Atravessando gerações, O Homem Cordial está sempre à espreita

Cena do filme O Homem Cordial. A cena se passa durante a noite em um bar, desfocado ao fundo. No primeiro plano, vemos à esquerda um homem branco de cerca de 50 anos, com cabelos e barba grisalhos, vestindo uma jaqueta preta e com a mão apoiada em um balcão. Do lado esquerdo, vemos uma mulher negra de cerca de 25 anos, com cabelos escuros presos em tranças, vestindo uma jaqueta jeans. Os dois olham para frente, para algo que está fora do quadro.
A semelhança do título com o conceito sociológico do Homem Cordial não é mera coincidência (Foto: O2 Play)

Vitória Gomez

Na tentativa de entender o Brasil da década de 1930, com as aspirações nacionalistas e a valorização da cultura brasileira, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda propõe a ideia do “homem cordial”. O conceito definia um cidadão movido pelo coração, afeto e pelo sentimentalismo em detrimento da razão, que extrapola o âmbito pessoal e o aplica no coletivo. Para Buarque de Holanda, essa seria a razão pela qual o brasileiro adota uma figura paternalista, familiar e passional. No entanto, é a mesma pessoa que se esconde por trás da face da cordialidade até que a hostilidade tome conta. Mais de oito décadas depois, O Homem Cordial busca a revitalização dessa ideia durante uma única e violenta noite em São Paulo.

Na trama, Aurélio (Paulo Miklos) é vocalista de uma banda de rock que fez sucesso nos anos 1980, mas, no show de reencontro do grupo, é linchado ao entoar canções de cunho social. Mais cedo, ele havia defendido um menino negro de uma acusação de assalto, que culminou na morte de um policial. O vídeo da abordagem viralizou e, de um lado, o artista é rechaçado pelo público, em defesa do suposto agente da lei. Do lado contrário, o menor de idade está desaparecido e não recebe a mesma comoção. Nas próximas horas, o personagem de Miklos enfrenta a pressão social, o radicalismo, a dor da família do garoto e, ele mesmo, a violência policial.

Cena do filme O Homem Cordial. Ao centro da imagem, vemos Aurélio do peito para cima durante um show. Ele é um homem branco, aparentando cerca de 50 anos, com cabelos e barba grisalhos. Ela usa uma camiseta branca e está suado enquanto canta em um microfone. Vemos uma bateria desfocada atrás dele.
O longa estreou em 2019 no Cairo International Film Festival e chegou aos cinemas brasileiros em maio de 2023 (Foto: O2 Play)

O Homem Cordial foi mais uma das obras brasileiras que sofreu com o atraso no lançamento: o filme estreou em 2019, mas só alcançou as telas nacionais em 2023. À época, o extremismo que permeava o país, fruto da recente eleição de Jair Bolsonaro, normalizava a barbárie e o ódio, sobretudo nas redes sociais. Afinal, é a partir de um vídeo viral na internet que Aurélio se torna o novo alvo de um grupo radical, que fará de tudo para culpabilizá-lo por ter o mínimo de humanidade diante da injustiça social.

Na produção, o linchamento, tanto ao cantor quanto à vítima, é o ponto de partida. A ação é simbólica em externalizar o ódio e preconceito (antes) contido e que, no governo passado, ganhava tons de normalidade em prol de uma falsa proteção à pátria e aos valores tradicionais. A situação em que o menino é repetidamente hostilizado acontece justamente em um bairro de classe média alta de São Paulo, onde sua presença é vista como ameaçadora. Ali, ele é culpado até que se prove o contrário – e nem assim.

Cena do filme O Homem Cordial. A imagem é uma avenida vazio durante a noite. Do lado esquerdo, em segundo plano, vemos um carro amarelo com os faróis ligados. Ao centro, em um primeiro plano, vemos uma pessoa com jaqueta vermelha e capacete preto dirigindo uma moto, como se estivesse sendo perseguida pelo carro.
Os roteiristas contaram que o filme estava praticamente pronto, mas jogaram o roteiro fora e começaram do zero após ataques contra o cantor Chico Buarque em um restaurante no Rio de Janeiro, em 2015 (Foto: O2 Play)

Se tivesse sido lançado no ano em que estreou, O Homem Cordial assumiria um tom de urgência ao retratar uma parcela da sociedade que se sentia confortável com a violência, inclusive encorajada a usá-la como meio e fim – e tendo o aval das autoridades para fazê-la. Quatro anos e uma eleição depois, a história escrita pelo sociólogo e diretor Iberê Carvalho e pelo cineasta Pablo Stoll permanece relevante de ser discutida (com os ecos da eleição de 2018 e do que a seguiu, nunca deixará de ser), mas perde parte do seu impacto.

Resultado esse que, com o lançamento em seu devido ano, seria potencializado pela condução frenética da obra, já que horas de uma única noite são suficientes para levar a situação ao extremo. No decorrer da trama, Aurélio vai de um artista bem-sucedido em um show de reencontro a perder contratos e ser seguido por civis enraivecidos, defensores de uma autoridade criminosa. Quando uma jornalista o aborda para saber do paradeiro do menino desaparecido, ele se envolve na investigação jornalística e passa a, ele mesmo, ser alvo da polícia.

