O cenário é uma floresta gelada da Noruega. Pai e filha, de no máximo 6 anos, avistam um cervo durante a caçada. A arma na mão do pai se volta do animal à pequena Thelma, que nunca chega a notar a movimentação. Ele continua firme ali, arma em riste apontada para a menina, até o cervo se dispersar. Dos poucos, mas longos minutos, o filme corta para outra cena e uma Thelma crescida está enfrentando seus primeiros dias na faculdade. É assim que Thelma se inicia: ensurdecedora, impactante e misteriosa, a obra de Joachim Trier exagera para preparar o terreno para o que vem a seguir.
Intocável, a figura da freira se tornou fonte de lascivas fantasias. Cobertas pelo mistério do tecido negro de seus hábitos, enclausuradas pela solidez das paredes de pedra e tomadas pela devoção santificada por Jesus, desde a origem da Igreja Católica como organização, a silhueta inconfundível das noivas de Cristo corporificou-se, do espírito à carne, contra o olhar. Desse olhar reprimido emergiu uma miríade de representações cuja maior tentação se debruça no magnetismo feminino oculto dentro de um convento. No retorno de Paul Verhoeven em Cannes 2021, o drama semi-biográfico Benedetta tateia o subgênero, revelando, por trás do protagonismo progressivo das mulheres enquadradas em cena, um agressivo observador – masculino.
Está aberta a temporada de festivais na cobertura do Persona. Entre os dias 31 de março e 10 de abril, a realização do 27º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade inaugurou o ano para as nossas aventuras cinematográficas. Depois de um 2021 marcado pelo Cinema das mulheres, da cidade maravilhosa, das experimentações e fantasias, 2022 se inicia com a única coisa da qual não podemos fugir: a realidade.
Mas na verdade, o espectro contemplado pelo maior festival de documentários do mundo era muito desejado para integrar o horizonte das nossas experiências. Dessa vez, o anseio se tornou possível graças ao formato de realização do É Tudo Verdade, que aconteceu de forma totalmente gratuita e híbrida, sendo presencialmente nos cinemas das capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, e virtualmente através da plataforma de streaming do festival e das dos parceiros Itaú Cultural Play e Sesc Digital.
A seleção é tão vasta quanto o tema que a define: 70 filmes, que entre curtas, médias e longas-metragens, se dividiram nas mostras competitivas e nas demais categorias de exibição (Foco Latino-Americano, Sessões Especiais, O Estado das Coisas, Clássicos É Tudo Verdade). Trazendo o Cinema documental realizado em mais de 30 países, o alcance do É Tudo Verdade é reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, de forma a classificar diretamente os filmes vencedores dos prêmios dos júris nas Competições Brasileiras e Internacionais de Longas/Médias e de Curtas Metragens para apreciação ao Oscar do ano que vem.
À distância, o Persona selecionou 25 títulos a fim de compreender a seleção de 2022, que elegeu como os homenageados da vez Ana Carolina e Ugo Giorgetti, dois dos nomes mais importantes do Cinema de não-ficção brasileiro. As obras de abertura propuseram uma reflexão sobre o passado, presente e futuro da Sétima Arte, enquanto o encerramento do festival ficou na responsabilidade de um dos premiados pelo público e pelo júri da edição mais recente do Festival de Sundance.
A curadoria do Persona conferiu todos eles, além das obras vencedoras e demais títulos que chamaram a atenção de Bruno Andrade, Enrico Souto, Raquel Dutra e Vitor Evangelista. O resultado dessa aventura você pode conferir abaixo, e em meio a experiências milagrosas, figuras históricas, lutas urgentes e muitas reflexões filosóficas, vale o aviso: não se esqueça que é tudo verdade.
