black-ish: quando se é negro, é melhor rir para não chorar

Cena de black-ish. Nela está um garoto negro vestindo blusa preta segurando um bebe no colo, olhando e sorrindo para este. Ao seu lado esquerdo, uma mulher negra com o cabelo preso em tranças e uma blusa amarela beija a cabeça do bebê. Na direita um homem negro de blusa vermelha olha para os três com um sorriso no rosto.
A sétima temporada de black-ish chega com tudo nas indicações do Emmy 2021 (Foto: ABC)

Mariana Chagas 

Representatividade importa. Mesmo hoje sendo uma obviedade, tal fato só me foi percebido quando entendi que existia um motivo pelo qual eu, meu irmão e meu pai passávamos tanto tempo assistindo Todo Mundo Odeia O Chris. É claro que a gente ria das falas absurdas da Senhorita Morello, afinal também já tivemos de lidar com professoras racistas em nossas vidas.

No mundo das sitcoms, Chris Rock é apenas um dos nomes que criou comédia evidenciando situações ridiculamente absurdas que a população negra sofre diariamente. Um Maluco no Pedaço (1990) e Eu, a Patroa e as Crianças (2001), também fizeram história. Alguns anos mais tarde, no outono americano de 2014, estreou black-ish. A família composta por Dre, Bow, Zoey, Junior, Jack, Diane, Ruby e Pops é grande, mas muito unida pelas dificuldades que passam, sendo os únicos negros em um bairro branco de classe média alta. 

Cena de blask-ish. Estão desenhados uma garota negra em uma poltrona, uma mulher negra de vestido amarelo, uma menina negra de saia e blusa rosa e um garoto negro de calça jeans e blusa branca em um sofá e na outra poltrona um senhor negro. Atrás estão mais um homem e dois garotos negros. O ambiente é uma sala de paredes cinzas com uma estante branca no canto esquerdo.
Com o episódio animado sobre as eleições, a série foi indicada ao Emmy na categoria Melhor Performance de Voz, com Stacey Abrams (Foto: ABC)

Criada pelo escritor e produtor Kenya Barris, a obra conta com sete temporadas e dois spin-offs. Acumulando uma lista gigante de indicações ao Emmy e com atores incríveis no elenco, black-ish é atual e completamente viciante em seus mais de 100 episódios, que acompanham personagens em busca de entender e valorizar sua identidade. 

O piloto direciona bem o caminho a ser seguido: três gerações correndo atrás do tão famoso sonho americano. Mas, quando se é preto, esses desejos são diferentes e muito mais difíceis de serem atingidos. Nenhum obstáculo, porém, é grande o suficiente para derrubar o casal principal, cuja maior meta sempre foi dar para os filhos uma vida mais fácil do que a que tiveram. Mesmo situados em uma  confortável estabilidade financeira, a sitcom não esconde o passado complicado de Andre e Rainbow Johnson.  

Cena de black-ish. Nela está uma mulher negra com o cabelo preso em dois coques. Ela veste uma blusa branca com estampas e uma calça azul. A mulher está na esquerda olhando e apontando para um homem a sua frente, na direita da imagem. Ele é negro e veste uma blusa vermelha também estampada. Ambos estão em uma cozinha com moveis de madeira escura.
Te amo, Drebow, te amo muito (Foto: ABC)

Dre (Anthony Anderson), o pai da família e narrador da série, é um publicitário que luta para ser visto como mais do que a cota negra no próprio serviço. A empresa em que trabalha é um dos ambientes principais da série, onde sua equipe escuta suas reclamações sobre raça – e muito drama familiar. É com lentidão que seus colegas vão criando mais respeito pelo protagonista. 

Desenvolver personagens brancos em uma série negra é de extrema importância, e black-ish entende o porquê. Sendo o racismo uma criação da população branca, de que outra forma ele pode acabar se não pelas mãos dos que o construíram? A figura de Peter MacKenzie é, além de hilária, uma das maiores evoluções da história. A consciência que o chefe toma sobre sua cumplicidade no sistema é necessária e bem desenvolvida.  

