A Liga da Justiça de Zack Snyder não foi feita para você

Cena do Snyder Cut. Na cena, vemos Diana segurando uma flecha. Ela é branca, tem pele clara e cabelo escuro preso num coque, veste roupas pretas e olha para o horizonte com expressão de preocupação. O cenário ao fundo está desfocado mas podemos ver ruínas de templos de mármore branco.
Lançada 4 anos depois de sua concepção, a Liga da Justiça de Zack Snyder é mais que um reles exercício de ego, é uma demonstração de empatia (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

A Liga da Justiça de Zack Snyder não foi feita para você. E nem para mim. Por mais que a liberação do filme tenha acontecido pelo apoio massivo dos fãs do diretor, as quatro horas e dois minutos de exibição não são destinadas a ninguém além de Autumn Snyder. A jovem filha do cineasta se suicidou enquanto os pais trabalhavam na primeira versão da aventura da Liga. A tragédia familiar afastou Zack do controle criativo dos personagens, logo em seguida veio a contratação do crápula Joss Whedon e a finalização do longa de 2017 naquele misto de martírio e bugiganga defeituosa.

Mas disso todos já sabem. O que não é tão conhecido é o senso artístico de Zack Snyder. O visionário abriu mão do salário como diretor para que pudesse remontar a sua própria versão da Liga, propagada como o Snyder Cut. Era o mistério do século, as horas e horas de filmagens não aproveitadas, as prévias que o realizador postava nas redes sociais e, claro, as manchas que Joss Whedon deixou na obra. Seja reescrevendo (onde ganhou os créditos quatro anos atrás) sequências inteiras, seja diminuindo a Mulher Maravilha, a mão pecaminosa do ex-Marvel fez o que pôde para destroçar a visão áurea e por vezes tediosa que Snyder moldou para a DC nos cinemas.

O filme de 2017, massacrado por qualquer pessoa com bom senso, era demasiadamente ruim, engraçado fora de hora e corrido demais. Nada ornava e nada parecia ser digno da Liga da Justiça, a maior equipe de super-heróis que já existiu. Ray Fisher, intérprete do Ciborgue, veio à tona com acusações de racismo que sofreu no processo da Liga de Whedon. O efeito é notável no desenrolar do filme, que renega as ações de Stone e joga o robô para escanteio. Tudo piorou quando foi revelado que Whedon, abatido pelo resultado aquém de seu Era de Ultron, constantemente trocava as bolas no set e tratava Diana (Gal Gadot) por Natasha (a Viúva Negra da Marvel). O que também é escrachado no longa, que rebaixa a Amazona ao corpo e constantemente a desmoraliza.

Cena do Snyder Cut. Na cena, vemos um close-up do Batman. Ele tem pele branca, e veste a máscara preto de borracha em formato de morcego. Acima da máscara, usa um óculos de aviador que está posicionado acima de seus olhos, na testa. Ele veste uma japona bege e o cenário é desértico.
Don’t Count on It, Batman (Foto: Reprodução)

Mas esse diabo foi exorcizado. Joss Whedon caiu no ostracismo criativo de Hollywood. O descaso com a Liga da Justiça de 2017 foi fator importante para enterrá-lo, em conjunto das várias denúncias de abuso por parte de empregados antigos dele. A Liga da Justiça de Zack Snyder não tem o poder de apagar o filme anterior, mas, com certeza, alivia o peso que tanto o diretor quanto os fãs devotos carregavam de ter de aturar algo tão apático quanto a versão que chegou aos cinemas. O Snyder Cut não refilmou nada e só acrescentou diárias para finalizar o Epílogo. As cenas foram todas captadas na época e, por conta disso, a história não muda muito. O fator predominante do sucesso de agora é o tom do épico.

São quatro horas divididas em 6 partes e 1 epílogo. Podendo ser encarado como uma minissérie, o filme é tão carregado de tensão e batalhas que a falta de ganchos entre os capítulos não deixa o todo sem fôlego. O roteiro de Chris Terrio, parceiro de longa data do diretor, não poupa detalhes na hora de introduzir e motivar as dezenas de rostos que nos agraciam no Snyder Cut. É uma verdadeira reunião do estrelado elenco da DC, e mesmo as pequenas cameos se justificam como peças pequeninas da espalhafatosa visão de Snyder. Algo já provado à exaustão, sua incapacidade de contar histórias em pouco tempo vira superpoder nesse caso, munido do esquema de lançamento em streaming na HBO Max e da duração ridícula, que extrapola qualquer noção de marketing e Cinema.

