Hunger Ward: o mundo precisa ver o quanto as pessoas do Iémen sofrem

Aviso: esse texto contém imagens sensíveis de crianças em situação de desnutrição.

Foto de divulgação de Hunger Ward. Na imagem, uma menina iemenita, muito magra, aparentando ter cerca de cinco anos, de pele amarronzada e cabelos castanhos, senta sob uma cama, ao centro, e sorri para a câmera. Ela está em uma sala de paredes rosadas na clínica de reabilitação.
Distribuído no Brasil pela Paramount+, Hunger Ward concorre ao Oscar 2021 na categoria Melhor Documentário em Curta Metragem (Foto: Paramount+)

Vitória Lopes Gomez

É impossível assistir Hunger Ward sem desviar os olhos. O curta-metragem acompanha duas profissionais de saúde em clínicas de alimentação terapêutica no Iémen, onde lutam para salvar crianças da morte por desnutrição. Sem hesitar em filmar o sofrimento, o diretor dinamarquês Skye Fitzgerald usa da dolorida exposição das vítimas para denunciar a mais triste das consequências da guerra que assola o país: a fome, que, só em 2020, ameaçou a vida de cerca de 100 mil crianças.

Se o “cinema humanitário” de Fitzgerald, como ele mesmo descreve, não parece tão humano ao apontar câmeras para bebês debilitados e famílias recém-notificadas da perda, o relato de um sobrevivente justifica: “o mundo precisa ver o quanto as pessoas do Iêmen sofrem”. O próprio diretor, em uma declaração no site do projeto, revela a urgência da realidade e como filmá-la pode gerar a empatia necessária para estimular uma mudança. Nem mesmo cabe aqui destrinchar méritos ou defeitos da produção, quando esta atinge com sucesso seu objetivo de sensibilizar e conscientizar quanto a necessidade imediata de ação.

Cena de Hunger Ward. Na imagem, a enfermeira Mekkia Mahdi, uma mulher de pele amarronzada, vestindo um jaleco branco e um hijab amarelo com estampas pretas, se inclina sobre um leito hospitalar, em que uma criança muito magra chora.
Hunger Ward foi filmado em cerca de 30 dias entre janeiro e fevereiro de 2020, em uma clínica no norte e outra no sul do Iémen (Foto: Paramount+)

O formato documental do curta-metragem não se apoia em longas descrições ou em uma narração impessoal, mas aproxima a realidade ao construir uma espécie de diário de bordo da médica Aida Alsadeeq e da enfermeira Mekkia Mahdi, que atuam nas duas clínicas onde o filme toma lugar. Combinando as gravações nos centros de reabilitação e os depoimentos das profissionais a inserções de planos de escolas destruídas, edifícios em ruínas e até a filmagem de um ataque aéreo, Hunger Ward conecta causas e consequências e apresenta um relato em primeira mão do saldo da guerra às vítimas. As imagens por si só são fortes, difíceis de assistir sem um pause para digeri-las e o caráter documental só aumenta a indignação: o que vemos é a realidade de muitas crianças. 

Apesar de servir como um relatório, escancarando a urgência de ação, o filme não se dá ao trabalho de discorrer sobre o conflito em si, seus motivos ou lados. Isso realmente importa quando crianças estão morrendo? Ainda, a realidade que afeta muitos é resultado de interesses maiores e a produção não se acovarda em lembrar o caráter essencialmente político dos acontecimentos. Ao final, para não tirar o peso das imagens que expõe, o curta brevemente contextualiza: a fome que acomete crianças é consequência de um bloqueio de alimentos e medicamentos imposto pela Arábia Saudita, que, por sua vez, recebe apoio bélico, estratégico e operacional direto dos Estados Unidos e de países da Europa.

Coincidentemente, um mês antes da produção ser oficialmente indicada, o presidente norte-americano Joe Biden não falhou em colocar seu país como Pacificador ao pedir o fim da guerra no Iémen, ao mesmo tempo que segue apoiando os árabes a garantirem a soberania local e, consequentemente, a continuidade do conflito. Não é possível extrair a política da realidade e Hunger Ward é o depoimento cru e bárbaro do resultado dessa guerra esquecida, que atinge e mata crianças que nada têm a ver com os interesses de países imperialistas.

Cena de Hunger Ward. Na imagem, a médica Aida Alsadeeq, uma mulher de pele amarronzada, vestindo um jaleco branco e um hijab marrom, está em pé em frente a uma mesa branca, em seu consultório na clínica de reabilitação.
Hunger Ward é o desfecho da trilogia de filmes que foca em grandes crises humanitárias do mundo, seguindo Na Fronteira com a Síria (50 Feet from Syria) e Refúgio no Mar (Lifeboat) (Foto: Paramount+)

Indicado como Melhor Documentário em Curta-Metragem, Hunger Ward foi nomeado na mesma categoria ao Critics Choice Documentary Awards, que abre a temporada de premiações. No entanto, isso ainda não diz muito: a maioria dos concorrentes também ostentam outras indicações, mais ou menos significativas quando se trata de um termômetro para o Oscar.

O diretor Skye Fitzgerald, que em fevereiro ganhou Melhor Diretor de Documentário em Curta-Metragem no Social Impact Media Awards com Hunger Ward, já é conhecido da Academia. Em 2019, o dinamarquês dirigiu Lifeboat, que documenta a travessia de refugiados líbios no Mediterrâneo e também foi indicado como Melhor Documentário em Curta. Há dois anos, os votantes mostraram que estão de olho no estilo de Fitzgerald e ele segue a mesma linha em 2021. 

A disputa na categoria é acirrada pela imprevisibilidade. A Netflix, que prevaleceu em 2019 com Absorvendo o Tabu, também tem um forte competidor esse ano, com Uma Canção para Latasha. Independentemente das chances de vitória, o poder do cinema humanitário se mantém: o sofrimento das pessoas do Iémen é um pouco mais conhecido depois de Hunger Ward, ainda que isso não faça muito efeito para o país anfitrião do Oscar.

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