Cena de black-ish. Nela está um homem branco de blusa vinho sentado na ponta de uma mesa. A sua direita estão dois homens negros olhando para ele, com as mãos apoiadas na mesa em sua frente. Do outro lado, na esquerda, um outro homem branco, de blusa amarela e calça cinza, está também olhando para o homem central. No fundo há uma Tv e um balcão encostados em uma parede branca.
Essa equipe passa mais tempo fofocando do que trabalhando, e eu os amo por isso (Foto: ABC)

Além de abalar a vida dos seus parceiros de trabalho, Dre faz muito barulho em casa. No meio do caminho entre ser sensível e agressivo, o homem tenta – e na maior parte do tempo consegue – ser um bom pai. O personagem de Anthony Anderson ensina seus filhos os contratempos que vão viver e sobreviver sendo pretos nos Estados Unidos. 

A atuação de Anderson é digna de Emmy. O comediante levou indicação não apenas por uma, mas por todas as sete temporadas de black-ish. Concorrendo na categoria de Melhor Ator em Comédia, é uma pena que a Academia ainda não tenha reconhecido seu talento o suficiente para deixá-lo levar para casa o tão merecido prêmio. E 2021 ainda não deve ser seu ano da sorte, tendo um concorrente tão forte quanto Jason Sudeikis, o famoso Ted Lasso

Cena de black-ish. Nela está dois homens sentados em um sofá branco com almofadas verdes. O da esquerda é branco, de cabelo cinza, e veste uma calça jeans junto a uma blusa branca com uma camisa xadrez verde por cima. Ao seu lado, na direita, o homem é negro e usa blusa listrada rosa e vermelho. Em sua frente está uma mesa de madeira escura com bebidas, comidas e livros, onde o homem da direita apoia a mão.
No Emmy 2021, Anthony concorre pela sua atuação no episódio What About Gary?, onde ensina seu primo branco a não ser racista (Foto: ABC)

Já a mamãe da família é vivida por Tracee Ellis Ross. Carismática e agitada até demais, Rainbow traz tanta cor para a série que seu nome faz sentido. Dividida entre cuidar das crianças e da casa, ela ainda é médica. Ser mulher e negra em um emprego tão estimado é raro, e a sitcom não cansa de reforçar isso.

Também acumulando uma lista gigante de indicações no Emmy, a premiação ainda não entregou nenhuma estatueta a filha de Diana Ross. Para os que acham que não a conhecem, esta é a lendária cantora da música escutada por Chandler no seu meme imortal segurando um vinil enquanto sofre por Janice.

Em 2021, Tracee concorre novamente como Melhor Atriz em Comédia junto a Jean Smart, Kaley Cuoco, Aidy Bryant e Allison Janney. Mesmo que não ganhe, a atriz poderá pelo menos se divertir na premiação, como em 2002 quando confessou ter usado uma bolsa birkin falsa. A energia de Tracee é quase tão caótica quanto a personagem que ela dá vida em black-ish

Cena de black-ish. Nela está uma mulher negra de blusa branca e preta listrada e cabelo preso lendo uma revista de capa rosa, sentada em um sofá cinza. A sua esquerda, também no sofá está uma garota negra com um pano azul na cabeça e blusa branca com manchas coloridas.
Neste ano, Tracee submeteu o episódio Babe in Boyland, onde sua filha a confronta pelo tratamento diferente que recebe por ser menina (Foto: ABC)

A lista de discussões trazidas pela mãe é inumerável. Além do racismo, Bow debate sobre colorismo e machismo na narrativa. Uma das melhores e mais marcantes cenas é na sexta temporada, quando no episódio Feminisn’t ela descobre que a luta das mulheres não a inclui completamente. “Você está me pedindo para escolher entre ser mulher ou ser negra. Eu não tenho esse privilégio”, desabafa para a personagem branca e feminista que quer excluir questões raciais de seus protestos.

Este é apenas um dos diversos episódios que abordam temas relevantes no seriado. A homofobia que Raven-Symoné, irmã de Dre, sofre por ser lésbica, a virada repentina de Jackson (Miles Brown) para se tornar vegano, os traumas de Dre por conta da relação conturbada de seus pais e tantos outros assuntos são base para o roteiro rico do programa. 

