 2021 (Foto: Reprodução)

Caroline Campos

“A culpa não é minha se ela bebeu demais. A mulher tem que se dar ao respeito, se garantir. Aí, se acontece alguma coisa, vem reclamar. Ela foi até para casa comigo, vai dizer que não queria? Se arrependeu? Assim é fácil… fazem de tudo para acabar com a vida de caras como eu. Eu sou um menino do bem. Um cara legal. Tenho mãe, sabe. Óbvio que respeito as mulheres. Ela queria, eu tô te falando. Aquele ‘para, por favor’ foi só para pagar de difícil”. Familiar, não é? Você sabe que já ouviu isso

A sensação é de impotência. É de ira. Um poço grande e fundo até a boca de solidão. Alguém aí para escutar nossa versão? Ficar do nosso lado? Bela Vingança sim. O primeiro filme dirigido pela britânica Emerald Fennell, também atriz (The Crown) e roteirista (Killing Eve), é uma resposta doce ao sexismo e a cultura do estupro, que abraçam e protegem a frágil figura masculina. Doce, sim, mas com ressalvas. A personagem de Carey Mulligan, a mais pop da temporada de premiações, está atolada até a cabeça de amargura e apatia, traumatizada pelos desdobramentos de um estupro, assistido e aplaudido, que sua amiga Nina sofreu.

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Os Melhores Filmes de 2020

Arte retangular de fundo verde. Ao lado esquerdo, foi adicionada uma colagem com 8 personagens dos filmes que estão na legenda. Na mesma ordem, esses são: Fern (Frances McDormand), Emicida, Joe (Jamie Foxx), Canário Negro (Jurnee Smollett), Norman (Chadwick Boseman), Autumn (Sidney Flanigan), David (Alan Kim) e Tutar (Maria Bakalova). Ao lado direito, foi adicionado o texto OS MELHORES FILMES DE 2020, em verde, dentro de um retângulo de cor preta. No canto inferior direito foi adicionado o logo do Persona, com a íris do olho na cor verde.
Destaques de 2020 no Cinema: Nomadland; AmarElo; Soul; Aves de Rapina; Destacamento Blood; Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre; Minari e Borat 2 (Foto: Reprodução)

2020 foi um ano extremamente atípico, mas isso já é de conhecimento geral. Todos sabemos que os cinemas fecharam e o conteúdo passou do presencial para o ambiente virtual. Nessa virada de mesa, quem se beneficiou foi a Netflix, citada à exaustão nas seleções abaixo. Outros gigantes de streaming, como a Amazon, a Apple e a Disney também tiraram uma casquinha do cenário pandêmico.

As indicações ao Oscar 2021 foram anunciadas e, com a Netflix angariando 35 nomeações, o futuro não pode andar para trás. Daqui em diante, o digital terá a força que os grandes estúdios sempre temeram. E, falando em Oscar, as regras para um filme (ou curta, ou documentário, ou o que quer que seja Hamilton) entrar na lista de Melhores do Ano foram um pouco mais puxadas.

De cara, qualquer produção que fez parte da temporada de premiações anterior não entra aqui. Com lançamento nacional em 2020, Joias Brutas, 1917, Retrato de uma Jovem em Chamas e Parasita não puderam passar de menções honrosas, impedidos de integrar qualquer ranking. Isso por conta do péssimo mercado de distribuição nacional, que atrasa o que pode para lucrar com o buzz dos prêmios.

Ainda considerando o careca dourado e seu prazo de elegibilidade maior, a lista do Persona abarca lançamentos entre primeiro de janeiro de 2020 e vinte e oito de fevereiro de 2021, a mesma janela delimitada para algo concorrer ao Oscar desse ano, que acontece no fim de abril, dois meses atrasado pela pandemia. E vale a data de lançamento tanto no país de origem como no Brasil, desde que obedeça à regra anterior de ter ficado de fora dos prêmios passados.

Sempre inclusiva e multifacetada, a lista da Editoria e dos colaboradores do Persona tem de tudo. Lançamentos pré-pandêmicos, filmes da Netflix, obras apresentadas na 44ª Mostra Internacional de São Paulo (que rendeu cobertura com direito a entrevistas) e produções normalmente escanteadas num ano comum e cheio de blockbusters no Cinema. O texto sobre Os Melhores Filmes de 2020 atrasou para abraçar lançamentos da temporada, mas finalmente chegou. Sente-se confortavelmente para embarcar numa viagem cheia de detalhes, nuances e vozes diferenciadas no Cinema do ano mais terrível para todos nós.

