Marcel the Shell with Shoes On: Nos menores frascos, estão os maiores corações

Cena do filme Marcel the Shell With Shoes On. Nela, vemos um personagem Marcel, uma concha do tamanho de uma polegada em cor nude com um olho onde era para ser sua abertura, uma boca e sapatos com a ponta vermelha. Ele está sobre um computador, olhando para a tela e boquiaberto.
Marcel the Shell with Shoes On é o resultado de mais de 10 anos de amor pelo personagem mais amoroso do audiovisual recente (Foto: A24)

Guilherme Veiga

Desde que o gênero mockumentary caiu nas graças do público, a vertente buscou explorar os contextos mais improváveis, indo de uma empresa de papel da Filadélfia, passando por um grupo de vampiros em Staten Island e chegando na vida de um excêntrico repórter cazaque aterrissando nos Estados Unidos. Naturalmente vinculado à comédia, é de praxe que falsos-documentários abracem o nonsense e joguem fora toda a busca por credibilidade. Porém, é da premissa mais absurda que o produto é tratado de forma mais séria.

É assim que Marcel the Shell with Shoes On, nova aposta da A24, a primeira do estúdio envolvendo animação, se desenvolve. Misturando live action com stop-motion, a obra acompanha Marcel, uma adorável concha do mar antropomórfica com um olho e que veste sapatos, vivendo sua vida em um Airbnb com sua avó. Após um documentarista se hospedar nessa casa e descobrir os inquilinos, Marcel ganha fama repentina e usa dela para encontrar sua família. Apesar de extremamente descolado da realidade e tendo um pano de fundo que beira o infantil, o falso-documentário é extremamente maduro e consegue transformar a jornada da concha para um debate sobre os sentimentos humanos de forma muito singela.

Cena de Marcel the Shell with Shoes On. Nela, vemos Marcel e Connie, sua avó que também é uma concha, um pouco maior que Marcel, com um olho do lado direito, já com sinais de idade e sapatos. Eles estão sob um notebook, em duas almofadas feitas com algodões. No notebook e na mesa, há pipocas espalhadas.
Marcel conta com três curtas no Youtube que somam aproximadamente 53 milhões de visualizações, além de dois livros infantis (Foto: A24)

Mesmo levando o selo da A24, que hoje é sinônimo de excelência, vale lembrar que a obra se trata de uma produção independente. Tanto que o longa foi concebido em 2021, circulando por festivais até ser adquirido pela produtora no começo de 2022 e só chegou ao circuito comercial, de forma muito limitada, na segunda metade do ano. Mas, assim como os outros produtos envolvendo a concha, a obra ganhou o mundo de forma orgânica, graças a sua fofura.

A produção cinematográfica é a convergência de duas origens. Inicialmente, o personagem surgiu a partir de uma voz que Jenny Slate (a Mona-Lisa Saperstein de Parks and Recreation) criou quando ela mantinha um relacionamento com o estreante diretor Dean Fleischer Camp. A voz tomou forma e, em 2010, um curta, com mesmo nome do filme, se tornou viral no YouTube. É aí que Marcel the Shell with Shoes On rompe a linha tênue entre falso-documentário e documentário, pois o longa, em uma coincidência metalinguística, usa do gênero para expandir uma história que, de certa forma, aconteceu.

A ideia de usar do gênero documental para jogar o telespectador na visão de Marcel (seja essa visão de ou do mundo) foi um artifício muito inteligente. Aliado ao design de produção de Liz Toonkel, o dia a dia da concha em um ambiente totalmente desproporcional ao seu tamanho nos remete ao sentimento de deslumbramento e nostalgia de Toy Story ou O Pequeno Stuart Little. E no momento em que o documentarista – que na obra também é o próprio diretor Dean Flescher Camp – se coloca a disposição para aprender a forma como o personagem enxerga a vida, ele evidencia que iremos entender a vida por aquela ótica.

