A Paixão segundo G.H. é um passeio por nós mesmos

A imagem é uma arte com fundo vermelho com a capa do livro A Paixão segundo G.H. ao centro e um selo escrito Clube do Livro Persona no canto direito inferior e o logo do Persona no canto esquerdo superior. A capa tem um fundo na cor creme com linhas de distorção, é possível ver no canto superior direito dunas de areia e edifícios que remetem à arquitetura árabe. Abaixo, está escrito Clarice Lispector em letra cursiva e na cor vermelha e o título do livro em caixa alta e na cor bege. No canto inferior esquerdo, abaixo do título, há o desenho de uma moça branca, com cabelos castanhos longos presos em um rabo de cavalo baixo; ela veste uma blusa azul clara de mangas compridas.
Com 165 páginas, A Paixão segundo G.H. foi a primeira leitura do Clube do Livro do Persona (Foto: Reprodução/Arte: Jho Brunhara)

Vitória Silva

Nascida em 1920, Clarice Lispector é um dos nomes intocáveis da nossa Literatura. A ucraniana, batizada como Haya Pinkhasovna Lispector, chegou ao Brasil aos dois meses de idade, com seus pais de origem judaica que fugiram do país devido à perseguição durante a Guerra Civil Russa. Inicialmente residente em Maceió, em sua infância e pré-adolescência, a autora passou por Recife e pelo Rio de Janeiro, e, por onde trilhava seu caminho, carregava consigo sua paixão pelos livros. 

Após ingressar na Faculdade Nacional de Direito, em 1941, trabalhou como redatora da Agência Nacional e, posteriormente, do jornal A Noite, dando seus primeiros passos no universo da escrita. Não demorou muito para que mergulhasse de vez nele, e publicou seu primeiro romance em 1944, com o título Perto do Coração Selvagem. A obra estreante retrata uma perspectiva sobre o período da adolescência e, logo de cara, fez com que Clarice abrisse novos horizontes na Literatura nacional. 

Quebrando todo e qualquer paradigma literário da época, Lispector abandona noções de ordem cronológica e funde um lirismo único a sua forma de representar ações e emoções humanas, traços que se tornaram mais do que característicos de toda a sua carreira. Não à toa, a produção foi agraciada pelo Prêmio Graça Aranha, e, mais tarde, a autora colecionaria outros títulos de referência, como Laços de Família (1960) e A Hora da Estrela (1977), em que este último ainda ganhou uma adaptação para as telonas, em 1985.

A imagem é uma foto em preto e branco da escritora Clarice Lispector. Nela, Clarice está sentada em um sofá com as pernas cruzadas e os braços abertos. Ao seu lado esquerdo, ela acaricia um cachorro, e no direito, segura um cigarro entre os dedos. Clarice era uma mulher branca, de cabelos curtos e lisos, ela veste um vestido com mangas compridas e usa um colar de pérolas em seu pescoço.
Clarice Lispector publicou 18 livros, entre romances, contos e crônicas (Foto: Arquivo Pessoal)

A Paixão segundo G.H. nasce em 1961. Uma das produções menos chamativas de toda a sua obra, mas que, de forma subestimada, carrega uma das viagens mais acalentadoras que Clarice conseguiu nos deixar em vida. Ambientada num apartamento no Rio de Janeiro, a história segue a narradora-protagonista, e única personagem, caracterizada pelas iniciais presentes no livro (se é que pode-se afirmar que essas letras dizem respeito a ela). Pertencente à classe alta, após demitir sua empregada, ela decide organizar o quarto da mesma.

Ao exercer o que parece ser uma tarefa simples e comum, e mais do que rotineira para qualquer um, a protagonista desencadeia uma série de reflexões, enquanto também se depara com a insignificância que a funcionária tinha para ela até o momento. Sem demais componentes atuando, a narrativa é uma imersão no seu próprio pensar, em que a solidão da atividade desempenhada leva a um diálogo com si própria. A estrutura textual evidencia o fluxo de pensamento, com capítulos que não possuem títulos ou marcações numéricas, mas se iniciam com a mesma sentença que encerrou o anterior, ilustrando sublimemente a constância da reflexão humana. 

