O Persona também pode esboçar um riso frente ao pranto da vida graças a parceria com a editora Companhia das Letras (Foto: Companhia das Letras/Arte: Ana Cegatti)
Nathalia Tetzner
Sabe aquela pessoa que, quando está calma, os trovões de tempestade podem ser ouvidos ao longe? Que tem o prazer de encher os teus pulmões, mas também sufocá-los? Ela é a perfeita personificação da vida em seu estado mais bruto. Alguns a conhecem precocemente, outros, no tempo certo, e há ainda aqueles que preferem ignorar a sua face áspera e se resumem a dizer “ah, ela é brincalhona assim mesmo”. Na trama de A Vida Brinca Muito Comigo, de David Grossman, três gerações de mulheres procuram digerir as consequências do encontro fúnebre com a origem de tudo.
No ano de 2022, o longa I, Tonya celebra o seu quinto aniversário (Foto: Neon)
Nathalia Tetzner
Em 1991, Tonya Harding entrou para a história da patinação no gelo ao se tornar a primeira mulher estadunidense a cravar o salto triple axel em competição. Porém, o brilho dos troféus e o estouro dos confetes logo foram apagados e silenciados. No imaginário popular, ela não está marcada pelo momento de maior glória de sua carreira, mas pelo ato hediondo cometido contra a sua principal rival dentro do rinque, Nancy Kerrigan. Há 5 anos, o diretor Craig Gillespieenxergou em Harding uma jornada de anti-herói digna de filme e, em Margot Robbie, a atriz perfeita para eternizá-la. Assim, (re)nasceu Eu, Tonya.
Afiada como as lâminas dos seus patins, Tonya Harding sempre foi tida como o Patinho Feio do universo de movimentos graciosos. A sua força e músculos somente deixaram de ser um problema quando a congelaram no ar durante três rotações e meia, pela primeira vez derretendo os corações dos jurados e de sua nação, ambos extremamente contaminados pelo tradicionalismo. De certa forma, a responsável por interpretá-la mostrou ter o mesmo olhar cortante; Robbie nunca tentou quebrar a perna de outra atriz para além do desejo de boa sorte, mas em cena, carregou consigo um bastão invisível que fez tudo ser sobre ela.
Com tradução de Livia Deorsola, As convidadas foi a aventura do Clube do Livro em Outubro de 2022 (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes/Texto de abertura: Vitória Gomez)
“Você me disse que o medo sempre foi uma das minhas distrações favoritas. Essas loucuras minhas são das que você mais gosta, porque demonstram que ainda resta em mim algum resquício de infância. Não sou corajosa, mas em minha inconsciência jamais recuso o perigo, eu o busco para brincar com ele.”
– Silvina Ocampo
O final do ano se aproxima e o Clube do Livro não deixou a peteca cair. Se as relações humanas já permearam mais debates do que conseguimos contar em uma mão, a escolha do mês remexeu a abordagem do tema e desafiou os leitores do Persona. As convidadas, leitura selecionada para Outubro, tem as relações amorosas como ponto central da maioria de seus 44 contos de duração. O livro de Silvina Ocampo, porém, leva o absurdo a sério e o extrapola para explorar os tais relacionamentos.
Publicado no Brasil em 2022 pela Companhia das Letras, a coletânea de curtas histórias é tão surpreendente quanto é chocante. Ora sombria, ora cômica, Ocampo invade o costumeiro com o extraordinário e o inesperado. Na subjetividade de deixar seus pontos emaranhados em situações peculiares, escondidos sob o véu da interpretação de cada leitor, a escritora argentina rende material para teorias e debates através da lente do realismo mágico e da literatura fantástica, levando sua testemunha a apenas um passo de descobrir o que não pretende desvendar.
Assim como na obra, selecionada graças a parceria do Persona com a Companhia das Letras, Outubro talvez tenha sido o mês da antecipação no campo literário. Anunciada como convidada da Festa Literária Internacional de Paraty – tema garantido no próximo Estante -, a francesa Annie Ernaux recebeu o Nobel de Literatura pela “coragem e acuidade clínica com que descobre as raízes, os distanciamentos e as restrições coletivas da memória pessoal”. Uma das favoritas ao prêmio, Ernaux se tornou apenas a 17ª mulher a vencer a honraria, de 119 ganhadores desde 1901. Após a vitória, ela destacou que deve poder testemunhar “uma forma de equidade, justiça, em relação ao mundo”.
