Nosso Sonho é coisa de Cinema

Nosso Sonho esteve entre os cotados para representar o Brasil como Melhor Filme Internacional no Oscar 2024 (Foto: Manequim Filmes)

Vitória Gomez

Se o Cinema é um modo divino de contar a vida, as cinebiografias são a vida passando na frente dos nossos olhos. No entanto, assim como acontece com os documentários, realidade e ficção se misturam e o ponto de vista sempre se sobressai. Por que não usar isso a seu favor? É o que Nosso Sonho: A História de Claudinho e Buchecha faz: o longa-metragem que reconta a trajetória da maior dupla de funk nacional abraça de vez o sentimento e mostra que, por trás das coreografias inusitadas e das letras contagiantes, o que prevalecia era a amizade entre os dois.

Na trama, Buchecha (Juan Paiva) – na época Claucirlei – conhece Claudinho (Lucas ‘Koka’ Penteado) enquanto ainda eram crianças, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Depois de uma separação, os dois se reencontram no Salgueiro (local que foi tema da primeira música dos artistas) e retomam a amizade de infância mais forte do que antes. Entre bailes funks e partidas de futebol torcendo para o Flamengo, os jovens decidem formar uma dupla de MCs. E o resto é história.

Na versão mais jovem, Claudinho e Buchecha são interpretados por Boca de 09 e Gustavo Coelho, respectivamente (Foto: Manequim Filmes)

Nosso Sonho logo de cara já indica o que está por vir: para reviver uma dupla tão emocionante, a imparcialidade não será o forte. Nessa empreitada, quem assume a tarefa de exprimir tal emoção é o próprio Buchecha, tomando para si o lugar de narrador da história e personagem principal. Nisso, a entrega de Juan Paiva não falha na tarefa, perdendo lugar talvez apenas para o protagonista absoluto de Lucas ‘Koka’ Penteado, na pele de Claudinho. 

Enquanto o intérprete do segundo nome da dupla é quem leva a história para frente, tanto em narração como em ponto de vista, e fica com a responsabilidade das cenas dramáticas, Penteado ilumina o ambiente a cada segundo que aparece em tela. Os maneirismos e a língua presa do cantor são reproduzidos fielmente pelo ator, que brilha em todos os momentos e faz jus à figura de Claudinho pintada pelo longa. Se na obra o cantor é representado como a força motriz da dupla, ‘Koka’ incorpora a essência de tal papel e rende desde passagens emocionais até boas risadas nas duas horas de duração do filme.

Momentos cômicos e dramáticos tornam Nosso Sonho uma montanha-russa de emoções (Foto: Manequim Filmes)

O filme não escapa de alguns clichês, mas justifica sua escolha. O roteiro – assinado pelo grupo formado por Eduardo Albergaria, Daniel Dias, Mauricio Lissovsky e Fernando Velasco – opta por uma narração batida, que por vezes denota algumas previsibilidades de como a história se sairá. Ao final, por exemplo, a reflexão de Buchecha sobre o impacto do amigo em sua vida não requer explicações. No entanto, o que poderia ser uma armadilha para uma dissertação sobre os eventos da vida dos dois, ao invés de mostrá-los, se revela o trunfo de Nosso Sonho.

É regra do gênero que as cinebiografias vão além da carreira do artista retratado e exploram a vida pessoal de seus objetos. O longa muda a estratégia: aqui, a trajetória de vida de Cláudio e Claucirlei constrói não apenas um panorama da carreira de ambos, mas uma declaração de amor a Claudinho. Sob a direção de Albergaria (que também assina o roteiro), cenas que poderiam ganhar tons didáticos viram emotivas e íntimas – desde a infância juntos até a ideia de formar a dupla, das composições ao nervosismo de subir ao palco pela primeira vez, da ideia da divertida coreografia até as conquistas no auge da fama. 

A atuação de Nando Cunha como Buchechão, o pai de Buchecha, é um dos destaques de Nosso Sonho e foi descrita pelo ator como o melhor papel de sua carreira (Foto: Manequim Filmes)

Não por menos, a direção e roteiro igualmente atenciosos ganharam a benção do próprio Buchecha, que assina parte da direção musical e, trazendo de volta hits da dupla, torna tudo ainda mais envolvente. Unida a eles, a direção de fotografia de João Atala também se sobressai. Com passagens naturalistas dos dois no dia a dia, desde em casa até o ônibus a caminho do trabalho, Nosso Sonho salta aos olhos quando ambos frequentam os bailes funks ou sobem aos palcos como Claudinho & Buchecha. As cores e a animação da dupla em frente à câmera criam uma atmosfera imersiva que torna impossível não mergulhar no sonho dos maiores expoentes do funk melody.

Ainda, reproduzindo imagens de arquivo, como as performances dos dois, o filme cria um tom nostálgico até para quem não acompanhou de perto a ascensão da dupla. Os figurinos característicos e chamativos e as expressões cheias de personalidade se somam ao belo trabalho do longa-metragem, que seria um concorrente à altura caso tivesse sido o escolhido para representar o Brasil no Oscar 2024 – a vaga ficou com Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho.

Ao final, o filme não faz milagre. A história não se encerra na morte de Claudinho – o cantor faleceu em um acidente de carro em 2002 em uma rodovia em Seropédica, no Rio de Janeiro, voltando de um show da dupla – e respeita o que foi construído até ali: a ligação intensa dos dois não terminaria com o fim da parceria musical, mas a amizade, os ensinamentos e a conexão é eterna. Mesmo jogando seguro, Nosso Sonho: A História de Claudinho e Buchecha faz jus a maior dupla brasileira do gênero. Acima de tudo, presta homenagem a um artista, ídolo de uma geração e amigo.

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