Na pele do ator e Titã Paulo Miklos, o musicista surge como uma tela em branco. As informações acerca de seu passado e do envolvimento com o acontecido vêm aos poucos, e somos inseridos na caoticidade junto do cantor – exceto que ele sabe do que tudo se trata. Com a breve contextualização, a atenção é dividida entre acompanhar o rumo do artista durante aquela noite e se situar no próprio espaço e tempo, uma vez que, durante a primeira metade do filme, a frenética câmera na mão de Pablo Baião nunca tira os olhos do personagem.

Cena do filme O Homem Cordial. A cena se passa no que aparenta ser uma praça, durante a noite. Do lado esquerdo, vemos uma mulher de perfil. Ela é negra, tem os cabelos presos em uma trança e aparenta ter cerca de 25 anos. Ela encara um homem que está à direita do quadro. Também de perfil, ele é branco, aparenta ter cerca de 50 anos, tem cabelo castanho curto e barba grisalha.
O trabalho da Dandara de Morais como a jornalista Helena é um destaques da atuação junto de Paulo Miklos (Foto: O2 Play)

Experiente, Miklos não coloca o carro na frente dos bois, em uma performance reconhecida como Melhor Ator no Festival de Cinema de Gramado. O ator sabe como a banda toca e, mesmo com o desenvolvimento desordenado de seu protagonista, dá espaço suficiente para a trama prevalecer. O Homem Cordial é menos sobre Aurélio e mais sobre o contexto social e a própria cidade de São Paulo, que, segundo o próprio diretor, é uma dos personagens principais da história: a metrópole que nunca dorme está sempre de olho no que todos fazem e é impossível fugir.

É a partir do envolvimento com a família e a comunidade do menino desaparecido que o filme aprofunda a relação com o presente da época. Inicialmente uma narrativa sobre discursos de ódio e como as redes sociais criam um ambiente propício para a violência, que passa a se materializar na vida real, os roteiristas se viram obrigados a tratar também sobre o racismo, já que a normalização da barbárie tem impactos diferentes de acordo com o grupo étnico-racial e social.

Cena do filme O Homem Cordial. A imagem se passa em um ambiente de uma casa. À esquerda, vemos um homem branco, aparentando ter cerca de 50 anos, com cabelo castanho e barba grisalha, vestindo uma jaqueta preta e camiseta branca em pé e com a mão apoiada em uma mesa. Ele olha para o jovem ao centro da imagem, um homem de cerca de 25 anos, vestindo uma camisa e touca e que mexe em um laptop. À direita, uma mulher também encara o computador. Ela é negra, aparenta ter cerca de 25 anos, tem cabelos pretos presos em tranças e veste uma jaqueta jeans.
No Festival de Gramado, O Homem Cordial também levou o troféu de Trilha Musical (Foto: O2 Play)

Com Paulo Miklos, eles optam pela perspectiva de um homem branco. Por um lado, a escolha permite que nos coloquemos como espectadores da violência e não o alvo dela. Para os realizadores, aqui a intenção é discutir qual o papel da branquitude na luta antirracista, ponto no qual O Homem Cordial sucede: apesar da perseguição inicial, o linchamento de Aurélio após sair em defesa do menino vira o foco, enquanto a dor e dúvida da família quanto ao paradeiro do garoto não ganha nenhuma atenção. É só ao cutucar a impunidade da força policial durante a investigação jornalística que o musicista entra na mira das autoridades. 

Por outro lado, o personagem de Béstia (Thaíde), um velho amigo do protagonista, lembra que “o mundo visto pelos olhos de branco devem ser lindos”. Afinal, Aurélio só se envolve com o caso depois de muita insistência e da perturbação de sua própria paz. O trunfo do diretor se apoia em justamente admitir que não entende a perspectiva do outro e, no final das contas, realmente vê o mundo por trás de seus privilégios até que estes são abalados, sem pretensão de equiparar a falta de sossego com a dor de uma família. 

Cena do filme O Homem Cordial. A cena se passa a noite e os personagens no quadro estão contra a luz de um automóvel, desfocado em segundo plano. Do lado esquerdo, vemos dos ombros para cima um homem branco careca, aparentando cerca de 50 anos. Ao centro, vemos uma arma encostada no pescoço do personagem à direita, um homem branco de cerca de 50 anos, com cabelos e barba grisalhos.
O “cordial” do conceito de Buarque de Holanda vem do latim Cordis, que significa coração (Foto: O2 Play)

Sérgio Buarque de Holanda propôs a ideia do homem cordial em 1936. Quase uma década depois, a observação do conceito na prática soa pertinente – afinal, o filme partiu do episódio de linchamento do seu descente direto, Chico Buarque. Inegavelmente a obra foi prejudicada pela dinâmica de lançamento, que já submeteu outras produções brasileiras à mesma condição e chegou sem o senso de urgência que a própria história almeja. No final, O Homem Cordial soa como um estudo de anos passados, mas também como um alerta: não nos livramos de nada e a parcela da sociedade que normaliza a selvageria está sempre à espreita.

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