A abertura com a ação das Amazonas escreve a carta de amor que Zack Snyder assina para com as personagens. Suas inspirações mitológicas ganham vida e forma, espreguiçando os conceitos que o diretor teimou a adicionar na versão comercial de Batman v Superman, e também nos moldes do primeiro Mulher Maravilha. A ponte para essa Liga é justamente o desfecho de A Origem da Justiça. O Super-Homem, morrendo, grita para o mundo todo ouvir, acordando assim as três Caixas Maternas. Snyder justifica suas ideias na concepção da ausência de um sonho. O vácuo da Esperança com S é o convite do caos para a Terra. A câmera lenta vira regra e o tom de aventura não modula diferenciações suficientes para ser chamado de autoral demais, mas o pontapé de Don’t Count on It, Batman, título do primeiro capítulo, é um abraço caloroso de alguém que aguardamos muito para conhecer.

Cena do Snyder Cut. Na cena, vemos Mera e Vulko à beira-mar. Mera é ruiva, branca, jovem e segura um tridente. Ela usa roupas verdes escamosas. Vulko é um homem idosos, branco e de cabelos compridos de cor escura com fios grisalhos. Ao fundo, vemos o mar.
The Age of Heroes (Foto: Reprodução)

O segundo capítulo, A Era dos Heróis, ainda soa como um longo prólogo, distribuindo o baralho de ideias do diretor. Sobram cenas que enriquecem sequências utilizadas em 2017, mas, dessa vez, os detalhes se justificam. O Snyder Cut, antes de tomar a proporção de agora, era um filme de evolução, plantando sementes a serem germinadas, como a gravidez de Lois Lane (Amy Adams) e o enlace de dois casais super-heróicos. Todavia, essa versão natimorta das ideias de Snyder se mostra mais como uma singela conclusão. A exemplo da sequência histórica dos povos unidos contra Darkseid, onde Snyder filma a Tropa dos Lanternas Verdes com timidez.

Se fosse o caso desse filme continuar o Universo da DC, a vibe seria outra. Iris West e o Flash de Ezra Miller terão a chance de brilhar no futuro longa do Velocista Escarlate, mas dificilmente seguirão à risca as deixas marcadas aqui. Podemos deduzir isso por conta da relação amistosa e selvagem do Aquaman (Jason Momoa, apagado) e de Mera (Amber Heard, vibrante). A dupla de Atlantis se comporta de modo arisco, indo na contramão da pegada que James Wan injetou em 2018. O que, com certeza, é compreensível, já que o monocromático mundo cinzento de Zack Snyder não decolou comercialmente ou fora do nicho de seus fãs apaixonados.

Cena do Snyder Cut. Na cena, vemos o Flash na armadura vermelha e correndo entre raios azuis. O Flash é um jovem branco, que usa uma armadura vermelha e com detalhes escuros. Ele corre no meio da Força de Aceleração, entre os Raios azuis.
Beloved Mother, Beloved Son (Foto: Reprodução)

Por maior que o filme seja, ainda é difícil criar laços com o turbilhão de personagens apresentados ‘pela primeira vez’ aqui. A interpretação de Ray Fisher na pele e maquinaria do Ciborgue demora a engatar o vínculo emocional necessário para com quem assiste, mas ele se sai bem. Renegado na versão do cinema, o jovem herói é o coração do Snyder Cut. O mesmo vale para o Flash, que virou uma criança no filme de 2017, mas aos olhos de Snyder é um adulto com senso de responsabilidade (e não cai de cara nos peitos da Diana, olha só a melhora). A energia de Gal Gadot nesse filme se distancia da interpretação de Patty Jenkins, dando mais material ao lado guerreira da Amazona, suas melhores cenas são as de quebra-pau. 

O texto da Liga da Justiça de Zack Snyder é sedento para nos contar o máximo que pode sobre esses personagens e sua encarnação atual. As quatro horas não fazem milagre. As ideias dessa Liga seriam melhor aproveitadas se desmembradas e divididas em uma porção de filmes de origem, ao invés de fazer um sucão concentrado e virá-lo na goela do espectador. Beloved Mother, Beloved Son, o capítulo 3, continua ecoando o luto por Superman (Henry Cavill mais faz caras e bocas do que atua), a culpa do Batman (Ben Affleck, na melhor encarnação do personagem) e os próximos passos dessa Liga da Justiça novinha em folha, brindados pela batida frenética de Junkie XL, que por si só serve como artifício de distinção do passado. 