A amplitude de problemáticas que a família Johnson discute durante as temporadas é um perfeito exemplo para os telespectadores terem uma visão mais rica do que sofre uma família afro-descendente. Racismo não é a única dificuldade enfrentada, pois cada personagem carrega sua própria bagagem e individualidade. 

Cena de black-ish. Nela está uma mulher negra de cabelo trançado preso em um coque e blusa vermelha estampada e calça jeans. Ela está de pé olhando para o homem a sua frente. Sendo possível ver apenas parte da sua trás, o homem é negro e veste uma blusa azul estampada.
A irmã de Dre é vivida pela famosa Raven-Symoné, protagonista de As Visões da Raven (Foto: ABC)

Os irmãos são a maior prova de que a sitcom não falhou em dar uma identidade forte para cada personagem. Zoey, a mais velha, é metida, debochada e ainda assim querida com todos os caçulas. Sendo a primeira a ir para a faculdade, a jovem vivida por Yara Shahidi ganhou um spin-off, grown-ish

Junior (Marcus Scribner), o filho do meio, só não é o alívio cômico porque a série já é de comédia. Ao longo das tempos, o vemos passar de uma criança para um adulto, conseguindo manter sua sensibilidade – palavra que usarei para não chamar o garoto de chorão. A relação do menino com a mãe é uma das mais hilárias, e Rainbow nem tenta esconder que ele é seu preferido. Não era de se esperar outra coisa, já que nenhum outro filho parece ter tanta paciência – e gosto – para jogar sudoku com ela.

Assistir esse personagem crescer não é apenas divertido, mas também muito fácil de se identificar. Diferente da irmã-prodígio, Junior leva os pais à loucura quando, depois de apenas dois dias na faculdade, decide desistir. Ou melhor, tirar um ano sabático. “Essa merda de gente branca” – palavras de Pops (Laurence Fishburne), não minhas -, acabam sendo o passo que o jovem precisava para construir seu futuro.

Cena de black-ish. Nela está um garoto e uma mulher sentados em um sofá branco. Na esquerda o jovem é negro e usa camisa listrada com uma gravata escura e calça social escura. Na direita, a mulher é negra e veste uniforme hospitalar azul.
Apenas a melhor relação de mãe e filho da série (Foto: ABC)

Os gêmeos são dois lados da mesma moeda. Diane manda, Jack obedece, Diane é popular, Jack mal tem amigos… Os opostos se atraem e formam a dupla mais icônica de black-ish. Marsai Martin e Miles Brown dão conta dos papéis desde pequenos, quando entraram para o elenco. Ambos provam seu talento em todos os episódios, mas uma cena da jovem se destaca. 

Em Black Like Us, o delicado e muito evitado tema do colorismo é trazido à tona. A briga que envolve todos os parentes é interrompida quando a caçula confronta a família sobre ter a pele mais escura. “Está em todo lugar que eu olho, qualquer pessoa que eu converso”, desabafa a menina sobre a consciência que tem sobre ser retinta. Com apenas 14 anos, Marsai entregou uma das falas mais marcantes de todo o roteiro.

Já Miles nasceu para fazer os outros rirem. Quando seu personagem se apresenta na escola cantando um rap cheio de uma palavra proibida, é hilário a forma que o garoto dança inocentemente enquanto os outros alunos, pais e professores entram em desespero. É óbvio que muitos ainda se sentem desconfortáveis com uma criança sem medo da n-word

Cena de black-ish. Nela estão quatro jovens negros, duas garotas e dois meninos, olhando para frente com expressões assustadas. Todos sentam em um sofá bege, exceto pela menina na esquerda que está em um banco separado. No fundo há uma estante branca e na frente uma mesa de madeira escura com materiais espalhados sobre.
Mesmo com 24 indicações, black-ish apenas ganhou o Emmy uma vez, na categoria de Melhor Penteado Contemporâneo pelo episódio Black Hair Day, no ano passado (Foto: ABC)

Outra dupla que dá o que falar é Ruby (Jenifer Lewis) e Pops, os pais de Dre nada fáceis de lidar. O típico ódio de sogra e esposa transforma a relação de Ruby com Bow em uma eterna briga, mas é difícil não rir com as provocações entre as mulheres mais importantes na vida do protagonista. Em cenas mais emocionantes, porém, fica escancarado que, por baixo de cada ofensa, há uma das mais bonitas amizades do seriado. Pops, o vovô mal humorado, também tem vários problemas com Ruby. O casal, que se separou quando Dre era ainda criança, se une novamente nesta sétima temporada. 

