O Cinema, enquanto Arte, amplia horizontes. Seja ao apresentar pontos de vistas únicos que fazem o espectador pensar duas vezes ou retratar uma cultura diferente, entrar em contato com o desconhecido pode também ser desafiador. Na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, A Sibila é um desses desafios para um público desavisado: o longa, presente na seção Novos Diretores do festival, adapta o romance homônimo de uma importante escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luís.
No entanto, diferente de outros escritores portugueses, Bessa-Luís não virou leitura obrigatória no Ensino Médio ou nos vestibulares, e a adaptação de sua obra, tida por muitos como impossível de ser realizada pelo tom de monólogo, instiga o público a pensar em como a Literatura e o Cinema se constroem, se conectam e se sobrepõem (se é que o fazem). Em pouco mais de uma hora, Eduardo Brito, diretor estreante em longas-metragens, assume o desafio e questiona esses limites.
Mussum, o Filmis chegou às telas em uma safra fértil para as personalidades brasileiras: alguns meses depois de Nosso Sonho, junto do documentário Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você e Meu Nome é Gal, e pouco antes de Meu Sangue Ferve por Você. Haja cultura e diversidade em um ano em que, independentemente dos desempenhos individuais de cada obra, o Cinema nacional mostrou a potência que é – e que poderia ser ainda maior com políticas públicas que verdadeiramente valorizassem esse potencial. Para melhorar, a envolvente cinebiografia do sambista, ator e comediante Mussum, eternamente conhecido pelo seu papel como um dOs Trapalhões, arranca risadas fáceis e, não por menos, estreou com seis Kikitos do Festival da Gramado na bagagem, além de passagens pelo Festival do Rio 2023 e pela 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Mostra Brasil.
Reencontrar sentido em seus recomeços. É o que a sinopse de A Sobrevivência da Bondade propõe. Na trama, exibida na seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e vencedora do Prêmio da Crítica do Festival de Berlim, uma mulher negra é abandonada no deserto dentro de uma jaula. Conseguindo milagrosamente escapar depois de dias, ela cruza a paisagem árida em busca de salvação, para encontrar ainda mais barbárie na civilização.
A sinopse busca por recomeços, mas, a cada novo cenário apresentado, essa ideia parece mais distante. BlackWoman – como a protagonista é chamada nos créditos finais, uma vez que o longa-metragem praticamente não tem diálogos – cruza campos arenosos sem sinal de vida, cidades abandonadas por uma suposta guerra e trilhas em ambientes hostis, com o inimigo caminhando poucos metros à frente. A mulher não tem outro objetivo senão a sobrevivência e, para o espectador, o tom é contemplativo. O que estaria acontecendo ali? E, acima de tudo, o que isso significa?
Para Bas Devos, fazer filmes é uma desculpa para ser curioso. Here, seu quarto longa-metragem, usa essa curiosidade para observar a relação de dois estranhos consigo mesmos, um com o outro e com o país que habitam, estrangeiro tanto quanto eles mesmos ali. A produção desembarcou no Brasil no 25° Festival do Rio depois de conquistar dois troféus no Festival de Berlim e, olhando para o ordinário, torna até o comum fantástico.
Na obra, o diretor belga segue Stefan (Stefan Gota), um trabalhador romeno da construção civil morando em Bruxelas, na Bélgica. Quando a temporada de obra acaba e ele e seus colegas – igualmente estrangeiros – poderão aproveitar as férias em seus países de origem, o protagonista encontra uma mulher que o fará pensar duas vezes se deve ou não voltar. O grande porém é que ela sequer sabe o nome dele.
Sofia Coppola é mestre em retratar mulheres jovens adultas enclausuradas em residências enormes sob o controle de terceiros. No entanto, se Maria Antonieta terminou com a cabeça na guilhotina, Priscilla Presley quebrou o ciclo de solidão e escapou de sua prisão em Graceland, a segunda casa mais famosa dos Estados Unidos. Em Priscilla, uma adaptação do livro de memórias Elvis and Me, a diretora e roteirista deixa o nome do Rei do Rock de lado para direcionar o olhar à personagem-título.
