Bela Vingança incomoda e você sabe o porquê

Cena do filme Bela Vingança. A foto tem um formato retangular com cores fortes e quentes e iluminação baixa. A cena é em um ambiente interno. Ao fundo, no canto superior, ocupando parte da foto, temos um espelho que reflete imagens de uma boate, com alguns elementos de brilho e reflexos de algumas pessoas. A esquerda, em desfoque, um homem de idade mediana e cabelos curtos escuros veste uma camisa branca de manga longa acompanhada de um terno social da cor cinza. Logo ao centro, com um foco de luz, a personagem Cassie, de trinta e cinco anos, com os cabelos loiros claros presos em coque e uma franja solta, veste uma camisa social branca de mangas longas, um terno e saia femininos da cor cinza escuro acompanhados de um salto alto preto. A personagem está sentada em um sofá de couro vermelho que se estende por toda a foto e apresenta um semblante exaustivo.
O chute nas bolas de Hollywood foi tão bem dado por Emerald Fennell que conquistou 5 indicações ao Oscar 2021 (Foto: Reprodução)

Caroline Campos

“A culpa não é minha se ela bebeu demais. A mulher tem que se dar ao respeito, se garantir. Aí, se acontece alguma coisa, vem reclamar. Ela foi até para casa comigo, vai dizer que não queria? Se arrependeu? Assim é fácil… fazem de tudo para acabar com a vida de caras como eu. Eu sou um menino do bem. Um cara legal. Tenho mãe, sabe. Óbvio que respeito as mulheres. Ela queria, eu tô te falando. Aquele ‘para, por favor’ foi só para pagar de difícil”. Familiar, não é? Você sabe que já ouviu isso

A sensação é de impotência. É de ira. Um poço grande e fundo até a boca de solidão. Alguém aí para escutar nossa versão? Ficar do nosso lado? Bela Vingança sim. O primeiro filme dirigido pela britânica Emerald Fennell, também atriz (The Crown) e roteirista (Killing Eve), é uma resposta doce ao sexismo e a cultura do estupro, que abraçam e protegem a frágil figura masculina. Doce, sim, mas com ressalvas. A personagem de Carey Mulligan, a mais pop da temporada de premiações, está atolada até a cabeça de amargura e apatia, traumatizada pelos desdobramentos de um estupro, assistido e aplaudido, que sua amiga Nina sofreu.

A foto tem um formato regular, com cores claras e frias e bem iluminada. A foto dos bastidores foi tirada na cafeteria em que a personagem Cassie trabalha. Da esquerda para direita vemos seis pessoas. Primeiro um homem branco, robusto e alto, com óculos espelhados sobre a cabeça. Em seguida, um pouco a frente, vemos Carey Mulligan, uma mulher branca com seu cabelo loiro e longo, uma camiseta branca de mangas longas vermelhas e um sorriso no rosto. Ao lado e um pouco atrás, vemos uma mulher negra de cabelos presos e óculos, usando uma blusa cinza e arrumando o local. Em seguida vemos Emerald Fennell, uma mulher branca com o cabelo loiro preso. Ela usa um vestido listrado e um casaco branco por cima. Ela também sorri. À sua direita está a atriz Laverne Cox, uma mulher negra, de cabelos cacheados da cor castanha. Ela está sentada com uma camisa azul com flores rosas, enquanto também sorri. Por fim, vemos um homem pela metade, que foi cortado da foto. À frente de todos há uma bancada branca cheia de bolinhos e doces coloridos.
Além da direção de Emerald Fennell, que fez uma participação especial como a moça do vídeo de lábios de boquete, Bela Vingança é produzido por Margot Robbie (Foto: Reprodução)

O responsável foi Al Monroe. O competente, amigável e, agora, noivo, Dr. Alexander Monroe. Você teria coragem de arruinar a vida de um jovem promissor como ele? Bem, com base na carinha simpática de Chris Lowell, ninguém teve. Reitoria, polícia e amigos transformaram Nina em uma sombra, um fantasma sem rosto que aparece unicamente em fotos de quando era criança, ao lado de Cassie. A verdadeira Promising Young Woman, que intitula o filme no original, habita apenas as lembranças de sua melhor amiga, que adota um cotidiano vingativo como força-motriz

Toda semana, Cassandra vai a algum bar. Toda semana, Cassandra finge que está estupidamente bêbada. Toda semana, algum homem a leva para casa e tenta se aproveitar da situação. O foco, por sinal, está em tentar. Depois de várias investidas, em que o não é tão claro quanto a insistência do abusador da vez, Cassie os pega de surpresa – que pena, a mulher com quem eles tentavam transar estava plenamente consciente. Mulligan se entretém com o desafio que propõe em suas expressões, entregando uma performance revoltosa e inconformada, sempre alerta e com muita, muita raiva.