Cena do Snyder Cut. Nela, vemos Ciborgue olhando por uma janela quebrada. Ele é um homem negro fundido a um robô. Seu corpo é quase todo metálico e robótico, mas seu olho esquerdo é vermelho, mesma cor de um núcleo de energia presente em seu peito.
Change Machine//All the King’s Horses (Foto: Reprodução)

Da metade para o final, o filme é mais descarado nos momentos de elucidar as ideias próprias de Zack Snyder que acabaram apagadas na versão do cinema. O Caçador de Marte dá as caras, a real motivação para ressuscitarem o Superman também. Essencialmente, o Snyder Cut conta a mesma história que a Liga de Joss Whedon, mas com a pompa para fazer valer os mais inusitados conceitos, o tom megalomaníaco e épico que o diretor insiste em chamar de visionário, e, claro, a versão repaginada é muito mais amorosa e digna da Liga da Justiça.

É um filme bom? Você pode se perguntar, mas não existe resposta objetiva. Se formos investigar os “defeitos” (entre grande aspas) da DC nas telonas, a principal culpada pode ter sido a Warner, que vivia à flor da pele e na ânsia de rivalizar em números com a Marvel, mas isso nunca aconteceria. Zack Snyder e Kevin Feige, o líder do MCU, não compartilham em nada suas visões de império e construção de sequências e mais sequências. Esse encerramento que Snyder dá à sua visão ainda carece de coesão e ordem, mas não havia maneira de ‘consertar’ e ajustar sua criação à essa altura, ela simplesmente foi concebida assim.

All the King’s Horses, o quinto capítulo, é o jogo de xadrez chegando ao clímax. A Liga da Justiça soa como a Liga da Justiça merecia soar nessa primeira aventura e reunião da equipe. Ezra Miller evoca um senso de humor cabível com o Flash daqui, e o Barry Allen se assemelha muito à construção de timing cômico de outro Barry, o de Bill Hader na HBO. O Snyder Cut elimina a trama da família europeia em fuga, mas a batalha final com o Lobo da Estepe continua frustrante e simples demais. O vilão sofre uma bela mudança no visual, e sua armadura metálica dá um destaque cromático e mitológico para a figura, mesmo que a personalidade do ator Ciarán Hinds nunca decole para além do inexpressivo.

Foto de Jared Leto caracterizado como o Coringa do Snyder Cut. A foto é em preto e branco, ele veste um manto branco, e tem as mãos levantadas em uma espécie de sinal religioso, ele tem cabelos compridos, a boca pintada e usa uma coroa de espinhos, numa alusão bíblica.
Something Darker//A Father Twice Over (Foto: Reprodução)

O último capítulo é a essência do filme de Zack Snyder. Os heróis brincando de bobinho com o Lobo da Estepe enquanto o Superman, vestido de preto, é claro, desce a mão no vilão. Tudo dá errado, mas depois tudo dá certo, graças ao Flash, que tem função narrativa ao invés de só correr e tropeçar. O Snyder Cut ainda molha os pés na possibilidade de Darkseid se movimentar em cena, mas a água parecia estar muito gelada e a ideia logo é deixada de lado. O que é uma pena, considerando o escopo de uma trama com esse tipo de inimigo e seus aliados DeSaad e Vovó Bondade, e todas as consequências e portas abertas no Universo da DC. O que termina num tom positivo, melhora no Epílogo.

Sem dúvidas, o mundo alternativo dos pesadelos de Batman seria a melhor aventura que Zack Snyder poderia proporcionar, e, mesmo assim, o filme que mais gostaríamos de ver nunca será feito. Tem de tudo naqueles breves minutos: o Exterminador como aliado, Mera com sangue nos olhos, um traje interessantíssimo do Flash e a melhor (e mais curta) encarnação de Jared Leto como o Palhaço do Crime. O Coringa Messias cospe com propriedade e sem vergonha toda a visão áurea de Snyder para a DC: nada de seres normais, aqui lidamos com deuses. E, descendo do Olimpo, o Superman do Mal surge esplêndido e raivoso, a câmera corta para o preto e “Para Autumn” ilumina a tela escura.

Ele conseguiu. Zack Snyder realizou o sonho de finalizar sua versão da Liga, dedicou a obra ao anjo que Autumn se tornou e eternizou a filha no panteão dos super seres. Nada importa além disso, nenhuma recepção, nota da crítica ou texto de 4 páginas no Google Docs. O Snyder Cut não foi feito para ninguém além da jovem, feito com carinho, zelo e o maior amor do mundo pelo pai. Feito com justiça.

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