Se o Cinema é um modo divino de contar a vida, as cinebiografias são a vida passando na frente dos nossos olhos. No entanto, assim como acontece com os documentários, realidade e ficção se misturam e o ponto de vista sempre se sobressai. Por que não usar isso a seu favor? É o que Nosso Sonho: A História de Claudinho e Buchecha faz: o longa-metragem que reconta a trajetória da maior dupla de funk nacional abraça de vez o sentimento e mostra que, por trás das coreografias inusitadas e das letras contagiantes, o que prevalecia era a amizade entre os dois.
Vivendo na linha tênue entre mainstream e marginal, o Cinema de Horror encontrou terreno fértil no público nos últimos anos. A A24é um dos exemplos de produtora e distribuidora independente que, dando liberdade criativa para seus realizadores, lançou sucessos instigantes à audiência e à crítica, e pareceu reacender uma chama que sempre existiu no gênero, geralmente renegada ao lado B. Assim, a produtora assumiu um papel relevante em catapultar ao estrelato obras discretas sob o seu merecido selo de qualidade. Foi o caso de Fale Comigo: chegando aos cinemas mundiais já sob o título de “melhor terror de 2023”, o longa de estreia dos irmãos RackaRacka saiu da Austrália para ganhar o mundo mostrando tudo que o Horror sempre teve a oferecer.
Na tentativa de entender o Brasil da década de 1930, com as aspirações nacionalistas e a valorização da cultura brasileira, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda propõe a ideia do “homem cordial”. O conceito definia um cidadão movido pelo coração, afeto e pelo sentimentalismo em detrimento da razão, que extrapola o âmbito pessoal e o aplica no coletivo. Para Buarque de Holanda, essa seria a razão pela qual o brasileiro adota uma figura paternalista, familiar e passional. No entanto, é a mesma pessoa que se esconde por trás da face da cordialidade até que a hostilidade tome conta. Mais de oito décadas depois, O Homem Cordial busca a revitalização dessa ideia durante uma única e violenta noite em São Paulo.
Entre os dias 13 e 23 de abril, o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade voltou totalmente às salas presenciais dos cinemas espalhados em São Paulo e Rio de Janeiro. Com exibições gratuitas no Centro Cultural São Paulo, Cine Marquise, Cinemateca Brasileira, Sesc 24 de Maio e IMS Paulista, o festival teve também Sessões Especiais virtuais, exibindo nas plataformas de streaming Itaú Cultural Play e Sesc Digital sete dos nove filmes da Competição Brasileira de Curtas-Metragens e dois longas da Mostra Foco Latino-Americano (Beleza Silenciosa, de Jasmín Mara Lópeza, e Hot Club de Montevideo, de Maximiliano Contenti).
Com 72 títulos de 34 países, o festival – fundado em 1996 por Amir Labaki – homenageou dois grandes cineastas na sua 28ª edição: Humberto Mauro (1897–1983), “um dos inventores do Brasil cinematográfico”, que “impõe-se quando o próprio país e logo seu Cinema enfrentam nova reconstrução”, exibindo dez de seus filmes e dois documentários; e Jean-Luc Godard (1930–2022), com a apresentação dos oito episódios da sua série documental História(s) do Cinema (1987-1998), considerada a obra-prima da última parte de sua carreira, cujo conteúdo foi constantemente retrabalhado pelo autor e cuja produção durou cerca de dez anos.