O destaque é, claro, o elenco feminino. Se Carey Mulligan encabeça o filme, Laverne Cox dá brilho à sua participação como Gail. A dona do café colorido e simpático é a única amiga de Cassie, demonstrando a importância e o peso emocional que uma rede de apoio contribui na recuperação de uma pessoa traumatizada. Cox não precisa de muito para mostrar o talento que já tínhamos visto em Orange is the New Black, e, para a atriz, o longa de Fennell só põe em tela a pressão que sobreviventes de abuso sexual sofrem, independente do gênero.

Cena do filme Bela Vingança. A foto tem um formato retangular com cores claras e frias e iluminação alta. A cena é em um ambiente externo. Na esquerda, a personagem feminina Cassie veste um macacão da cor azul claro e tecido solto, seus cabelos loiros longos estão soltos e a personagem segura, com suas duas mãos, uma caixa descartável de suco. Ela está sentada no primeiro degrau da varanda e apresenta um semblante de preocupação. Ao seu lado, na direita, a personagem feminina Senhora Fisher, de idade mediana, veste uma camisa social despojada listrada de manga longa com as cores branca e azul, acompanhada de uma calça de jeans claro. Seus cabelos chegam na altura de seus ombros e apresentam uma coloração castanho médio. Seu semblante é de preocupação.
A conversa de Cassie com a mãe de Nina elucida a protagonista a respeito de seus desejos de vingança; é uma cena sensível e dolorida (Foto: Reprodução)

A palavra-chave de Bela Vingança é consentimento. Depois da explosão do movimento #MeToo em 2017, que culminou na exposição de predadores asquerosos como Harvey Weinstein, a atmosfera hollywoodiana pareceu sofrer um abalo calculado que resultou em um discutível aprofundamento de narrativas feitas por e sobre mulheres. Neste contexto, não é de se surpreender que a obra de Fennell tenha gerado tanta repercussão ao abordar com tamanha acidez o abismo que envolve a responsabilização masculina, disfarçada pelo discurso da imaturidade. Ai, ai, esses garotos!

No entanto, vale o alerta: Bela Vingança possui conteúdo sensível que pode perturbar espectadores com gatilhos prévios. Em especial, a cena satírica que envolve Christopher Mintz-Plasse como o esquerdomacho artista e delicado Neil, que, olha só, pelo menos fez questão de acordar Cassie antes de enfiar seus dedos nela. A conclusão é deliciosamente satisfatória, mas, ainda assim, o desconforto aterrorizante é palpável. Até a participação inicial de Adam Brody, a primeira “vítima” em tela, embrulha o estômago, seja pelos comentários com os amigos ou pela fé que ainda tínhamos.

E Bela Vingança definitivamente não é um filme sobre fé. Mesmo que, mais de uma vez, Emerald Fennell nos faça de bobos, a maior desilusão é com Ryan. O adorável e bobão pediatra de quase dois metros de altura interpretado pelo comediante Bo Burnham nos encanta, e, por um momento, acreditamos, assim como Cassie, que tudo pode ser superado. Obviamente ignoramos a placa gigante de NÃO CONFIE EM NENHUM DELES que Fennell insere em seu filme, e não demora muito para entendermos que essa não é uma comédia romântica onde os personagens cantam Paris Hilton em farmácias e enfrentam as adversidades juntos. Ryan é a adversidade. E, na narrativa de Cassie, o corte é direto na raiz.

Cena do filme Bela Vingança. A fotografia é retangular e enquadra dois personagens, Cassandra e Ryan, em uma farmácia. Cassandra é uma mulher branca e loira de 35 anos que usa seu cabelo solto com uma franja na testa. Ela usa uma camisa rosa onde só podemos ver uma parte dos seus ombros, pois ela está atrás de uma prateleira. Cassandra olha de perfil para Ryan, um homem branco de trinta anos. Ele tem cabelos castanhos claros e curtos e usa uma camisa listrada azul de manga comprida. Ryan de perfil olha para Cassandra. Ao fundo, estão várias prateleiras e um balcão com produtos. A frente da imagem, há uma prateleira desfocada.
Bo Burnham, que fez sucesso na época dos vines, surpreendeu em 2019 ao levar o prêmio no Sindicato dos Diretores de Melhor Direção Estreante em Longa-metragem por seu filme Oitava Série (Foto: Reprodução)

