White Eye desmonta a dignidade humana

Cena do curta White Eye. À esquerda, Dawit Tekelaeb, um homem negro de cabelos curtos, crespos e preto, está de pé. Dawit está do peito para cima na imagem, de perfil e virado para a direita. Ele usa uma camisa branca e azul, com gola, e um avental por cima. Dawit olha para a direita, na direção de Daniel Gad. Daniel está no canto direito da foto, olhando para baixo. Daniel é um homem branco com cabelos escuros e barba e bigode. Ele usa uma touca preta, jaqueta preta e um agasalho preto por baixo. Ao fundo, desfocado, está uma bicicleta e o cenário de uma rua.
White Eye concorre ao Oscar 2021 ao lado de Feeling Through e The Letter Room na categoria de Melhor Curta-Metragem em Live Action (Foto: Reprodução)

Caroline Campos

São necessários apenas 20 minutos para White Eye estruturar e acusar a sociedade de classes em que se insere. O curta-metragem israelense dirigido por Tomer Shushan é um retrato potente do privilégio social e da noção agressivamente individualista de propriedade privada, utilizando uma esquina de Tel Aviv como seu epicentro. Indicado ao Oscar 2021, o roubo de uma bicicleta é a força narrativa que movimenta um completo desmantelamento da figura humana.

O protagonista interpretado por Daniel Gad é Omer, que, há um mês, teve sua bicicleta furtada. Supostamente, Omer a encontra acorrentada em um bairro industrial e inicia a missão de recuperá-la, entrando em uma espiral de fúria na busca por justiça. Seu alvo se torna Yunes, o funcionário de um açougue vivido por Dawit Tekelaeb que afirma ter comprado o veículo para transportar a filha. A situação, na verdade, foi inspirada num acontecimento real quase idêntico ao curta que envolveu o diretor, que escreveu o roteiro de White Eye em menos de uma hora.

Cena do curta White Eye. A imagem é retangular e centralizada nela está Daniel Gad e uma bicicleta. Daniel é um homem branco com barba e bigode escuro. Ele usa uma touca, uma jaqueta e calça pretas, está agachado e segura o celular no ouvido com a mão direita. A sua frente, está uma bicicleta com uma cadeirinha infantil atrás do banco. Os dois estão numa esquina de uma rua escura.
Tomer Shushan frisa que o título do curta, “olho branco”, remete a cegueira da sociedade israelense em relação ao abismo racial no país, pelos olhos de um homem branco (Foto: Reprodução)

O conflito que parecia inofensivo só se tenciona quando Omer insiste em envolver a polícia, o elemento necessário para entender a dinâmica racial e política da sociedade israelense. Yunes é um imigrante da Eritreia e seu visto está expirado, ou seja, fique em silêncio e faça o que mandam. Omer enfim percebe as consequências de sua ação impulsiva, mas não há o que se fazer. O destino de Yunes já foi decidido, mas quem bate o martelo está muito além do recorte social em tela.

O senso de urgência que toma a atmosfera daquela esquina escura se torna ainda mais palpável pela escolha de Shushan em filmar White Eye sem cortes. Não há, para nós ou para Omer, um momento para respirar e pensar racionalmente sobre aquela sucessão de eventos. Tudo simplesmente… acontece. E no momento que Omer percebe o tamanho da ferida que cutucou, sua posição privilegiada como homem branco já não pode interferir no problema.

Apesar de apostar nas sutilezas, Tomer Shushan utiliza uma grande cena para ilustrar e resumir o medo em seu estado mais primitivo. A cena dos outros trabalhadores do estabelecimento, todos imigrantes ilegais, se escondendo no frigorífico, é o momento certeiro que garante o posicionamento político de White Eye, sem necessariamente utilizar do conhecimento do espectador em relação a Israel e a seu fluxo migratório.

Pôster do curta White Eye. A imagem é retangular e comprida. O fundo dela é cinza. Desenhados como bordados, podemos ver um bicicleta branca, um carro de polícia e placas de trânsito. No centro, há o rosto de dois homens. No centro superior, WHITE EYE A FILM BY TOMER SHUSHAN em branco.
The Present, indicado na mesma categoria de White Eye, também discute xenofobia e racismo em uma situação que parte de um objeto; no caso de The Present, é uma geladeira (Foto: Reprodução)

Tel Aviv é a maior cidade do país, abrigando cerca de 40 mil refugiados da Eritreia e do Sudão. A discussão acerca do tratamento dado a essa população com base em uma insignificante bicicleta fez com que White Eye garantisse sua vaga entre os 5 concorrentes na categoria de Melhor Curta-Metragem em Live Action na 93ª edição do Oscar. Shushan contou com imigrantes africanos que conheceu nas ruas da cidade e diferentes falantes de hebreu para compor o restante do seu elenco, que, apesar de pouco utilizado, é essencial para a criação do restante da obra. 

Apelando para a empatia do espectador, White Eye não falha em nos fazer questionar a importância de um bem material acima do ser e existir. O egoísmo violento e irracional de Omer pode ter partido ao meio a tentativa de abrigo e o direito à dignidade de Yunes. Para a polícia, para o Estado, Yunes não é nada além de estatística. E a bicicleta? Com a lealdade dividida, ficou imóvel. Inutilizada. Assim como seus donos.

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