Estante do Persona – Dezembro de 2022

Arte retangular de cor marrom. Ao centro há uma estante branca com três prateleiras. A primeira prateleira é dividida ao meio, a segunda prateleira é dividida em três e a terceira prateleira é dividida em três. Na parte superior lê-se em preto 'estante’, na primeira prateleira lê-se em preto 'do persona', à direita nessa prateleira está a logo do Persona, um olho com íris na cor marrom. Na segunda prateleira, ao meio, está a capa do livro “Vozes do Deserto”, de Nélida Piñon, ao lado de 9 lombadas brancas. Na terceira prateleira, à direita, está o troféu com a logo do persona. Na parte inferior lê-se em branco ‘dezembro de 2022'.
Concluindo 2022, o Clube do Livro do Persona homenageia Nélida Piñon,uma das maiores escritoras do Brasil e a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira das Letras (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathalia Mendes/Texto de abertura: Vitória Gomez)

O amor é teatral, intui Scherezade, que, à mercê do Califa, jamais se apaixonou. O espectáculo amoroso, como o concebe agora, junto ao leito do Califa, requer ilusão, artifício, máscaras coladas aos rostos dos amantes enquanto copulam.

Fechando as cortinas de 2022 com uma trajetória de leituras diversas e debates entusiasmados, o Clube do Livro do Persona encerrou o ano homenageando o legado de Nélida Piñon. A autora carioca publicou mais de 20 livros e foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL). Nélida faleceu em 17 de dezembro, em Lisboa, aos 85 anos, durante uma cirurgia de risco; seu corpo foi enviado ao Brasil para o sepultamento no Mausoléu da Academia.

A maior escritora viva do país”, como afirmou Merval Pereira, presidente da ABL, Nélida Piñon foi pioneira na Academia, mas também no cenário literário nacional. A escritora se formou em Jornalismo, mas seguiu o caminho da Literatura: publicou Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, seu primeiro romance, em 1961, estreando uma trajetória próspera na ficção. Depois, a autora ampliaria ainda mais seus horizontes, explorando contos, ensaios, crônicas e livros de memórias, que, entre diferentes formatos, sempre perpassa por sua visão política e humanista do mundo, características que marcaram a carreira e as obras da carioca.

Em Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, Mariella, a protagonista, e o arcanjo Gabriel são colocados frente a frente para discutir a relação do homem com Deus, pecados e a existência de acordo com os dogmas católicos. O primeiro lançamento de Piñon já indicava para o que viria a oferecer: o caráter questionador se fez presente no restante da bibliografia da carioca, colocando personagens femininas no posto das indagadoras. 

A Casa da Paixão, de 1972, confirmou a tendência transgressora de Nélida para a época. Na obra, Marta reflete acerca de suas vivências com o pai abusivo e a ama submissa, em um romance marcante pela forma como trata a sexualidade feminina. Aqui, a autora prova a busca pela renovação de sua própria linguagem, que persistiria no restante de sua carreira e tornou sua Literatura tão distinta e atual. O livro, considerado um dos melhores de Nélida Piñon, venceu o Prêmio Mário de Andrade.

Adiante, o romance Tebas do meu coração, de 1974, coloca personagens diversos em uma cidade do interior para construir uma crítica à rica e nada homogênea sociedade brasileira. Em A república dos sonhos, de 1984, Nélida novamente examina a composição social do país e seus processos de formação, agora sob a lente de imigrantes galegos chegando aos portos do Rio de Janeiro, como sua própria família uma vez fez. Nas obras, além de se aprofundar nas contradições de seus personagens, a escritora questiona o panorama social dos respectivos momentos, inclusive com duras críticas à repressão e à ditadura. Por A república, a brasileira venceu os prêmios de Melhor Livro do Ano de 1985 da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e do Ficção PEN Clube.

Pelo conjunto de sua obra, traduzidas para mais de 30 países, Nélida Piñon ganhou o Prêmio Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de Janeiro e do Conselho Estadual de Cultura, em 1990, e o Prêmio Bienal Nestlé na Categoria Romance, em 1991. Por Vozes do deserto, romance sobre a postura transgressora que uma mulher pode ocupar no sistema patriarcal em que vive, a autora recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Romance e na de Melhor livro do ano na categoria geral, em 2005.