Assim, afogada no luto, a justiceira de Mulligan caminha conscientemente para o seu final. Ela espera, ansiosa, pelo xeque-mate, independente das consequências que ele possa gerar. Traumatizar homens desconhecidos era só a parte minoritária do plano, o foco sempre foi os verdadeiros algozes de Nina. Assim, Cassie se construiu: inofensiva, com lindos cabelos loiros e unhas coloridas que gritavam doçura. Até os tons pastéis de rosa e azul da peruca icônica que Mulligan adota no desenrolar da trama passam o ar de mera barista de cafeteria. Mas, por trás, está tudo lá. A subversão e a insubordinação. Você só precisa olhar atentamente.

Não é à toa que a atriz de 35 anos esteja sendo aplaudida de pé pela crítica especializada. Cassie é o melhor papel de sua carreira, mas o território das premiações não é novidade para Carey. Em 2010, o filme Educação, da diretora Lone Scherfig, a rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz e uma estatueta na mesma categoria pelos votantes do BAFTA. Por Bela Vingança, Carey Mulligan já levou para casa um Critics Choice Awards e integra as 5 indicações que o filme conquistou no Oscar 2021 – Melhor Filme, Atriz, Montagem, Direção e Roteiro Original; esta última sua categoria mais forte, pois Fennell recebeu o prêmio máximo do Sindicato de Roteiristas dos Estados Unidos

Num ano em que, pela primeira vez, duas mulheres concorrem pela estatueta de direção – poderiam ser três, mas aí é pedir demais da Academia, não é? -, Emerald Fennell começa a montar seu hall de condecorações com sua estreia contagiante. Saber que a ira feminina está sendo respeitada (estamos muito iradas faz muito tempo) deixa a temporada de prêmios mais animada, e, se houvesse uma categoria de Melhor Uso de uma Versão de Música em Cena Final, os passos de Cassie ao som de uma Toxic cheia de suspense não perderia para nenhum outro longa.

Cena do filme Bela Vingança. A foto tem um formato retangular com cores claras e vivas e iluminação alta. A cena é em um ambiente interno. Em frente a um galpão de madeira seca que ocupa todo o fundo da foto, a personagem Cassie, com uma peruca de fios a altura de seus ombros, cabelo cacheado e multicolorido, veste uma roupa de enfermeira branca com mangas de comprimento mediano, alguns detalhes em costura vermelha nas bordas e um coração vermelho bordado logo acima do peito esquerdo. A personagem segura em sua mão direita um estilete cirúrgico e demonstra um semblante desafiador.
A cena que deu a cara da temporada de premiações de 2021 é o momento que Carey Mulligan assume de vez sua personagem com roupa de enfermeira e peruca colorida (Foto: Reprodução)

E, no clímax, as duas jovens promissoras com futuros arrebatados dão jus ao título do filme. A satisfação sombria de assistir o desmantelamento total da cerimônia ironicamente good vibes de Al só é superada pelas mensagens pré-agendadas de Cassie. Aproveite o casamento ou o que sobrou dele, no caso. A finalização da história de Bela Vingança é amarga, mas é isso que ela quer ser. A independência da narrativa é como Cassandra, que rejeita todas as idealizações de futuro com um emprego dos sonhos e lindos filhinhos, em consideração a todas as oportunidades que foram tiradas de Nina. Sua amiga não poderá nunca envelhecer, ter animais de estimação ou operar pacientes. Ela virou uma estatística e, agora, Al também virará. Para o inferno todos vocês. Com amor, Cassie & Nina.

Bela Vingança é o pior pesadelo dos “caras legais”. É a coragem que iniciou o #MeToo tomando forma pelas lentes de uma câmera e ao som de Charli XCX. Nós não queremos suas cantadas. Você não precisa sugerir que eu chupei todo o Detran para conseguir minha carta. E, para mim e para as milhões de mulheres do mundo todo, basta. Se não podemos ser justiceiras em bares, podemos votar, lutar pelos nossos direitos, ir às ruas, estudar e nunca baixar a cabeça. Mas, se por acaso quiser aterrorizar um babaca desrespeitoso em um bar, tome os devidos cuidados e vá em frente. ; )

Qualquer relação exige consentimento. Violência sexual é crime. Machismo mata. Não se cale, a culpa nunca é da vítima. Procure ajuda e denuncie.

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