Para Sally Rooney, o mundo é repleto de Pessoas normais

Arte com fundo roxo. No canto superior esquerdo, vemos o olho do Persona com a íris da mesma cor do fundo. Ao centro, vemos a capa do livro Pessoas normais, e uma borda laranja do lado direito da capa, formando uma sombra. No canto inferior direito vemos escrito Clube do Livro Persona
O Clube do Livro do Persona começou 2022 acompanhado por Pessoas normais, romance escrito por Sally Rooney e traduzido por Débora Landsberg (Foto: Companhia das Letras/Arte: Ana Júlia Trevisan)

Vitor Evangelista

Na escola, no interior da Irlanda, Connell e Marianne fingem não se conhecer. Orbitando em mundos diferentes, os estudantes do Ensino Médio acabam se esbarrando quando ele busca a mãe, que trabalha como faxineira na casa da garota. As rápidas trocas de olhares acabam se transformando em pequenas conversas sobre os livros e os gostos pessoais um do outro. O problema é que, em público, Connell invisibiliza Marianne, por vergonha, por culpa, por egoísmo. Mas está tudo bem, afinal, eles não passam de pessoas normais.

A autora Sally Rooney nunca coloca em palavras a relativização dos comportamentos de seus protagonistas imaturos, mas a sucessão de ações e reações que compõem as mais de duzentas páginas do livro não suavizam o absurdo desses encontros e desencontros, perdidos em algum lugar na tradução de um sentimento para o seguinte. Muito além de uma crônica romântica que perpassa as ondas do tempo, o romance recusa-se a ajoelhar perante ao destino. Essa dupla opera às custas de suas próprias regras e mecanismos. 

Arte com fundo verde e um desenho ao centro azul e branco. O desenho mostra duas pessoas deitadas se abraçando dentro de uma lata de sardinhas aberta, com a tampa para cima e o lacre também.
“A maioria das pessoas viveriam suas vidas inteiras, Marianne pensou, sem nunca se sentirem tão próximas de alguém” (Foto: Companhia das Letras)

Narrativamente falando, a escrita mantém essa máxima, viajando pelos dias, semanas e meses de uma relação distante pelo calendário mas próxima pelo contato corpóreo e sentimental. Quando descreve uma simples troca entre Connell e Marianne, Rooney imprime tanta vulnerabilidade quanto precisão, afinal, que tipo de pessoa nunca se apaixonou na adolescência? Ou mesmo teve seu coração partido à beira da vida adulta?

Jogando a favor das memórias de seu público alvo, Pessoas normais prefere explorar as diferentes óticas de uma relação, pulando entre os pontos de vista de Connell e Marianne, e oferecendo a quem lê evidências o bastante para que não nasçam vilões ou mocinhas. A segurança de contar uma história “normal” pode ser o principal atrativo da obra, apenas o segundo romance escrito pela irlandesa.

“Ele gargalhou de verdade. Marianne, ele disse, não sou religioso, mas às vezes acho que Deus fez você para mim”.

Seu primeiro trabalho na Literatura nasceu alguns anos antes de Normal People, na forma de Conversas entre amigos. Naquela história, conhecemos Frances e Bobbi, duas amigas que já tiveram um relacionamento no passado, mas, agora, na flor da juventude universitária, conhecem um casal mais velho e acabam atraídas, de maneiras diferentes, por cada um de seus componentes.

Escrito em primeira pessoa, o livro aponta uma certa jovialidade e quentura das emoções da escritora, que se apoia na negação do prazer até, no momento derradeiro, abraçar a inevitabilidade do perigo. Em contraponto, Pessoas normais parece insistir ao máximo e, então, selar a porta do “talvez”. O que não é surpresa para os que acompanham a carreira de Sally Rooney, autora declaradamente marxista, que brilhou como presidente do clube de debates da faculdade Trinity e tem inspirações fortes na Literatura de James Joyce e J.D. Salinger.

