Sorria aposta em uma narrativa sensível sobre trauma

Cena do filme Sorria, mostra uma jovem branca parada e olhando para a câmera, sorrindo de maneira assustadora. Ela usa blusa verde e camisa xadrez em tons terrosos.
A princípio, o filme tinha planos de ser despejado diretamente no streaming, mas ótimas reações em sessões teste fizeram a distribuidora mudar sua estratégia e planejar um lançamento nos cinemas (Foto: Paramount)

Vitor Evangelista

É como se a fita amaldiçoada da Samara de O Chamado (2002) sofresse uma transfusão sanguínea da IST mortal que assola Corrente do Mal (It Follows, 2015). Não há maneira simples de descrever o sorriso mortal que intitula a estreia em longas do cineasta Parker Finn. Na simples e direta trama de Sorria (Smile), uma psicóloga testemunha um suicídio e vê a própria vida se tornar um labirinto nefasto, em que só há saída na morte.

A psicóloga é a doutora Rose Cotter, interpretada com garra por uma alucinada Sosie Bacon (de Mare of Easttown e 13 Reasons Why). Em um dia aparentemente comum no hospital onde trabalha longas horas, a mulher é chamada para atender Laura Weaver (Caitlin Stasey) em pânico, dias após ela mesmo ter presenciado a morte de um professor na faculdade. Os sintomas parecem ser alucinógenos: a garota não para de ver sorrisos por aí. O problema, no entanto, é que eles não simbolizam simpatia ou boa educação.

Cena do filme Sorria, mostra uma mulher branca encostada na parede, com expressão de medo no rosto, a boca aberta e os olhos lacrimejando, sendo iluminada por uma luz laranja.
Bingo da família Bacon no Cinema de horror em 2022: enquanto Sosie deu a vida em Sorria, o papai Kevin protagonizou o insosso They/Them (Foto: Paramount)

Seja no rosto de um transeunte qualquer, ou na feição de um parente há muito tempo falecido, o sorriso carrega o terror da morte e, depois de revelar tudo isso a uma desacreditada doutora, Weaver abre a garganta com o caco de vidro do vaso que acabou de quebrar. A cena, traumática pela mutilação e pelo sangue que logo tinge de vermelho o chão límpido do consultório, se impregna na mente de Rose. 

Sem chão, Bacon injeta a turbidez que o evento acomete em sua personagem, que não demora muito a enxergar os tais sorrisos, sussurrando maldições e perturbando sua psique. Nessa toada, o roteiro e a direção de Finn, que adapta para o formato de longa o seu curta Laura Hasn’t Slept, vão cavando o medo e o trauma da protagonista, em especial quando se refere ao suicídio da mãe, que aconteceu quando ela não passava de uma garotinha.

Cena do filme Sorria, mostra uma mulher branca sorrindo de maneira assustadora. Ela usa roupas brancas e olha em direção à câmera.
Na pele de dois doutores que tentam ajudar a protagonista, o filme escala os sempre ótimos Kal Penn (The Big Bang Theory) e Robin Weigert (Big Little Lies) [Foto: Paramount]
Explorando suas dinâmicas familiares nada saudáveis com a irmã Holly (Gillian Zinser) e com o noivo Trevor (Jessie T. Usher, o A-Train de The Boys), Sorria não economiza nos sustos e no mistério de ambientes mal iluminados e portas batendo ao vento. De fato, o trabalho por trás das câmeras eleva a simplicidade do material base, com especial menção para o design de som e da direção de fotografia, responsabilidade de Charlie Sarroff (Relíquia Macabra).

O que se inicia com um jogo de gato e rato entre a personagem principal e a entidade sorridente logo se transmuta na busca por respostas. Com a ajuda de Joel (Kyle Gallner, de Pânico), o ex-namorado policial que orbita sua vida, Rose descobre a figura de Robert Talley (Rob Morgan, de Stranger Things), um presidiário que pode ajudá-la a se livrar dessa doentia partida de pega-pega. Quando decide focar sua narrativa na possível origem do mal, Sorria parece considerar a possibilidade de se jogar sem medo em mitologias, para além do ar mundano que assola a produção.

Cena do filme Sorria, mostra uma mulher dentro do carro, olhando de lado pela janela do motorista. Lá fora, vemos outra mulher, vestindo uma blusa rosa e com a cabeça caindo do pescoço, como um pêndulo, sorrindo de maneira assustadora.
Sorria abusa criativamente na hora de bolar seus sustos e jumpscares, com destaque para as cenas do computador e da janela do carro (Foto: Paramount)

Mas essa decisão se esvai e Parker Finn recua a grandeza de sua estreia, atendo-se a uma micro-batalha entre o passado e o presente. Acontece que a decisão de envelopar o trauma e o luto nessa embalagem medonha (e com um marketing para lá de criativo) é a jogada mais acertada do diretor. Afinal, discutir temas inerentes ao homem no gênero mais barato de todos é costume desde os tempos de vampiros alemães

Exemplos atuais não faltam, e compartilhando a temática da ausência materna, Sorria vai além da sobriedade do já mencionado Relíquia Macabra, sem nunca abrir mão de doses cavalares e calculadas de humor como escape da tensão, fazendo valer seu lançamento nas salas de cinema e todo o escopo que um filme distribuído pela Paramount detém. O sorriso que amaldiçoa o mundo de Smile nasce do medo surgido na pandemia, como revelou o cineasta. Afinal, o enclausuramento mental é a oficina do diabo, com qualquer identidade que ele queira tomar: de um paciente barbudo a uma figura distorcida e desengonçada que se recusa a entrar em combustão.

Cena do filme Sorria, mostra uma mulher branca sentada, olhando para a câmera e sorrindo de maneira assustadora. Ao seu lado, vemos uma criança com as mãos nas orelhas, com medo.
Surfando na onda de prequelas, não seria surpreendente uma nova investida no universo de Sorria, quem sabe explorando a maldição que assolou o Brasil alguns anos atrás, ou mesmo a raíz de todo esse mal (Foto: Paramount)

Desde seu uso como símbolo embrionário na Arte grega, o sorriso possui essa equiparação automática à felicidade e ao gozo. Ao escolher não apenas nomear seu terror como medo, morte e luto com a alcunha, mas também colocar seus atores para performar o ato das maneiras mais disformes possíveis, Parker Finn acende uma estrela em sua mente cineasta (e ainda presta homenagem ao imortal O Homem que Ri, pioneiro em fazer gargalhar de medo). Nada estranho ao seu currículo, que apresenta dois curtas-metragens com a mesma pegada desconfortável de ambientes comuns invadidos pelo mal invisível. 

Mas de nada adiantaria uma direção confiante, roteiro conciso, e design de produção arrojado sem uma performance principal à altura. E o trabalho de Sosie Bacon, filha de Kevin Bacon e Kyra Sedgwick que alcança o primeiro papel de peso nas telonas, se destaca em um ano recheado de jovens atrizes se esgoelando no Cinema de horror, do trabalho fenomenal de Mia Goth em X e Pearl, até o quinteto que domina Bodies Bodies Bodies

Na pele da doutora Cotter, Bacon retém o medo na altura da cabeça, com expressões faciais amedrontadoras por si só, além de um senso reativo de primeira. Quando vê a pequena flexão nos lábios que logo resultará em um sorriso sinistro, a atriz faz metamorfose com os músculos do rosto, descola os olhos da face, fecha a boca em desespero e o transmite para quem assiste, junto da temível sensação de impotência. Em Sorria, não há como fugir do inevitável.

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