Um verdadeiro enemies to lovers, o relacionamento dos dois é bagunçado e muito fofo. E é na celebração desse amor que nasce um dos episódios mais bonitos do novo ano. Our Wedding Dre concorre ao Emmy nas categorias de Melhor Figurino Contemporâneo e Melhor Penteado Contemporâneo. Stacey Morris e Nena Ross foram as cabeças por trás dos looks do casamento, e em entrevista contaram que quiseram ousar: “Queríamos fazer algo mais criativo, mais elegante, um pouco mais estiloso para combinar com o episódio. Essa foi nossa meta”.

O vestido todo estampado de Jenifer Lewis foi não apenas surpreendente, mas superior a qualquer tecido branco que ela pudesse usar. E Junior, em seu terno todo vermelho, quase roubou toda a atenção da noiva para si. O garoto já é lindo, mas com uma roupa que destaca sua beleza ele ficou um absurdo. 

Cena de black-ish. Nela está um homem negro na esquerda vestindo fantasia de papai noel. Ele olha para sua direita, encarando o homem ao seu lado. Também negro, este veste uma blusa preta com detalhes em vermelho. No fundo está uma estante branca e um quadro preto e branco.
Vencedor de 3 Emmys, Laurence Fishburne, o Pops, tem uma filmografia cheia de papéis grandes, como sua participação nos filmes Matrix (Foto: ABC)

Além do emocionante casamento, a sétima temporada é uma das  mais engraçadas da série. Produzida e lançada em 2020, ela está mais atual do que nunca. Dessa vez, acompanhamos a família presa em casa por conta da quarentena

Dre, gente como a gente, surta. Tentando dar conta do trabalho online e cuidar das crianças que agora estudam a distância, o pobre do homem perde a cabeça. É triste e engraçado o quanto nos vemos nos personagens que agora trabalham de pijama, não aprendem nada no EAD, namoram virtualmente e passam tempo demais em chamadas de vídeo.

Quem se destaca com esse plot que a série roubou da vida real é Rainbow. A médica cuida de pacientes com coronavírus e a mensagem que black-ish passa é dolorosamente realista. A atenção que a série dá para a personagem e seu esforço é uma bela homenagem a todos os trabalhadores de saúde que arriscaram suas vidas todos os dias ao irem trabalhar na linha de frente em combate a covid-19. 

Foto das filmagens de black-ish. Nela está um garoto negro de camisa preta e branca com um terno e uma calça vermelha. Ele olha para a câmera com o rosto sério e a mão esquerda levantada em um sinal da paz. Na sua frente está uma menina negra de tranças usando um vestindo branco com estampa colorida. Ela sorri para a câmera. Ao seu lado está outra menina negra, mais velha e mais alta, usando vestido verde e um cinto preto. Seu cabelo está preso em dois coques altos. No canto direito da imagem há ainda um garoto negro de blusa branca e terno estampado azul e vinho. O fundo é um jardim a noite decorado por luzes pisca pisca e flores.
Os filhos lindíssimos no episódio indicado ao Emmy 2021, Our Wedding Dre (Foto: ABC)

Mesmo no meio de tanta tragédia, o programa segue sendo positivo e divertido. Criada por Kenya para falar sobre racismo, a sitcom sabe que é melhor rir para não chorar. Com as doses certas de momentos sérios e outros descontraídos, a obra devolve para a população negra aquele sorriso que nos é sempre roubado.

Concorrendo também ao Emmy 2021 na categoria de Melhor Série de Comédia (com créditos de produção para Anderson, Fishburne e Ross), black-ish merece cada reconhecimento recebido e muito mais. Retratar com amor um povo que foi sempre tratado com ódio é um ato de coragem, e a série não tem medo de ser corajosa. Com sua oitava temporada confirmada para ser a última, a jornada da família Johnson vem chegando ao fim. Só nos resta, então, torcer para que as lições deixadas se mantenham vivas.

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