Gif de Marcel The Shell with Shoes On. Nele, Marcel está sobre o notebook enquanto gesticula, falando com a câmera. É possível perceber que ela está sobre a tecla Z, pois ao fundo a tela do computador está com um documento aberto, onde a letra Z aparece sendo digitada repetidamente.
A forma como Marcel lida com as diferenças de proporção e como a obra usa disso para fazer piada é um dos maiores trunfos da produção (GIF: A24)

Por isso, se engana quem pensa que, por ser uma animação, o filme seja necessariamente infantil. O longa possui uma base que pende para a melancolia e abrange uma gama vasta de assuntos através de seu texto, dividido entre Dean, Jenny e Nick Paley. É natural das animações usarem da aventura como fio condutor e a partir dela discutir temas, a exemplo do também indicado ao Oscar Red: Crescer é uma Fera, que usa da jornada de reverter uma maldição familiar para discorrer sobre a relação mãe e filha. 

Aqui é ao contrário: a aventura está em segundo plano, sequer aparecendo realmente, fazendo com que o filme se contrua a partir de suas reflexões sobre relações familiares, aproximação e distanciamento, o passar do tempo, pertencimento e até mesmo a midiatização de personas. Mas, sem dúvidas a maior mensagem é sobre saber enxergar felicidades nas pequenas coisas, e isso é personificado no próprio Marcel: um ser tão pequeno e fofo, mas que carrega todos os sentimentos consigo.

Toda essa personificação é mérito de Jenny Slate. O fato do protagonista ser um personagem masculino e infantil exige um pouco mais de sua dubladora. Mas o que deixa tudo mais desafiador é que o design idealizado para a concha por Dean, tem pouquíssima expressão. Felizmente, Slate carrega todo o sentimentalismo da obra através de uma voz única e afetuosa, mesclando ingenuidade, curiosidade, esperança e conformismo, tornando o personagem-título uma das figuras mais adoráveis do Cinema no último ano. Vale destacar também o trabalho de Isabella Rossellini (Veludo Azul) interpretando a avó Connie e seu sotaque inconfundível que, segundo Marcel, acontece porque ela não é daqui – é da garagem.

Cena de Marcel the Shell with Shoes On. Nela vemos Marcel sob um mapa. Ele olha em direção a câmera enquanto fala com ela. Ao seu lado, há um pin vermelho fincado no mapa e mais ao canto da imagem, um lápis em madeira na cor amarela e com uma borracha vermelha na ponta
A personalidade fofa da concha a selou como uma das figuras mais adoráveis da cultura pop (Foto: A24)

O conjunto de acertos da produção convergiu em um sucesso natural, o que fez com que a obra figurasse no alto escalão da temporada, a colocando como candidata ao Oscar de Melhor Animação. Porém, apesar de sua qualidade inegável, ele chegou a ser dúvida na lista final. A Academia considera animação longa-metragem uma produção com mais que 70 minutos e que seja preenchida por pelo menos 75% do seu tempo com técnicas de animação. 

Os 90 minutos de longa, sustentados majoritariamente por um único personagem em meio ao mundo real, causaram a tensão de talvez não se enquadrar nos moldes dos votantes. Por sorte, o pseudo-documentário integrou a categoria. A competição é bem acirrada; em um ano de não dominância de Disney e Pixar, ele disputa com o favorito Pinóquio por Guillermo del Toro e a surpresa Gato de Botas 2: O Último Desejo. Mas esse cenário é resultado de uma das melhores e mais diversa lista do gênero em anos.

Marcel the Shell with Shoes On é um poço de originalidade e mostrou ir muito mais além do que a que veio. O longa propositalmente deixa de lado a discussão sobre a existência daquela concha falante para transformá-la em uma reflexão sobre nossa própria existência. Dessa forma, mais do que antropomorfizar um objeto marinho, ele dá rosto para nossos sentimentos, personificados em alguém que, apesar de absurdo, é um retrato perfeito do que é viver à deriva desse oceano de sensações que é a vida.

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