Somando a sua carreira arrebatadora, Piñon assumiu a cadeira 30 na Academia Brasileira de Letras em 1986, sendo a primeira mulher a conquistar tal feito no Brasil e no mundo, segundo a ABL. Ela sucedeu o crítico literário e ensaísta Aurélio Buarque de Holanda. Agora, a cadeira que marcou a história de Nélida e da Literatura brasileira entrará em disputa a partir de Março – esperançosamente, passando para uma mulher igualmente de referência no cenário literário e cultural nacional. 

Concluindo 2022 com um leque diverso de obras literárias discutidas, a Editoria relembra suas referências. Agora, você confere as leituras de final de ano indicadas no Estante do Persona.

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Estante do Persona – Novembro de 2022

Arte retangular de amarelo limão. Ao centro há uma estante branca com três prateleiras. A primeira prateleira é dividida ao meio, a segunda prateleira é dividida em três e a terceira prateleira é dividida em três. Na parte superior lê-se em preto 'estante’, na primeira prateleira lê-se em preto 'do persona', à direita nessa prateleira está a logo do Persona, um olho com íris na cor amarelo limão. Na segunda prateleira, ao meio, está a capa do livro “As intermitências da morte” ao lado de 9 lombadas brancas. Na terceira prateleira, à direita, está o troféu com a logo do persona. Na parte inferior lê-se em branco ‘novembro de 2022'.
Do autor lusitano José Saramago, As Intermitências da Morte foi a provocação em cores fúnebres do Clube do Livro de Novembro (Foto: Companhia das Letras/Arte: Aryadne Xavier/Texto de abertura: Jamily Rigonatto e Vitória Gomez)

“A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”

José Saramago

Com as festividades de final de ano quase batendo em nossas portas, o Clube do Livro do Persona não poderia deixar de se encontrar nos aspectos da existência. Apreciando As Intermitências da Morte de José Saramago, nossos leitores se colocaram a refletir sobre as linhas que rondam o fim da vida. A escolha do texto foi ainda mais especial porque o literato completaria 100 anos no dia 16 de novembro de 2022. 

No livro, somos guiados para um cenário em que a morte deixa de chegar, seja para os homens mais velhos ou para as vítimas de acidentes que agonizam em camas de hospital. O autor desenrola reflexões sobre como morrer interfere nas noções humanas de livre arbítrio e continuidade. Aqui, a morte ganha ares personificados e, em certo ponto, da narrativa pode ser tocada como alguém de carne e osso – ou melhor, apenas de osso.  

Entre as significações, Saramago abre um mundo de possibilidades sem fechar nenhum ciclo, mas expõe o quanto as pessoas podem bambear quando a vida se torna um inconveniente. A proposta audaciosa da obra brinca com o papel da religião na sociedade e usa uma linguagem direta para abrir brechas e possibilidades no íntimo de quem o lê. A morte enquanto protagonista é tão real quanto qualquer ser humano: sente, reage e ama. No fim, resta o começo e como um circuito tudo se repete, já vivemos isso antes.  

Se nossos leitores testemunharam os fins, novembro oferece seus cumprimentos aos começos com a entrega troféus aos destaques da Literatura brasileira: o Prêmio São Paulo de Literatura e o Jabuti. Na primeira semana do mês, o Prêmio São Paulo, criado em 2008 e concedido pelo Governo do estado, revelou seus vencedores. Com dez finalistas nas duas categorias, o troféu de Melhor Romance do Ano de 2021 foi para Antonio Xerxenesky, pela obra Uma tristeza infinita, da Companhia das Letras. Rita Carelli levou Melhor Romance de Estreia do Ano de 2021 por Terrapreta, da Editora 34. Em ambas categorias, as escritoras foram a maioria: na primeira, dos 10 concorrentes, somente três são homens; na segunda, quatro.

Já no Jabuti, as 20 categorias, divididas em quatro Eixos que abarcam a totalidade do processo de produção editorial, tiveram seus finalistas anunciados na segunda semana de Novembro. Aqui – e aparentemente em 2021 no geral -, o destaque foi para o protagonismo feminino: na categoria Romance Literário, no Eixo Literatura, as cinco concorrentes eram escritoras. Natalia Borges Polesso, com A extinção das abelhas, Andréa Del Fuego, com A pediatra, Micheliny Verunschk, com O som do rugido da onça, Aline Bei, com Pequena coreografia do adeus, e Tatiana Salem Levy, com Vista chinesa, disputaram a estatueta – as cinco também foram concorrentes em Melhor Romance do Ano de 2021 no Prêmio São Paulo.

