Terror, magia, quase apocalipses e empoderamento feminino em Buffy, a Caça-Vampiros

 

*Atenção: contém spoilers!

Bárbara Alcântara

A loira, líder de torcida, branca, magra e atraente é sempre uma das primeiras a morrer nos filmes de terror. Para comprovar essa premissa é só entrar na aba da Netflix com essa classificação. Os gritos estridentes são logo calados por uma facada de Jason Voorhees em “Sexta-feira 13”. O mesmo acontece nas mãos de Freddy Krueger em  “A Hora do Pesadelo”, Ghostface em “Pânico”, Michael Myers em “Halloween” e tantos outros títulos. Era humanamente impossível imaginar que uma menina que se preocupasse tanto com a aparência poderia ser também inteligente e corajosa.

Eis que, em 1997, surge uma adolescente americana padrão que quebra com esse ciclo: Buffy Summers não só não morre nos primeiros episódios de “Buffy, a Caça-Vampiros”, como ela é a mais nova de uma linhagem de caçadoras que têm como missão no mundo salvar toda a humanidade de vampiros, demônios e todos os tipos de monstros que você puder imaginar. E ela é a única (viva) com capacidade de fazê-lo.

A ideia original, na realidade, veio de um filme de 1992 escrito por Joss Whedon (produtor da série) e dirigido por Fran Rubel Kuzui. A sinopse e o título são os mesmos. O intuito era tirar um sarro de todos os clichés dos clássicos do terror, a começar pelos estereótipos ridiculamente construídos – a personagem principal, sempre a mocinha indefesa salva pelo mocinho habilidoso, a líder de torcida e a nerd que eram mortas logo no início; Até chegar nos cenários e nas maquiagens de baixo orçamento etc.

Cena do filme original, bem dramático

Infelizmente, o roteiro foi tão alterado que o filme ficou patético demais. Mas, felizmente, Joss Whedon não desistiu. Entre 1997 e 2003, trouxe à tv as sete temporadas de “Buffy, a Caça-Vampiros”. O mesmo roteiro foi abraçado por uma produção técnica que rendeu à série prêmios dos mais variados e ainda foi uma das responsáveis por ajudar a até então pequena The WB Television Network (WB é abreviação para Warner Brothers, conhece?) a decolar – na exibição original, o alcance variava entre quatro e seis milhões de telespectadores.

Assistir “Buffy” é se transportar para o fim dos anos 90. Todo o cenário e figurino são um espelho completo do que existia naquele período. A trilha sonora inclui clássicos (ou não tão clássicos assim) do pop, indie e rock da época, como Blink 182, Garbage, Guided by Voices, The Breeders. Mas nem só de anos 90 sobrevive uma série: um dos episódios mais emblemáticos é inteiro musical; Uma paródia dos clássicos cinematográficos dos anos 40.

A cidade fictícia de Sunnydale foi palco para as aventuras dos jovens. A maior parte da série se passa na escola, já que quando Buffy Summers (com esse sobrenome, parece até que a cidade foi feita sob medida) se muda com sua mãe para lá, ela tem 15 anos e está no ensino médio. Por essa razão, além de monstros, magias e batalhas contra o mal, um dos focos da narrativa é também preocupações típicas da adolescência, que ultrapassam décadas: amadurecimento, relacionamentos amorosos, descoberta da vida sexual, relação com os pais (a ausência completa do pai, no caso) etc.

Spike rainha, Edward Cullen nadinha

Os primeiros episódios têm efeitos especiais ainda bem crus, e muitas vezes alguns sangues jorrando ou maquiagens de vampiro são tão bizarras e pouco convincentes que te dão vontade de rir. Mas com o tempo (e maior orçamento), a qualidade foi se elevando – tanto é que a série carrega consigo uma diversidade de prêmios, incluindo um Emmy Awards na categoria “Melhor maquiagem para uma série de televisão”, em 1998.