A mente por trás de Les Armoires Vides (1974), Os Anos (2008) e O Acontecimento (2000) – esse último, experienciado pelo Clube do Livro em Julho -, foi honrada pela forma com que mescla suas experiências de vida a temas de interesse coletivo, cunhado como “autosociobiografia”. Na primeira obra, por exemplo, a escritora reflete sobre classes sociais em uma inconstante França ao passo que narra seu próprio cotidiano no empreendimento da família no interior do país. A linguagem simples e direta, “cristalina”, de Ernaux também pode ser mencionada com um dos motivos do envolvimento arrebatador de seus textos.
Do âmbito global ao nacional, a antecipação se estendeu ao Prêmio Jabuti: um dos maiores reconhecimentos da Literatura e do mercado editorial brasileiro revelou seus finalistas na última semana do mês. Dentre os 10 concorrentes em cada categoria, divididas nos eixos de Literatura, Não Ficção, Produção Editorial e Inovação, a de Romance Literário se destacou. Com 8 dos 10 nomes que chegaram ao corte final sendo autoras mulheres, a lista dos 5 indicados ao troféu foi ainda mais positivo. Mas isso é tema para o próximo mês. Dentre as menções, Natalia Borges Polesso concorreu pela terceira vez (a segunda na categoria), agora com A extinção das abelhas. Andréa del Fuego, por A pediatra, e Aline Bei, por Pequena coreografia do adeus, ambas conhecidas do Persona,também integraram a lista.
Já na língua portuguesa como um todo, o Prêmio Camões 2022 laureou o ensaísta e poeta Silviano Santiago. Autor dos ensaios O entre-lugar do discurso latino-americano, O cosmopolitismo do pobre e As raízes e o labirinto da América Latina, o escritor mineiro levou seis vezes o Prêmio Jabuti e o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Agora, soma o Camões a sua estante, pelo conjunto de sua obra. Dentre os cotados do Brasil, Portugal e países africanos de língua portuguesa, Santiago é o 14º brasileiro a fazer parte da curta lista de vencedores; em 2021, quem recebeu a honraria foi Paulina Chiziane, de Moçambique.
Entre reconhecimentos e antecipações, o Clube do Livro segue atento aos próximos destaques vindos do Jabuti e aos debates fundamentais suscitados na Flip 2022, que pautarão a Literatura pelos próximos meses. Enquanto isso, é a Editoria do Persona quem indica as leituras do final do ano.
Originário da Índia, Pedro participa da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Perspectiva Internacional (Foto: Rishab Shetty Films)
Nathalia Tetzner
Obra do Cinema indiano, Pedro conta a história de um homem de casta inferior que se vê perdido ao acidentalmente matar uma vaca, símbolo sagrado da sua cultura. O ato somente ocorre porque o protagonista tenta incessavelmente encontrar o responsável pelo assassinato de seu cachorro e fiel escudeiro, em uma das tragédias envolvendo animais mais tristes desde a cadela Baleia de Graciliano Ramos. Estreia do diretor Natesh Hegde frente a longa-metragens, a obra foi exibida no festival IndieLisboa e, agora, participa da seção Perspectiva Internacional na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Em Setembro, o Clube do Livro do Persona completou sua 12ª leitura sob os cuidados da Pediatra, de Andréa del Fuego (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes/Texto de abertura: Raquel Dutra)
“Ainda é tempo de morrer amanhã, que será o ontem de depois de amanhã, se eu então continuar vivo.”
– Javier Marías
O primeiro ano do Clube do Livro está chegando: em Setembro, completamos nossa 12ª edição, preparados para encerrar um ciclo que nos fez próximos da Literatura como nunca antes havia acontecido. Iniciando as comemorações desse marco tão especial, trouxemos A Pediatra, de Andréa del Fuego, para deixar suas impressões sobre o tão saudável projeto caçula do Persona.
O que encontramos a partir daí, no entanto, foi um procedimento nada convencional. A obra da autora paulistana se concentra em Cecília, uma pediatra que é o exato oposto do estereótipo que lhe é associado. Longe da imagem maternal e paciente evocada pela sua profissão, a personagem é munida de uma frieza incorrigível, o que a faz, nem tão surpreendentemente assim, uma médica muito bem-sucedida.