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Judas e o Messias Negro mostra de maneira formidável quem é o seu ‘verdadeiro vilão’

Cena do filme Judas e o Messias Negro. Na imagem, vemos o personagem William O´Neal, interpretado por Lakeith Stanfield, um homem negro de cabelos curtos, apertando a mão do agente do FBI Roy Mitchell, um homem branco de cabelos loiros e curtos interpretado por Jesse Plemons. Ambos vestem ternos pretos. Roy Mitchell está de pé e olha para William, que está sentado à sua frente, com um sorriso satisfeito. William tem uma expressão desconfiada. Os dois personagens estão em uma sala de cor esverdeada, e ao fundo deles há uma porta de madeira com uma faixa em vidro.
Lakeith interpreta William O’Neal, o infiltrado do FBI no Panteras Negras, em Judas e o Messias Negros, que possui seis indicações ao Oscar 2021 (Foto: Reprodução)

Ma Ferreira

Um distintivo assusta mais que uma arma”. Na Chicago de 1968, conhecemos um futuro Messias que, se apoiando em ombros de gigantes, sabe bem qual seu real inimigo e como atingi-lo. Enquanto esse Messias organiza seu rebanho, ele cresce como alvo principal do FBI, que angaria um ladrão de carros para ser seu delator e algoz. Essa é a premissa de Judas e o Messias Negro, longa que expõe problemáticas raciais da sociedade norte-americana, e que é protagonizado por Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield com a direção de Shaka King.

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Raya e o Último Dragão é o “como treinar o seu humano” que precisávamos

Cena do filme Raya e o Último Dragão com a personagem principal, Raya, no centro da imagem e de costas para a tela, veste uma capa vermelha e chapéu. Ela está segurando uma espada e apoiando-a em seu ombro. Ao seu lado esquerdo encontra-se Tuk Tuk, animal parte tatu, parte urso que é parceiro de Raya.
“Nós temos uma escolha; Construir ou destruir; Ou lutar para nos unirmos; O amor é uma ponte e a confiança é um presente; Nós a damos e ela fica melhor” – Jhené Aiko, Lead the Way (Foto: Reprodução)

Anna Clara Leandro Candido

Não, a Disney não comprou os direitos de Avatar e fez um filme da Korra. Mesmo compartilhando muitas características com a personagem da Nickelodeon, Raya é, na verdade, a protagonista do mais novo filme da Disney+. Lançado simultaneamente nos cinemas e na plataforma de streaming no dia 05 de março, o filme já conquistou o coração de muitos fãs e boas críticas. Raya e o Último Dragão traz novos horizontes para o conceito de histórias de princesas que tanto conhecemos, assim como dá um show de representatividade e animação.

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Relic queima devagar e intensamente

Cena do filme Relic. Robyn Nevin, uma mulher de 78 anos, está sentada na ponta de uma mesa. Ela está no centro da imagem e olha para frente, com os olhos vidrados. Seu cabelo é grisalho e comprido e ela usa uma blusa rosa embaixo de um casaco branco de crochê. A sua frente, a mesa está embaçada, assim como os patros e alimentos em cima dela. Atrás, encontra-se um móvel de madeira parecido com uma estante.
Robyn Nevin se torna irreconhecível ao final dos 90 minutos de Relic (Foto: Reprodução)

Caroline Campos

Qual é a responsabilidade que possuímos com os idosos que nos cercam? Devemos inverter os papéis no futuro? Se eles cuidaram de nós antes, é de se entender que cuidaremos deles depois. A troca na hierarquia familiar, que assusta e magoa todos os envolvidos, é a base de Relic, filme de estreia da australiana Natalie Erika James que, com um carinho bizarro e violento, aborda o desmantelamento da mente humana e a vulnerabilidade que inevitavelmente acarreta.  