Para amenizar os males emocionais causados durante a Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 50 e 60, houve o que se pode chamar de Era de Ouro dos musicais nos cinemas. Mostrando que é possível criar obras de qualidade fora dos muros de Hollywood, o diretor francês Jacques Demy (Os Guarda-Chuvas do Amor, A Baía dos Anjos) se destacou com o sucesso de bilheteria lançado em 1967, Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort), arrebatador tanto pela energia vibrante que provém de cada cena, quanto pela simplicidade da trama, ao tratar assuntos considerados sérios de forma leve e sutil.
Opte por separar o artista da Arte ou não, Julia Ducournau já cravou seu nome em suas produções. Titane, a mais nova empreitada da cineasta francesa, estreou no Festival de Cannes, onde fez história ao levar a honraria máxima da premiação, a Palma de Ouro, e chegou ao Brasil na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O segundo projeto veio antecipado depois do sucesso do polêmico Grave, mas a sangrenta e canibalesca estreia da diretora vira só a porta de entrada para os horrores que vem depois. E não adianta, nem Cannes conseguiu: não tem como se blindar de Titane.
Em novembro de 2013, a população civil da Ucrânia entrou em conflito direto com o governo de Víktor Yanukóvytch. Numa onda de protestos liderados por jornalistas e estudantes que se estendeu até fevereiro de 2014, o povo denunciava a corrupção, o abuso de poder e a violação dos direitos humanos cometidos pelo governo. O estopim, de maneira geral, foi a frustração de um pedido popular por maior integração com União Europeia, que aconteceu quando o bloco se recusou a firmar acordos com o país aliado da Rússia enquanto ele não resolvesse a sua “deterioração flagrante da democracia e do Estado de Direito”. No meio do movimento que ficou conhecido como Euromaidan – ou, mais significativamente, Revolução da Dignidade – está o drama de amadurecimento de Olga e a sua participação na Competição Novos Diretores da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O cinema de Leos Carax sempre teve uma relação íntima com a Música, indo da belíssima caminhada noturna ao som de David Bowie em Boy Meets Girl ao “intervalo” com uma impressionante versão instrumental de Let My Baby Ride em Holy Motors. Nesse sentido, Annette, novo trabalho do cineasta francês exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, extrapola esse laço com a Música de uma forma nada convencional.
Nascido como um exercício de autorreflexão e uma carga exorbitante de sentimentos, o filme Ahed’s Knee chama atenção por uma série de fatores. Primeiro, vem da mente de Nadav Lapid, cineasta que viu seu longa anterior, Synonymes, vencer dois importantes prêmios de Berlim. Segundo, pois o indeciso Júri de Cannes 2021 o condecorou em um empate com Memoria. Terceiro, pois sua chegada no Brasil pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo carimba o passaporte já lotado de festivais por onde viajou.
O nome do novo filme de Kamila Andini é exclamado em muitos momentos dentro dos 90 minutos que o abrigam. Não é para menos, afinal, as reações à figura que o batiza: uma adolescente cheia de sonhos, perspicácia e incertezas que vive no interior conservador e religioso da Indonésia. Antes de chegar na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Yuni gerou o mesmo sentimento no Festival de Toronto 2021, de onde saiu com uma recepção muito positiva e agraciada com Platform Prize, que reconhece filmes com “alto mérito artístico” e que também apresentam “uma forte visão de direção”.
Todas as memórias são imperfeitas, incompletas, limitadas. Um som, um gesto, uma visão, tudo se dissolve passado o seu momento de existir, e sobrevivem apenas em uma reconstituição nebulosa registrada em nossa mente. Uma memória pode não traduzir com exatidão os eventos vivenciados por um indivíduo, o que não quer dizer em nenhuma hipótese que ela é sem significado. As lembranças representam ideias que, muitas vezes, não somos capazes de traduzir em linguagem, mas que, ainda assim, sentimos, e sentindo sabemos que aquilo é significativo. Do mesmo modo que uma memória paira em nossa mente, Memoria, exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é uma obra enigmática e impossível de ser descrita com precisão, mas que, talvez por isso mesmo, está repleta de significados.