A imagem é uma cena do filme A paixão segundo G.H.. Nela, é possível ver o reflexo da atriz Maria Fernanda Cândido em um espelho em formato redondo. Ela está virada de perfil e com as palmas das mãos levantadas próximas ao seu queixo. Maria é uma mulher branca, com cabelos castanhos presos em um coque alto bagunçado. Ela veste uma blusa branca de mangas compridas e usa brinco em sua orelha.
Em 2020, a obra foi adaptada para o Cinema, com direção de Luiz Fernando Carvalho e protagonizada por Maria Fernanda Cândido (Foto: Paris Filmes)

Apesar de não trazer nenhum personagem dialogável, se precisássemos eleger uma espécie de antagonista em A Paixão segundo G.H., com certeza, seria a barata. Ao arrumar o armário do quarto, a protagonista se depara com o inseto, e, no comum ato de esmagá-la, aprofunda-se ainda mais em uma viagem que transcende o tempo e o espaço de sua memória.

“Meu ciclo era completo: o que eu vivia no presente já se condicionava para que eu pudesse posteriormente me entender. Um olho vigiava a minha vida. A esse olho ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim. Eu vivia mais dentro de um espelho. Dois minutos depois de nascer eu já havia perdido as minhas origens.”

O monólogo interior gerado pela autora ecoa questionamentos psicológicos da personagem, ao passo que dialoga com obras da também genial Virginia Woolf e nos faz pensar se Lispector não seria capaz de ter escrito Fleabag nos dias atuais. Sempre se apoiando muito em metáforas, a ucraniana ainda domina as palavras com a maior leveza e facilidade possíveis, conduzindo-as de maneira a traduzir sentimentos dos mais banais, mas que acendem uma luz na mente de quem lê: “Detalhadamente não sendo, eu me provava que — que eu era”; “Solidão é ter apenas o destino humano. E solidão é não precisar”.

A imagem é uma foto da escritora Clarice Lispector. Nela, Clarice está sentada de lado em frente a uma estante de livros. Clarice era uma mulher branca, de cabelos castanhos claros, curtos e lisos. Ela veste um vestido vermelho de mangas compridas com detalhes pretos espalhados, e usa braceletes nos dois pulsos.
“Amor é quando não se dá nome à identidade das coisas?” (Foto: Editora Rocco/Divulgação)

Perdida em seus próprios pensamentos, volta e meia a protagonista retorna para a realidade e seu conflito em relação à barata. O clímax de A Paixão segundo G.H. se dá de forma um tanto inesperada, quando, ao inseto expelir um líquido branco, a narradora decide engoli-lo, entrando em total estado de epifania. Ingerir um dos bichos mais asquerosos presentes na superfície terrestre causa uma autorevelação, em um ato perfeitamente simbólico. A mesma figura da barata também é subentendidamente retratada em A Metamorfose (1915), de Franz Kafka, que aborda sobre a perda da dignidade humana e caminha de mãos dadas com o presente romance, tendo até seu título ressoado nas entrelinhas. “É uma metamorfose em que eu perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu — só tenho o que eu sou”.

Sem um desfecho necessário para uma obra que percorre o mais íntimo do ser humano sem nem precisar sair das paredes de um apartamento, a protagonista não alcança uma devida conclusão. A Paixão segundo G.H. tem como ponto de chegada o mesmo de sua partida, com questionamentos sem resposta para essa personagem sem rosto e sem nome, na forma mais poética que alguém poderia pensar para retratar a essência daqueles de alma já formada. Ainda bem que tivemos uma Clarice Lispector para fazer isso. 

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