É como se a fita amaldiçoada da Samara de O Chamado (2002) sofresse uma transfusão sanguínea da IST mortal que assola Corrente do Mal(It Follows, 2015). Não há maneira simples de descrever o sorriso mortal que intitula a estreia em longas do cineasta Parker Finn. Na simples e direta trama de Sorria (Smile), uma psicóloga testemunha um suicídio e vê a própria vida se tornar um labirinto nefasto, em que só há saída na morte.
“Por que você veio até mim antes de ir à Polícia prestar queixas?”, disse o grande padrinho, Don Vito Corleone, no início de O Poderoso Chefão. Aclamado pela crítica, vencedor de três Oscars e dono da mais alta charmosidade cinematográfica, o filme de Francis Ford Coppola celebra cinco décadas. Você conhece aquela expressão “old but gold”, ou “velho, mas brilhante”? Se encaixa perfeitamente para resumir essa fantástica ascensão de um império americano à moda italiana. Este texto traz como tema central as nuances e razões que fazem da obra algo irrecusável, à frente de seu tempo e referência na arte de expor a máfia nas telonas.
É até um pouco difícil acreditar que demorou mais de uma década para que a Marvel introduzisse uma personagem obcecada com seu próprio universo. Diferente de Kate Bishop (Hailee Steinfeld), que viveu o sonho de encontrar seu herói e assumir seu manto em Gavião Arqueiro, Kamala Khan (Iman Vellani) precisa aprender a se virar sem a ajuda de nenhum dos Vingadores que passou a vida admirando, nem mesmo de seu ídolo, Carol Danvers. Mas isso não significa que Ms. Marvel esteja sozinha, já que seus verdadeiros super-poderes são a família e a comunidade.
“Simplesmente isso não se vê. (…) Nos tomamos por pessoas, mas não somos pessoas. Somos, à nossa maneira, pequenos acontecimentos.”
– Gilles Deleuze em aula ministrada no ano de 1980 no Centro Universitário de Vincennes, em Paris, na França.
Raquel Dutra
Quando, em 2000, Annie Ernaux intitulou o livro que abriria pela primeira vez ao mundo a sua experiência com uma gravidez indesejada e um aborto clandestino na França de 1960, ela com certeza estava ciente da referência filosófica que marcaria a sua obra, mas não imaginava com a mesma intensidade a dimensão da sua representação – e, por consequência, o rompimento que O Acontecimento provocaria com suas próprias conceituações. É que, enquanto o termo do título evoca a ideia de uma experiência de individuação (como o próprio detentor da “filosofia do acontecimento”definiu), todo o desenvolvimento do livro trata de uma história particular vivida a nível universal (mais precisamente, presente em quase metade das vivências em questão do mundo).
Uma família negra de Minas Gerais navega por um Brasil incerto e nebuloso, afetado pela eleição de um presidente que representa o oposto de quem são. O véu de mundanidade da trama, escrita e dirigida por Gabriel Martins, chamou atenção por onde passou, sendo condecorada em Sundance e em Gramado, chegando, enfim, às portas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que escolheu a obra como a representante nacional na corrida pela estatueta de Melhor Filme Internacional no Oscar 2023.
Por muitos anos, homens, crianças e principalmente mulheres foram perseguidos acusados de bruxaria. A criação do livro Malleus Maleficarum, em 1484, serviu como um manual educativo para perseguir e eliminar indivíduos suspeitos de realizar ações paranormais. O guia é de autoria de Heinrich Kraemer, inquisidor famoso durante a Idade Média, e algumas versões da obra chegam a contemplar a bula papal de Inocêncio VIII, chamada Summis Desiderantis Affectibus, que demonstra apoio à caça às bruxas. Ao estudar profundamente o livro, o diretor e roteirista dinamarquês Benjamin Christensen se inspirou para criar sua obra-prima, Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos.
Succession somente existe porque os filhos de Logan Roy, dono de um conglomerado de mídia, tiveram uma infância em que os jogos de poder ultrapassaram os tabuleiros e a imaginação. Como se ditasse a parlenda brasileira Uni, duni, tê, o patriarca da família sempre brincou com as ambições de Kendall, Siobhan e Roman, mas, depois do salamê, do minguê e do sorvete colorê, o escolhido para assumir o controle da Waystar Royco nunca é batizado. Em sua terceira temporada, a série do HBO Max finalmente une os irmãos e alonga a sua aclamação com 25 indicações ao Emmy 2022, sendo a líder absoluta da noite de premiações.
Lá pela 3ª temporada, Queer Eye já fazia mais do mesmo: replicava sua receita de sucesso, espalhando o valor do autocuidado com alegria e empatia. Mas se em time que está ganhando não se mexe (sim, o contexto merece uma piada do meio futebolístico heteronormativo), uma pandemia de coronavírus desafiou o reality da Netflix a fazer ainda mais pelo amor próprio dos outros. E foi assim, abraçando a fragilidade de seus participantes recém vacinados, que Antoni Porowski, Bobby Berk, Karamo Brown, Jonathan Van Ness e Tan France entregaram uma 6ª temporada para se engasgar de tanto chorar.
Convergir o que há muito tempo está fragmentado nunca seria uma tarefa fácil. Saul Goodman embarca em um capítulo de desafios contra vilões-heróis já consolidados para provar que uma mente do crime e da justiça pode precisar de uma mesma qualidade: saber cortar caminhos. Na sexta temporada de Better Call Saul, olhamos para os detalhes finais que constroem a narrativa ressentida e desenfreada da vida de um ex-advogado.
É sempre curioso observar a forma como a violência é veiculada no Audiovisual. Historicamente, a ideia de um assassino de aluguel deprimido não é tão inovadora; na realidade, continua explorada após décadas de representação em videogames e filmes de adaptação. A bem da verdade, é algo sempre deixado nas entrelinhas dos roteiros do gênero, cujas cenas finais giram em torno das redenções platônicas e apaixonadas dos frios matadores, que se rendem ao sentimentalismo e à reivindicação das próprias condições individuais (O Justiceiro [2004], Hitman [2007], Max Payne [2008]).
Parece estar imposta, de forma silenciosa, uma condição depressiva na qual o sentido reside na incansável busca pela “justiça” – improvável, abstrata, distante e egoísta. Mas é aqui que Barry se distancia de todas essas realizações: a condição melancólica do protagonista se estabelece, desde o princípio, como o mote para suas ações, e o ato de cometer os crimes visa, na verdade, preencher seus dias para que ele não pense nos problemas que envolvem sua condição existencial.