Com a disputa estabelecida, no dia 24 foi a vez da jornalista e apresentadora Adriana Couto chamar os vencedores ao palco do Theatro Municipal de São Paulo para receber o troféu em formato de jabuti. O grande destaque da noite foi para Luiza Romão, com Também guardamos pedras aqui, consagrado como o Livro do Ano de 2021. A obra também conquistou a categoria de Poesia. Em Romance Literário, uma das modalidades de maior destaque na premiação, o nome chamado foi o de Micheliny Verunschk, pelo seu O som do rugido da onça.

A cerimônia ainda contou com uma homenagem à Sueli Carneiro. Com o troféu de Personalidade Literária do Prêmio Jabuti 2022, a escritora, filósofa e ativista, uma das maiores representantes do feminismo negro no Brasil, é a primeira fora do eixo Literatura a receber a honraria.

As celebrações resolveram se estender e, em clima festivo, a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty – trouxe diversas personalidades do nicho para conversas acaloradas e conexões ímpares. Em sua 20ª edição, o festival seguiu a linha do Jabuti e contou com presença feminina em peso. A argentina Camila Sosa Villada esteve presente no evento e participou de uma Mesa sobre questões de gênero. A autora de O parque das irmãs magníficas trouxe interpretações importantes sobre o cenário do ativismo e os estigmas vinculados às travestis.

Um dos destaques entre os convidados foi a francesa Annie Ernaux, autora de O Acontecimento e vencedora do Nobel de Literatura em 2022. A escritora, que chama atenção com a ascensão do gênero da autossociobiografia, trouxe reflexões importantes em um bate papo ocorrido depois da exibição do filme Os Anos do Super 8

E se o jeito transgressor de Annie teve voz no festival, os aspectos subversivos nunca se fazem faltantes no Persona. Agora, veja mais das linhas fora da curva indicadas pela nossa Editoria no Estante do Persona e aproveite o fim do ano para se deliciar nos tons vibrantes daqueles que as pintam.

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Cuidado: Aftersun causa enjoo emocional

Cena do filme Aftersun, mostra pai e filha dançando abraçados. Ao fundo, vemos pessoas desfocadas.
Irlandesa radicada em Nova Iorque, Charlotte Wells impressionou Cannes e Toronto antes de trazer Aftersun para vencer a Competição Novos Diretores da 46ª Mostra de SP (Foto: MUBI)

Vitor Evangelista

Trabalhar o conceito da memória na Arte é uma artimanha e tanto. Para evocar o sentimento que viveu há cerca de duas décadas, é atrás das lembranças que vai a cineasta Charlotte Wells na confecção de Aftersun. A trama reflete um episódio experienciado pela irlandesa no fim dos anos noventa: uma viagem de férias à Turquia ao lado do pai, e seu apreço pela imagem como instrumento de ternura e captura do tempo.

A pequena Sophie (Frankie Corio) é a bússola do longa de estreia de Wells, parte da Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e eleito o Melhor Filme pelo Júri com o Troféu Bandeira Paulista. Ao lado do pai Calum (Paul Mescal), ela comemora o aniversário de 11 anos entre o quarto de hotel, a piscina, o oceano e as muitas caminhadas pelo ensolarado país euro-asiático, gravando as aventuras por meio de uma filmadora miniDV.

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Em Triângulo da Tristeza, ricaços escrevem ‘Deus’ com ‘d’ minúsculo e caem em tentação

Cena do filme Triângulo da Tristeza, mostra um homem branco, sarado e sem camisa, tirando uma foto com um celular em posição horizontal. Ao fundo, vemos o céu e está de dia.
Depois de vencer Cannes com The Square, Ruben Östlund repete o feito com Triângulo da Tristeza, exibido na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra de SP (Foto: Diamond Films)

Vitor Evangelista

Ruben Östlund não se preocupa em soar presunçoso ou em talhar o discurso com o intuito de mastigar a jugular que atinge. O sueco, que levou para casa sua segunda Palma de Ouro meses atrás, chega em Triângulo da Tristeza num patamar de sátira e escárnio para além do já apresentado em seu currículo no Cinema. Parte da Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, seu premiado filme está interessado em caçoar.

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Os Irmãos de Leila herdam a miséria

Cena do filme Os Irmãos de Leila, mostra uma mulher olhando para um homem. A mulher tem cabelos pretos e usa roupas escuras e olha de lado para o homem, que está encostado e fora de foco.
Protagonista do vencedor do Oscar O Apartamento, Taraneh Alidoosti é figura central de Os Irmãos de Leila, parte da Perspectiva Internacional da 46ª Mostra de SP (Foto: Iris Film)

Vitor Evangelista 

Imagine a família Roy de Succession, mas ao invés de magnatas bilionários, eles são pobretões, sem um tostão furado no bolso e em constante pé de guerra pela mísera das migalhas. Essa é a ambientação do iraniano Os Irmãos de Leila, premiado com o louro da crítica em Cannes e apresentado na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Perspectiva Internacional. 

