Sem verrugas e caldeirões, Silenciadas é um deleite de mulheres geniais que resistiram à caça às bruxas

Cena do filme Silenciadas. A imagem é do rosto da personagem Ana, interpretada por Amaia Aberaturi, uma mulher branca de cabelos castanhos ondulados, que encara a câmera. A personagem está em um local fechado e com pouca luz.
O protagonismo de Amaia Aberasturi como Ana Iberguren e seu jogo de expressões em cena com Rostegui (Àlex Brendemüjl) renderam a indicação ao 35º Prêmio Goya de Melhor Atriz (Foto: Reprodução)

Nathália Mendes

Atemporal. Não há como assistir Silenciadas, nova aquisição da Netflix, sem conectar as acusações de bruxaria com os julgamentos que as mulheres sofrem até hoje. Em 1609, no País Basco, extremo norte da Espanha, a Santa Inquisição reprimia a cultura basca e queimava mulheres vivas. Desesperados em conhecer o sabbat, um suposto ritual de invocação do demônio, os inquisidores encontram um grupo de garotas geniais que oferecem a bruxaria que eles ardentemente desejavam assistir. Com a protagonização de Ana (Amaia Aberasturi), a tentativa das garotas em escapar da fogueira é uma performance belíssima. 

O longa do argentino Pablo Agüero é a história segundo as mulheres, e sua direção escarna dos filmes hollywoodianos de magia e demonização criada pela Igreja Católica. Akelarre, nome original do filme em euskera, língua basca, e sabbat, sua tradução espanhola, significam o sábado das bruxas. Esse é o elemento norteador da história do começo ao fim. A necessidade desesperadora da Inquisição em assistir os rituais nos quais mulheres dançam para invocar Lúcifer os leva até Ana, María, Maider, Oneka, Olaia e Katalín. As 6 garotas bascas não são atípicas, mas carregam o enredo inteiro do filme enquanto enfeitiçam, ou melhor, inventam todas as histórias da carochinha que o Juiz Rostegui (Àlex Brendemüjl) ansiava em ouvir.

Cena do filme Silenciadas. Imagem de um muro de pedra cinza com um quadrado pequeno bem ao centro. O quadrado é uma cela com grades enferrujadas e 4 mulheres apoiadas. Na esquerda superior está Olaia com o rosto e mãos apoiados nas barras, uma mulher branca de cabelos loiros raspados; ao seu lado direito está María, uma mulher branca de cabelos castanhos compridos. No canto inferior esquerdo está Ana, uma mulher branca de cabelos castanhos ondulados e ao seu lado está Katalín, uma garota mais nova, branca e de cabelos ruivos encaracolados.
Ana, María, Olaia e Katalín ouvem o anúncio de suas execuções por cometerem o crime de bruxaria pela janela de sua pequena cela, onde as cenas dão profundidade às personagens (Foto: Reprodução)

Perpassando muita intimidação, tortura e humilhação quando as garotas são interrogadas, a inteligência de Ana surge. Ela percebe que seus conhecimentos, cultura e ações de liberdade eram o significado da bruxaria temida pela Santa Inquisição. Nada distante do que a sociedade abomina em mulheres até hoje. As garotas dão conta que, ao utilizar histórias, músicas, trejeitos e palavras performadas como demoníacas, ganhariam tempo para sobreviver. Os inquisidores acreditaram em cada palavra, até no ritual mais ridículo que Ana conseguiu inventar para convencê-los de assistirem ao sabbat – uma cena satisfatória de contraste do sombrio interrogatório para as alegres lembranças da protagonista.

Ana faz ainda mais. Ela enxerga que o Juiz Rostegui queria mais do que ver o sabbat, ele queria vivenciá-lo. Propositalmente, a garota descreve Lúcifer com as mesmas características do homem e consegue cada vez mais convencê-lo a performar o ritual. Afinal, o que seria mais prazeroso do que tomar o lugar do diabo num ritual cheio de mulheres dançando para o seu gozo? Essa é a genialidade de Silenciadas: a aproximação da mulher do século XVII à atual que ainda luta para que suas vidas não sejam associadas ao prazer dos homens. O longa chega ao clímax quando o grupo realiza o ritual e apresenta uma belíssima cena. Iluminação, arte e trilha sonora se complementam brilhantemente com Rostegui regozijando-se em meio às garotas.

Cena do filme Silenciadas. Juiz Rostegui, interpretado por Àlex Brendemüjl, é um homem branco de meia idade de olhos claros, cabelos castanhos raspados e barba curta com pelos brancos e castanhos. Ele está vestindo uma camisa branca e segura uma vela, à direita da imagem enquanto observa Ana dormir. A garota é uma mulher branca de cabelos castanhos ondulados, está com os olhos fechados e cabeça repousada na parede de pedra ao fundo, à esquerda; ela veste uma blusa branca com babados na gola e um corpete amarelo. A imagem é escura e sua única iluminação é a vela ao centro.
Entre o medo e o desejo de Rostegui por Ana, a relação de ambos é crucial para entender a ameaça que as mulheres representavam à Igreja Católica (Foto: Reprodução)

Apesar da genialidade, Silenciadas conseguiu dividir opiniões acerca de seu resultado. Sendo um drama histórico estreado no Festival Internacional de Cinema de San Sebastian de 2020, em Donostia, no próprio País Basco, esperava-se mais da resistência da comunidade basca dentro do filme. As referências à cultura aparecem no cenário exterior, no figurino, mas, em sua maior parte, quando ligadas ao grupo de garotas – o que é coerente com a direção de Agüero. Em entrevista para o próprio Festival San Sebastian, o diretor revela que a inspiração do longa veio do livro The Witch, do historiador francês Jules Michelet, cujo cerne é mostrar que as bruxas nada mais eram do que mulheres livres e independentes. 

A cultura basca está presente para olhos e ouvidos atentos. Além da língua euskera ser a principal, as referências mais belas e sutis aparecem no modo como as garotas tecem palha durante o filme, curam feridas com teias de aranha, com a história de María Gaivota e sua vontade de voar, e na brilhante música No queremos otro calor que el fuego de tus bejos. E assim, o filme seguiu sendo indicado em 9 categorias do 35º Prêmio Goya, o Oscar espanhol, e arrematando 5 prêmios, incluindo os de Direção de Arte, Figurino e Melhor Partitura Original.

Cena do filme Silenciadas. Na imagem está de dia e 5 garotas estão ao longe, na ponta do precipício de uma montanha de pedra. Do lado esquerdo há o precipício com queda para o mar; do lado direito a montanha tem gramas e árvores grandes e verdes.
Sob imagens claras e vívidas, as cenas com iluminação natural da cultura e comunidade basca sobressaíram-se dos conflitos sombrios (Foto: Reprodução)

Com protagonismo feminino dentro e fora de cena, dignos das indicações e prêmios, Silenciadas não é um simples filme de caça às bruxas. Longe de todos os clichês – como não lembrar de caça às bruxas com Nicolas Cage – não há uma bruxa horrenda disfarçada de bela e sedutora mulher. Há mulheres reais, independentes e livres, que sempre ameaçaram a sociedade e sempre irão. 

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