O elenco, por sua vez, se consagrou com Sarah Michelle Gellar como Buffy, Nicholas Brendon como Xander Harris, Alyson Lee Hannigan como Willow Rosenberg e Anthony Stewart Head como Rupert Giles. Juntos, eles formavam o que ficou conhecido como a “Scooby Gang” (em alusão à turma do desenho “Scooby Doo”), que se encontrava na biblioteca no intervalo entre as aulas para conversar e ainda combatiam os seres e forças sobrenaturais que vinham à terra na tentativa de destruí-la, nas horas vagas.

Scooby Gang já nas últimas temporadas

Ao longo do caminho, personagens novos surgem, antigos saem por temporadas inteiras e retornam – eles, inclusive, tiveram a audácia de, lá pelas últimas, inventar uma irmã para Buffy. Grandes chances de ser um tiro no pé, não fosse pela trama minuciosamente bem amarrada que te convence de que aquilo faz sentido. E não é que faz?

A construção dessas personagens é impecável. Não é apenas a protagonista que se expande e amadurece com o passar do tempo. Na verdade, ao fim da série você se questiona sobre quem, de fato, era a principal. Além disso, se hoje em dia a galera vibra ao assistir produções como “Stranger Things” ou “Jessica Jones” e ver o protagonismo feminino tomando conta, é porque não assistiu “Buffy, a Caça-Vampiros” dando atenção aos detalhes. Ou não assistiu mesmo.

Primeiro, a personagem mais poderosa da série é uma mulher, meio destrambelhada e doidinha, com sarcasmo na ponta da língua, mas com características que dão a ela profundidade (passando longe do estereótipo da manic pixie dream girl). Segundo, sua melhor amiga, Willow, inicialmente uma nerd deslocada, se desenvolve (talvez até mais que a protagonista), tornando-se a bruxa mais poderosa do mundo; Ela também se descobre homossexual, e mantém um relacionamento sério com Tara Maclay (Amber Benson) – e rolam beijos!

De certa maneira, a bruxaria e a homossexualidade caminham juntas. A partir do momento em que Willow passa a conhecer a sua própria essência, ela se sente mais segura para admitir seus sentimentos mais sinceros. A relação com Tara não é vista de forma fetichizada. É romântica. É real. É respeitosa.

A figura da mulher, de forma geral, é pouco hiperssexualizada (no mundo em que vivemos é impossível não ser um pouco, né?). A força feminina não é colocada como um aspecto atraente aos homens e, sim, uma condição das personagens. O visual de Buffy (aqueles modelitos bem anos 90, que toda garota usava diariamente) é bem diferente do ostentado por “Xena, a princesa guerreira”, por exemplo. A série passa com categoria pelo teste de Bechdel

Anya Emerson (Emma Caulfield) é uma personagem bem simbólica: aparece como um demônio que realizava os desejos de mulheres traídas. Ou seja, inimiga de Buffy. Mas acaba se tornando aliada da caçadora e então a sua história é revelada. Ela era casada com um guerreiro viking, Olaf. Até que Olaf, muito bêbado, acabou traindo Aud (seu nome original). Com muita raiva, ela transformou-o em um troll, que foi automaticamente caçado pelos seus próprios amigos. Sua vingança chamou a atenção de forças maiores, que ofereceram-na vida eterna para se tornar um demônio da vingança. Ela então aceitou. Mas seu maior sonho era voltar a ter uma vida normal. E isso se tornou realidade com Buffy e seus amigos.

“Eu, Anya, prometo amar, estimar e honrar você, mas não te obedecer, claro, porque isso é misógino e quem você acha que é, um capitão de navio?”

Esse é um ponto importante da série: ela está repleta de simbolismos. Para quem é da turma que gosta de teorias da conspiração e curte encontrar significados mais profundos para tudo, é um prato cheio. Uma interpretação a ser feita é a da série como um todo, de que o poder da Buffy só foi concedido porque um tal Conselho das Sombras, formado por uma meia dúzia de homens, resolveu entregá-lo (forçadamente, claro) a uma única menina na terra – e uma única menina por vez. E obrigá-la a ter uma expectativa de vida de 25 anos por ter a responsabilidade de manter a terra a salvo de forças sobrenaturais que anseiam por destruí-la.