Depois de Pessoas normais, Sally Rooney escreveu Belo mundo, onde você está, destaque do ano de 2021, inserido em um contexto um tanto mais amadurecido que o comum para a irlandesa, narrando a casualidade da vida de duas amigas. Entre encontros românticos falidos, beijos em sapos e trocas de longos e-mails, o leitor é fisgado, mais uma vez, pelo ordinário dos acontecimentos. Nada acontece, mas tudo acontece.

Foto da autora Sally Rooney, uma mulher adulta, branca e de cabelos castanhos na altura do queixo, segurando seu livro Pessoas normais. A edição é em inglês, conta com o título Normal People, e tem a capa verde com detalhes em branco e azul.
“Não sei o que há de errado comigo, diz Marianne. Não sei por que não consigo ser que nem as pessoas normais” (Foto: Sally Rooney)

Falhos e suscetíveis a erros, os protagonistas de Rooney desempenham papéis de culpa e redenção com primazia. De volta à normalidade das pessoas, quando o assunto é Connell, a autora dedica boa parte de sua escrita, fina e transparente, à estudar os sentimentos do atleta. Alguém autossuficiente até a vida adulta, quando percebeu o baque que as responsabilidades, a falta de dinheiro e a ausência do afeto de Marianne, poderiam causar a sua mente e alma, blindadas, se afogou.

O respirador que traz Connell de volta ao mundo dos vivos é nada menos do que a rede de proteção que antes o havia colocado no topo do Céu. Marianne, além de ser a figura mais importante de Pessoas normais, é também um farol de expectativas para todos ao seu redor. Para a mãe ausente, Marianne representa uma falha em expansão. Para o irmão abusivo, ela é um saco de pancadas e um obstáculo a ser ultrapassado. Para os namorados estúpidos, ela não passa de um recipiente de emoções, de desejos, de êxtase. Mas, para Connell, Sally Rooney nunca nos revela seu significado. 

“Como era estranho se sentir tão completamente sob o controle de outra pessoa mas, ao mesmo tempo, como era normal”.

Existem suspeitas, é claro, mas o cordão invisível que os liga existe e apenas existe. Sem explicações, sem concessões, eles têm os corações fincados um no outro, o sangue se mistura, as lágrimas são as mesmas, o suor também. Seus olhos se encontram sem dificuldades, suas respirações se equiparam sem adversidades. Seus corpos se encaixam como se Deus os tivesse moldado dessa maneira. 

Eles são pessoas normais pois amam, erram, falham, gritam, se arrependem. São indivíduos que chegaram ao mundo sem manual de instruções ou bússola mágica. É no tranco e na hora do vamos ver que aprendem o andar da carruagem e a altura que a água bate na bunda. Connell e Marianne se apaixonam pois essa era a única maneira de existirem em harmonia. Rooney, astuta como é, compreende que não existe algo mais relacionável.

Montagem do livro Normal People do lado esquerdo e da série de TV do lado direito. No limite entre as duas imagens, vemos uma figura que simboliza papel rasgado.
“Marianne já não é mais vista com admiração ou desdém. As pessoas se esqueceram dela. Agora é uma pessoa normal” (Foto: Hulu)

Sincero, o romance claramente expõe sem mazelas o efeito dos ruídos e dos cortes enferrujados que Marianne e Connell empunham em batalhas frias, que dilaceram mais do que a carne. Quem lê, sente por eles. Quem lê, vive o que eles vivem na mesma comoção e entrega. Os olhos da autora irlandesa focam no bastante para que a experiência seja revitalizante, amedrontadora e, no fim das contas, irresistível. Ao concluir sua crônica, percorrendo a linha fina entre o tempo e o destino, Sally Rooney torna tentador o ato de ser vulnerável. 

“Ela fecha os olhos. É provável que ele não volte, ela pondera. Ou volte, mas diferente. O que têm agora eles nunca mais poderão ter. Mas para ela a dor da solidão não vai ser nada se comparada à dor que costumava sentir, de não valer nada. Ele lhe trouxe a bondade como uma dádiva, e agora isso é parte dela. Enquanto isso, a vida se abre à frente dele em outras direções ao mesmo tempo. Fizeram muito bem um ao outro. De verdade, ela pensa, de verdade. As pessoas podem mudar as outras de verdade”.

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