Com essa narrativa peculiar, as palavras concisas de Andréa del Fuego permeiam um humor perspicaz no cenário da classe média alta de São Paulo. Pelo fluxo de consciência de Cecília e suas peripécias cirurgicamente calculadas, a autora não precisa de mais de 160 páginas para propor reflexões nada pretensiosas sobre papéis de gênero, relacionamentos familiares e desigualdades sociais.
Lançado em 2021, A Pediatra é somente a mais recente demonstração dos méritos da mestra em Filosofia laureada com o prêmio José Saramago em 2011. Na ocasião, a obra tratava-se apenas de seu primeiro romance: Os Malaquias, drama familiar que carrega a referência do Nobel de Literatura português, tido como a principal referência da autora. Enquanto a nova edição do livro integra novamente o título ao catálogo da Companhia das Letras, o último romance de Andréa del Fuego faz seu nome integrar novamente a lista do Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Oceanos.
Mas nem só de comemorações são feitos os inícios e fins de ciclos. No 9º mês do ano, também houve a despedida de Javier Marías, escritor, tradutor e editor espanhol considerado um dos contemporâneos mais importantes da língua. Com apenas 20 anos, iniciou seus trabalhos literários com Os domínios do lobo (1971), se consolidando na Literatura da Espanha com os romances O homem sentimental (1986) e Todas as almas (1989). O cenário internacional veio em 1992, quando Coração tão branco rompeu todas as barreiras ao vender 1 milhão de exemplares e ser traduzido para mais de 40 idiomas.
Além de se destacar entre os romances, cujo hall de sucessos ainda engloba Os enamoramentos (2011) e a trilogia – considerada sua obra-prima – Seu rosto amanhã (2002-2007), o autor também era conhecido pelos seus contos e artigos, sempre alinhados pela sua perspectiva de formação e experiência como docente em Filosofia e Letras, primeiro pela Universidade Complutense de Madrid, depois na Universidade de Oxford. No dia 11 de Setembro, Javier Marías faleceu aos 70 anos, em decorrência de uma pneumonia. Sua extensa produção literária angariou respeito e admiração pela crítica e pelos leitores, sendo um eterno favorito ao Nobel de Literatura – mas isso é assunto para o mês que vem.
Entre as idas e vindas do meio, parte fundamental do nosso radar afiado desde Outubro de 2021, introduzimos mais um Estante do Persona. Na companhia de outros trabalhos literários louváveis que a nossa Editoria selecionou para as indicações do mês, finalizamos o primeiro ano do Clube do Livro de olho no que vai terminar de definir a Literatura em 2022.
O Estranho Caso de Jacky Caillou foi disponibilizado gratuitamente na plataforma do Sesc Digital durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, como parte da seção Competição Novos Diretores (Foto: Best Friend Forever)
Nathalia Tetzner
Jacky Caillou é o protagonista ingênuo e pouco convincente do primeiro longa-metragem do diretor Lucas Delangle, O Estranho Caso de Jacky Caillou. Ambientado nos Alpes, a obra participa da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Competição Novos Diretores e, anteriormente, foi exibido no Festival de Cannes 2022. O filme francês, parte do rol nada seleto de títulos que se iniciam com “O Estranho Caso”, baseia a sua narrativa no poder de cura popular e na explicação do fantástico pela natureza, fato que o afasta do extraordinário e somente o aproxima do comum.
Promovido pela Biblioteca do campus e pelo Cômite de Ação Cultural, o encontro trouxe cinco escritoras bauruenses para compartilhar suas experiências
O evento fez parte do Festival da Palavra, idealizado para marcar o mês em que se celebra o Dia Nacional do Livro; da esquerda para a direita estão Renata Machado, Julia Bac, Patricia Lima, Anália Souza e Ariane Souza, as convidadas da mesa (Foto e Arte: Bruno Andrade)
Nathalia Tetzner
Na primeira quarta-feira (05) do mês de Outubro, o Persona acompanhou uma roda de conversa com escritoras locais na sua sede, a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), promovida pela Biblioteca do campus de Bauru. Com caneta e bloco de papel nas mãos, o projeto traz os destaques da cobertura, que contou com as convidadas Anália Souza, Ariane Souza, Julia Bac e Renata Machado, com mediação de Patrícia Lima.