Ou seja, ela é privada de manter uma vida normal (em certa altura, Buffy se vê desolada ao perceber que não conseguiria se formar na faculdade) por algo que não escolheu. Porque um monte de homem resolveu ditar o seu futuro e escrever a sua vida, e ela não podia fazer nada contra isso. Qualquer semelhança com a vida real pode não ser mera coincidência.

Então, Indo contra o status quo, ela se une a suas amigas e às outras caçadoras que consegue invocar e muda as regras do jogo, fazendo com que mais caçadoras pudessem coexistir, diminuindo a carga de responsabilidade a que apenas uma era submetida. É como um grito à sororidade: não são esses homens que vão decidir o que faremos e se nos unirmos podemos mudar os rumos etc.

Mas é claro que essa é uma interpretação bem subjetiva.

O que dá para dizer com certeza, que é fato incontestável, é a forma como os relacionamentos são retratados na série. Buffy diversas vezes precisa abrir mão de relações amorosas por ter responsabilidades maiores. Ela não tem relacionamento nenhum com o seu pai. E em certa altura, o maior adversário com quem se depara é bem humano. Bem real. Bem conhecido. O namorado abusivo. E esse é o mais assustador nele: que ele existe e mostra as caras a todo tempo. Até hoje.

Por ser pequena, Buffy é subestimada incontáveis vezes. Inclusive por dois dos vampiros de maior aparição na série: Angel ou Angelus (David Boreanaz) – que ganhou até um spin-off depois, não tão conhecido – e Spike ou William (James Marsters). Depois de reviravoltas já que ambos eram tradicionalmente inimigos mortais, Angel se torna o amor da vida de Buffy. Eles passam por muitas adversidades para que pudessem ficar juntos. Mas em certo momento, a caçadora precisa escolher entre a humanidade e o amor e escolhe… A humanidade, claro!

Buffy e Angel em um momento bem intenso, pouco antes dele perder a alma novamente

Spike, o outro vampiro, é bem controverso. Um aproveitador nato. Ele começa como rival e termina se sacrificando por Buffy. Em determinado momento, eles chegam a se relacionar amorosamente, de uma maneira bem atípica (principalmente naquela época): Buffy está se sentindo vazia emocionalmente e acaba transando ocasionalmente com Spike, para tentar preencher esse espaço. Mas ao mesmo tempo, se sente péssima porque sabe que está usando outro ser em seu benefício. É um período bem sombrio de sua vida.

Um detalhe interessante é que, mesmo com toda essa carga simbólica facilmente ligada ao feminismo, a série foi escrita por um homem. Algo muito parecido acontece em “Ghost World” e outras obras que conseguem alcançar uma essência incompreendida do feminino; Um sentimento muito real de toda garota que não consegue se inserir no mundo em que vive. Se isso é um problema ou não, é difícil dizer. Talvez exista até um estudo sobre isso.

Independentemente de qualquer coisa, o importante é que Buffy Summers e sua “Scooby Gang” lá em meados dos anos 90 conseguiram impactar significantemente a narrativa de séries desde então. Não era apenas um grupo de amigos lutando contra os seres do mal; Inclusive, o bem e o mal nem era um conceito tão maniqueísta assim. Relações simbólicas de poder eram vistas como maléficas e muitas vezes era contra as estruturas que era necessário lutar. Tinha gente do mal que virava do bem, do bem que virava do mal. E em diversos momentos as maiores batalhas eram travadas dentro das próprias pessoas.

A lista de influências é extensa. O que seria de “Crepúsculo” ou “Vampire Diaries” se Buffy não tivesse surgido antes?

“Eles brilham?” Buffy falando sobre Crepúsculo

 

Que esse revival dos anos 90 que ainda vivemos em 2017 e já trouxe “Twin Peaks” de volta, traga também Buffy, a Caça-Vampiros. Enquanto isso ficamos saudosos com os episódios na Netflix.

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