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Joyland aponta a esperança, mas não consegue alcançá-la

Cena do filme Joyland, mostra uma mulher e um homem em frente a um pôster de papelão com o desenho de outra mulher. Eles estão usando roupas claras e dobram um tecido branco. O papelão mostra uma mulher de vermelho, com as mãos na cintura e olhando para frente.
Escolha do Paquistão para a disputa do Oscar 2023, Joyland integra a Competição Novos Diretores da 46ª Mostra de SP (Foto: Khoosat Films)

Vitor Evangelista

Sozinhos em um quarto escuro da noite paquistanesa e iluminados apenas pela luz neon em formato de flores e borboletas que beijam seus corpos, Haider (Ali Junejo) e Biba (Alina Khan) não conseguem encostar um no outro. A tensão que os envolve é forte demais para isso. Mas, quando o homem toma coragem e estica o braço a fim de pegar um copo d’água da mulher, uma faísca atravessa o ambiente, quebrando o vidro e, junto dos cacos, a barreira que existe entre ambos.

Essa é apenas uma pequena porção do que serve Joyland, filme presente na Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e representante do Paquistão no Oscar 2023. Primeira produção do país a integrar a seleção de Cannes, ele foi além das expectativas e venceu dois prêmios em terras francesas: o Grande Prêmio do Júri da seção Um Certo Olhar e a Palma Queer, destinada a obras que articulam temas e personagens LGBQIA+ com maestria. 

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O deserto coletivo assola Paloma

Cena do filme Paloma, mostra a protagonista, uma mulher negra, sorrindo com um véu branco na cabeça.
Entre grandes títulos nacionais, Paloma faz parte da rica seleção da 46ª Mostra de São Paulo, na seção Mostra Brasil (Foto: Pandora Filmes)

Vitor Evangelista

Paloma trabalha colhendo mamões em uma plantação, faz bico de cabeleireira, namora com Zé e, junto dele, cria a pequena Jenifer no interior do Pernambuco. Ela é espirituosa, bondosa e amada por todos da cidadezinha, e no fundo, tem um desejo próximo ao coração: se casar na igreja, vestida de noiva, com buquê e chuva de arroz. Mas, quando enfim toma coragem e chega ao padre com o singelo pedido, ouve um sonoro ‘não’. Por ser uma mulher trans, o sonho de Paloma não pode ser concretizado. 

Na trama, presente na seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e inspirada por acontecimentos reais, quem interpreta Paloma é a grandiosa Kika Sena. Arte-educadora, diretora teatral, poeta e performer, graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB) e mestranda em Teoria em Prática das Artes Cênicas pela Universidade Federal do Acre, Sena é pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, raça e classe, e autora dos livros Marítima (2016) e Periférica (2017) e da zine Subterrânea (2019).

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Estante do Persona – Setembro de 2022

Em Setembro, o Clube do Livro do Persona completou sua 12ª leitura sob os cuidados da Pediatra, de Andréa del Fuego (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes/Texto de abertura: Raquel Dutra)

“Ainda é tempo de morrer amanhã, que será o ontem de depois de amanhã, se eu então continuar vivo.” 

– Javier Marías

O primeiro ano do Clube do Livro está chegando: em Setembro, completamos nossa 12ª edição, preparados para encerrar um ciclo que nos fez próximos da Literatura como nunca antes havia acontecido. Iniciando as comemorações desse marco tão especial, trouxemos A Pediatra, de Andréa del Fuego, para deixar suas impressões sobre o tão saudável projeto caçula do Persona.

O que encontramos a partir daí, no entanto, foi um procedimento nada convencional. A obra da autora paulistana se concentra em Cecília, uma pediatra que é o exato oposto do estereótipo que lhe é associado. Longe da imagem maternal e paciente evocada pela sua profissão, a personagem é munida de uma frieza incorrigível, o que a faz, nem tão surpreendentemente assim, uma médica muito bem-sucedida. 