Magdala foi disponibilizado gratuitamente na plataforma do Sesc Digital durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, como parte da seção Perspectiva Internacional (Foto: Best Friend Forever)
Nathalia Tetzner
Pecadora e santa. Prostituta e apóstola dos apóstolos. São inumeráveis os adjetivos antagonistas que constroem a imagem sagrada de Maria Madalena, a principal devota de Jesus Cristo. Atordoado pelo devaneio sobre os seus últimos dias de vida, o diretor francês Damien Manivel coloca em perspectiva a personalidade mais misteriosa e discutível do Novo Testamento no filme Magdala, participante da seção Perspectiva Internacional na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e, previamente, exibido na seção L’ACID do Festival de Cannes 2022.
O reality show das Kardashians teve 20 temporadas, 3 diretores e 2 roteiristas ao decorrer da sua história (Foto: Tinseltown)
Nathalia Tetzner
Ao longo da história do mundo, impérios foram erguidos e derrubados, se alastraram pela imensidão e perderam territórios, derramaram sangue e no mesmo vermelho se afogaram. Desde os romanos, passando pelos mongóis até os britânicos, a humanidade parece naturalmente se inclinar sob a influência de uma força dominadora comum, apesar de passageira. Em 2007, o reality showKeeping Up with the Kardashians marcou a ascensão de um império liderado por mulheres que, pelo bem e pelo mal, moldaram a cultura de seu tempo e continuam à frente das áreas por enquanto não invadidas por bárbaros.
Em Agosto, o Clube do Livro do Persona se debruçou sobre Amuleto, do chileno Roberto Bolaño (Foto: Companhia das Letras/Arte: Ana Clara Abbate/Texto de Abertura: Bruno Andrade)
“A Literatura deve ser realmente o lugar onde podem surgir novas idéias que repensem o mundo.”
– Salman Rushdie
Depois das muitas reflexões que Annie Ernaux e seu O Acontecimentocausaram, o Clube do Livro reuniu-se mais uma vez em meio a um cenário caótico. Na esteira do período eleitoral e das violentas situações que têm ocorrido no país, foi o momento de inclinar-se sobre a obra política de Roberto Bolaño e o incontornável Amuleto(1999).
Retirado de um episódio de Os detetives selvagens(1998) – mas também de um caso real –, o romance curto conta a história de Auxilio, imigrante uruguaia que vive no México rodeada por artistas e poetas. Com os principais traços da Literatura de Bolaño, o livro levanta questionamentos sobre as opressões na América Latina e a memória histórica e política, tudo narrado através da acidez de sua escrita combativa.
Sob o contexto de liberdades cerceadas, também foi o mês de um fato trágico. Enquanto se preparava para palestrar em Nova York, no dia 12 de Agosto, o escritor Salman Rushdie foi atacado por um homem armado com faca. Embora o suspeito esteja preso e Rushdie apresente melhoras no estado clínico – mesmo que a chance de perder um olho ainda seja alta –, o atentado levantou questões antigas que pareciam superadas – na verdade, só nos lembrou que nada está ganho nunca.
Em 1988, após publicar o romance Os Versos Satânicos, sua obra mais influente, Salman Rushdie se viu imerso em conflitos políticos e religiosos. Por ficcionalizar a vida do profeta Maomé, o livro incomodou fundamentalistas religiosos. Em 1989, o aiatolá Ruhollah Khomeini proferiu um fatwa, pedindo sua execução, e deu inicio a série de mudanças, viagens e esconderijos que Rushdie precisou realizar.
Exilado na Inglaterra, com escolta em tempo integral, o autor indiano continuou suas publicações, marcadas pelo estilo que se aproxima do Realismo Mágico, com liberdade para fantasiar com culturas e marcos históricos, a exemplo de Os Filhos da Meia-Noite(1981), sua obra vencedora do Booker Prize. O próprio Versos Satânicos traz acontecimentos reais: o ataque que ocorreu contra um avião da Air India em 1985, os tumultos de Brixton em 1981 e 1985 e a Revolução Iraniana de 1979.
Assim, desejando rápidas melhoras para Rushdie e já de olho na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – evento que ocorre em Novembro e trará Camila Sosa Villada e Annie Ernaux, as leituras do Clube do Livro em Junho e Julho –, deixamos as já tradicionais indicações do Estante do Persona.