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Há 35 anos, A Garota de Rosa Shocking marcava uma nova geração de clichês adolescentes

Foto retangular em preto e branco da capa do filme A Garota de Rosa Shocking. Na foto, estão presentes Andrew McCarthy, Molly Ringwald e Jon Cryer, respectivamente. Eles estão entre duas colunas de tijolos, com uma porta ao fundo. Andrew e Jon mais em cima, com o corte da foto na cintura, e Molly mais embaixo, com o corte da foto próximo aos ombros. Andrew é um homem de cabelos lisos e veste uma camisa com paletó. Jon veste uma camisa com a gola pra cima e um paletó com um bolso no lado esquerdo com um cifrão bordado e um óculos redondo pendurado. A sua mão esquerda está na frente do corpo, próximo ao bolso, e ele usa três anéis (um no indicador, um no dedo do meio e no dedo mínimo). Molly é uma mulher de cabelos ondulados curtos. Ela usa duas correntes no pescoço e sua roupa está preenchida com a cor rosa. No lado esquerdo, há uma faixa preta escrito “pretty in” em branco e letras minúsculas, seguido de “pink” em rosa e letras minúsculas.
As cenas na escola em A Garota de Rosa Shocking (no original, Pretty in Pink) foram filmadas no mesmo colégio de Grease – Nos Tempos da Brilhantina (Foto: Reprodução)

Júlia Paes de Arruda

Brooklyn, 1986. Lionel Richie e Madonna bombavam nas rádios com seus grandes sucessos. Ronald Reagan era presidente dos Estados Unidos. Todos ainda estavam angustiados com a passagem do Cometa Halley. É nesse cenário que John Hughes aposta suas fichas em A Garota de Rosa Shocking, após o grande sucesso de Gatinhas e Gatões. Completando 35 anos, o filme continua a encantar pela fórmula carro-chefe do produtor, mesmo que seu método de trabalho seja muito duvidoso.

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Aceitando o impossível, Rosa e Momo aprendem a sobreviver

Foto retangular com fundo laranja. À direita vemos o rosto do garoto Ibramin sobreposto ao de Sophia Loren. A montagem possui tons alaranjados. À esquerda lê-se em branco ROSA E MOMO.
Fora da categoria de Melhor Filme Internacional, Rosa e Momo está na corrida para Melhor Canção Original no Oscar 2021 (Foto: Reprodução)

Ana Júlia Trevisan

Sophia Loren. Apenas o nome dela basta para iniciar a crítica. Uma das principais atrizes do mundo, e talvez a mais renomada da Itália, estava há mais de uma década longe dos grandes holofotes, após atuar ao lado de Daniel Day-Lewis e Penélope Cruz no filme Nine, dirigido por Rob Marshall, fazendo apenas breves aparições nas telas desde então. Mas como a aposentadoria nem sempre é a escolha mais fácil para quem respirou Cinema durante toda vida, como Sophia, ela retorna ao audiovisual sob a direção de ninguém menos que seu filho Edoardo Ponti, e mostra que ainda tem força e talento de sobra para atuar.

La Vita Davanti a Sé é o título original da produção que marca a volta de Sophia Loren. Mundialmente conhecido como The Life Ahead, o filme recebeu o nome de Rosa e Momo no Brasil. Se engana quem acha que a tradução feita não tem nada a ver com a história, Rosa e Momo são os protagonistas da trama. Rosa é uma ex-prostituda que, ao chegar na velhice, passou a cuidar dos filhos das colegas de profissão, e Momo é um órfão senegalês que, após perder a mãe, ficou aos cuidados do Dr. Coen. Todas as mudanças na vida do garoto acabam levando-o para o mundo do tráfico e do roubo.

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Nomadland transforma o sonho americano em farofa

Cena do filme Nomadland. Vemos Fern, interpretada por Frances McDormand, uma mulher branca, de sessenta anos e cabelos pretos curtos, sentada numa cadeira de praia. Ela está de camisola branca, pernas cruzadas, segura uma caneca verde na mão esquerda e olha para o lado. Usa sandálias marrons e tem uma lamparina vermelha aos seus pés. Ao fundo, vemos grama verde e sua van branca.
Com Frances McDormand na melhor atuação da carreira e indicado a 6 Oscars, Nomadland usa do sútil para sensibilizar (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

O ano era 2018. A elite de Hollywood se reunia no Dolby Theatre para a maior cerimônia do ano. Vestidos glamourosos, poses para fotos e estatuetas douradas, aquela noite era só sobre isso. Então, sobe ao palco Frances McDormand. Esbaforida, enérgica, com a cabeça à mil, ela agradece solenemente ao amor do marido e do filho, agradece o trabalho do diretor. Ela coloca seu prêmio no chão e pede para todas as mulheres indicadas se levantarem e faz um discurso atemporal sobre oportunidades no mercado de trabalho, ela cita o termo ‘inclusion rider’, que estourou em buscas poucas horas depois. 3 anos mais tarde, Nomadland chega para provar que Frances não brinca em serviço.

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