Com essa narrativa peculiar, as palavras concisas de Andréa del Fuego permeiam um humor perspicaz no cenário da classe média alta de São Paulo. Pelo fluxo de consciência de Cecília e suas peripécias cirurgicamente calculadas, a autora não precisa de mais de 160 páginas para propor reflexões nada pretensiosas sobre papéis de gênero, relacionamentos familiares e desigualdades sociais.

Lançado em 2021, A Pediatra é somente a mais recente demonstração dos méritos da mestra em Filosofia laureada com o prêmio José Saramago em 2011. Na ocasião, a obra tratava-se apenas de seu primeiro romance: Os Malaquias, drama familiar que carrega a referência do Nobel de Literatura português, tido como a principal referência da autora. Enquanto a nova edição do livro integra novamente o título ao catálogo da Companhia das Letras, o último romance de Andréa del Fuego faz seu nome integrar novamente a lista do Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Oceanos.

Mas nem só de comemorações são feitos os inícios e fins de ciclos. No 9º mês do ano, também houve a despedida de Javier Marías, escritor, tradutor e editor espanhol considerado um dos contemporâneos mais importantes da língua. Com apenas 20 anos, iniciou seus trabalhos literários com Os domínios do lobo (1971), se consolidando na Literatura da Espanha com os romances O homem sentimental (1986) e Todas as almas (1989). O cenário internacional veio em 1992, quando Coração tão branco rompeu todas as barreiras ao vender 1 milhão de exemplares e ser traduzido para mais de 40 idiomas.

Além de se destacar entre os romances, cujo hall de sucessos ainda engloba Os enamoramentos (2011) e a trilogia – considerada sua obra-prima – Seu rosto amanhã (2002-2007), o autor também era conhecido pelos seus contos e artigos, sempre alinhados pela sua perspectiva de formação e experiência como docente em Filosofia e Letras, primeiro pela Universidade Complutense de Madrid, depois na Universidade de Oxford. No dia 11 de Setembro, Javier Marías faleceu aos 70 anos, em decorrência de uma pneumonia. Sua extensa produção literária angariou respeito e admiração pela crítica e pelos leitores, sendo um eterno favorito ao Nobel de Literatura – mas isso é assunto para o mês que vem.

Entre as idas e vindas do meio, parte fundamental do nosso radar afiado desde Outubro de 2021, introduzimos mais um Estante do Persona. Na companhia de outros trabalhos literários louváveis que a nossa Editoria selecionou para as indicações do mês, finalizamos o primeiro ano do Clube do Livro de olho no que vai terminar de definir a Literatura em 2022.

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Status positivo: Perlimps se emancipa em viagem sensorial

Cena do filme animado Perlimps. A cena mostra uma raposa e um urso crianças no escuro. A raposa laranja segura uma lanterna em direção ao seu rosto, enquanto o urso branco e preto tem luzes saindo de seus olhos, iluminando sua frente.
Exibido no Festival de Cinema de Animação de Annecy, Perlimps integra a Mostra Brasil e marca o retorno de Alê Abreu à Mostra de SP, em sua 46ª edição (Foto: Vitrine Filmes)

Vitor Evangelista

Na floresta colorida que preenche com entusiasmo a tela de Perlimps, uma das animações mais aguardadas da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, dois agentes secretos duelam por um bem em comum. Do Reino do Sol, Claé (Lorenzo Tarantelli) é uma raposa que insiste em se identificar como lobo, enquanto Bruô (Giulia Benite), nascida no Reino da Lua, representa uma miscelânia selvagem, assumindo a forma de um urso com rabo de leão. À primeira vista inimigos, os bichinhos entendem que apenas com a união será possível derrotar o inimigo invisível.

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Sorria aposta em uma narrativa sensível sobre trauma

Cena do filme Sorria, mostra uma jovem branca parada e olhando para a câmera, sorrindo de maneira assustadora. Ela usa blusa verde e camisa xadrez em tons terrosos.
A princípio, o filme tinha planos de ser despejado diretamente no streaming, mas ótimas reações em sessões teste fizeram a distribuidora mudar sua estratégia e planejar um lançamento nos cinemas (Foto: Paramount)

Vitor Evangelista

É como se a fita amaldiçoada da Samara de O Chamado (2002) sofresse uma transfusão sanguínea da IST mortal que assola Corrente do Mal (It Follows, 2015). Não há maneira simples de descrever o sorriso mortal que intitula a estreia em longas do cineasta Parker Finn. Na simples e direta trama de Sorria (Smile), uma psicóloga testemunha um suicídio e vê a própria vida se tornar um labirinto nefasto, em que só há saída na morte.

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