O alcance do É Tudo Verdade, o maior festival de Documentários do mundo, é reconhecido pelaAcademia de Artes e Ciências Cinematográficas, que classifica diretamente os filmes vencedores dos prêmios dos júris nas Competições Brasileiras e Internacionais de Longas/Médias e de Curtas-Metragens para apreciação ao Oscar do próximo ano. Longe das sessões presenciais, o Persona assistiu à distância os curtas-metragens brasileiros disponíveis no streaming. Dos sete filmes da Competição Brasileira de Curtas exibidos remotamente, quatro tiveram sua estreia mundial no É Tudo Verdade, que também expôs, apenas presencialmente, Ferro’s Bar (Menção Honrosa na categoria), dirigido por Aline A. Assis, Fernanda Elias, Nayla Guerra e Rita Quadros, e O Materialismo Histórico da Flecha Contra o Relógio, de Carlos Adriano.
Mãri hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Ɨramari, além de ter sua estreia mundial no É Tudo Verdade, foi o grande vencedor da Competição Brasileira de Curtas-Metragens, recebendo também o Prêmio Mistika. Produzido em parceria da ARUAC Filmes com a Hutukara Associação Yanomami, o curta do cineasta yanomami aborda o conhecimento de seu povo sobre os sonhos, com a participação e narração da liderança indígena e xamã, Davi Kopenawa. “A luta yanomami vai continuar até o fim”, disse Ɨramari.
Abaixo, você fica com a curadoria do Persona feita por Bruno Andrade, Enzo Caramori, Guilherme Veiga, Jamily Rigonatto, Nathalia Tetzner e Vitória Gomez, que deixam suas impressões sobre Os curtas brasileiros do 28º Festival É Tudo Verdade.
“Mas tudo passa neste mundo imundo. Por isso não faz sentido se afligir demais por nada nem ninguém. Às vezes penso que somos um sonho ou um pesadelo realizado dia após dia que a qualquer momento não será mais, que não aparecerá mais no telão da alma para nos atormentar.”
– Aurora Venturini
Aprofundando os laços familiares, o Clube do Livro do Persona escolheu os ares argentinos para guiar os ventos no terceiro mês do ano. Sob as linhas de uma protagonista de personalidade forte, as páginas de As Primas, de Aurora Venturini, encaminharam uma leitura curiosa e repulsivamente divertida. Definida como uma espécie de autobiografia, a obra é narrada por Yuna, uma mulher com deficiência vivendo rodeada de um contexto trágico em que a violência e a vulnerabilidade social abraçam mulheres e seus laços sanguíneos.
Com características únicas, o livronão performa o mais politicamente correto dos textos. Sob os pensamentos, julgamentos e o nojo voraz carregados pela personagem principal, somos afundados em uma narrativa sem filtros na qual o incomum ganha forma em linhas curvas e manchas de tinta. O movimento atípico se reflete na construção de uma escrita que considera a pontuação secundária e dá holofotes à sinceridade liberta.
Em 160 páginas, Yuna detalha as figuras de sua família e os eventos assombrados que a perseguem enquanto registra tudo em cor e sombra através de suas pinturas. Sob as pinceladas, aborto, prostituição, morte e abuso ganham retratações ácidas. Entre a mãe, a irmã Betina, a tia Nenê e as primas Carina e Petra, o grotesco e o desatino remontam um viés peculiar da vivência de vítimas da opressão oferecida pelo destino.
O romance é o primeiro e único das mais de 40 publicações de Aurora e marca sua estreia no universo literário da América Latina. Em um deslumbramento brutal, o escrito consagrou a literata aos 85 anos com o prêmio Nueva Novela em 2007. No Brasil, a obra ganhou a primeira versão em setembro de 2022 pela Editora Fósforo e foi traduzida por Mariana Sanchez.
Em tons insólitos, As Primas causou um rebuliço comicamente miserável. Para não perder o costume, os membros da nossa editoria não falham em dar opções aos que querem adentrar relações similarmente complicadas, mas também contemplam os interessados em conhecer outras das infinitas possibilidades oferecidas pela Literatura. Por isso, o Estante do Persona de Março deixa suas primorosas indicações para estampar o cinza outonal.