I May Destroy You vai além dos múltiplos olhares sobre violência sexual

Michaela Coel cria narrativa necessária baseada em sua vivência (Foto: Reprodução)

Giovanne Ramos

Em 2018, a atriz, roteirista, poeta, cantora, compositora e – ufa! – dramaturga britânica, Michaela Coel, revelou enquanto palestrava no Festival de Televisão de Edimburgo ter sido estuprada em 2015. O relato chamou ainda mais atenção por ter ocorrido durante as filmagens de Chewing Gum, comédia lançada em 2016 no Brasil pela Netflix e, em parte, responsável pela popularização do seu nome no mundo do entretenimento. De acordo com os relatos, Coel tirou um intervalo do trabalho para se encontrar com uma amiga que estava por perto para um drinque. Quando se deu conta, estava novamente em frente ao computador, sem lembrar do que ocorreu na última noite. Após um flashback, a atriz lembrou de ter sido violentada por um grupo de homens.

O episódio foi pontapé para I May Destroy You (“Eu Posso Te Destruir”), a categorizada comédia-drama lançada em 2020 pela BBC UK, onde Michaela Coel volta como criadora, roteirista, co-diretora e produtora executiva, mas também protagonizando a escritora excêntrica Arabella. A personagem carrega em si muito de sua intérprete, sendo notável alguns momentos em que podemos assimilar com Michaela e até mesmo com a caricata Tracey, personagem que interpretou em Chewing Gum. No trailer e ao decorrer do primeiro episódio, somos introduzidos a uma escritora com bloqueio criativo que sai para a noite se distrair com os amigos, mas que ao amanhecer, não possui nenhuma lembrança da noite passada, apenas flashbacks e uma ferida na testa. O que de imediato nos leva associar ao relato de Coel.

Arabella, que já é conhecida por escrever um livro retratando a relação dos millennials com as redes sociais, é pressionada constantemente pelos seus agentes a lançar o sucessor do seu best-seller. Quem acompanha a personagem durante o desenrolar da trama são seus amigos íntimos Kwame (Paapa Essiedu) e Terry (Weruche Opia). Kwame, instrutor aeróbico, dá tom aos jovens homossexuais apegados em aplicativos de relacionamento, enquanto Terry, aspirante a atriz, tenta segurar o astral do trio apesar de possuir as suas próprias inseguranças. O grupo dá vazão a uma imensidão de temas complexos que são discutidos com sensibilidade e suavidade, sem tornar a série massante ou dolorosa para quem está assistindo – como The Handmaid’s Tale, que já sofreu críticas pela espetacularização excessiva da violência -, e com uma sensação de que poderia ocorrer com qualquer um.

Mas se engana quem pensa que o drama é centrado apenas no estupro que Arabella sofre. A série se torna ambiciosa ao retratar as mais diversas e múltiplas formas do abuso sexual. Fora o episódio da trama principal, Bella sofre mais uma ocorrência e Kwame protagoniza dois grandes momentos em que faz o espectador se questionar que, o que ocorreu, foi de fato violência sexual e, caso tenha sido, quem foi o culpado? Dúvidas que são recorrentes quando as vítimas tornam suas experiências públicas e vão atrás de justiça. I May Destroy You não deixa de fora nenhum processo da cicatrização desse trauma. Retrata com respiros cômicos necessários, o desafio da denúncia, o escape da realidade, o longo caminho de superação e as marcas deixadas em todos aqueles em volta da vítima.

Nenhum ponto é dado sem nó no universo construído por Michaela em apenas 30 minutos por episódio. Embora seja a história de Arabella em jogo, temas como exposição nas redes sociais, a afetividade em tempos líquidos, bullying escolar e a lógica mercadológica de movimentos sociais quebram a parede da ficção e em um determinado momento já não se sabe o que são sátiras hiperrealistas e o que é o espelho fidedigno da realidade que estamos inseridos. Porém, esses momentos são relâmpagos e secundários, tendo em vista o tanto a desenvolver e o pouco tempo de exibição. Inclusive uma boa decisão, já que Coel correria o risco de desviar muito do seu ponto central.

Terry (Weruche Opia), Arabella (Michaela Coel) e Kwame (Paapa Essiedu) se destacam à sua maneira e em seus próprios plots (Foto: Reprodução)

A série, ainda, vem em um momento político importante. Em 25 de maio deste ano, George Floyd, um afro-americano, foi brutalmente assassinado por um policial em Minnesota. O caso reacendeu o movimento #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam), e a discussão do antirracismo. Uma série em que todos os núcleos são compostos em sua maioria por personagens afro-britânicos, é, de fato, um ato político. Ainda mais quando visualizados dentro de temas como carreira, sexualidade, gênero, veganismo, drogas, amizade e relacionamento. Além de preencher com riqueza a narrativa, mostra que personagens negros não são resumidos apenas a questões raciais, inclusive, esse é um fator de menos destaque na trama.

A criação de Coel é, sem dúvidas, uma candidata para aparecer na próxima temporada de premiações. Seu reconhecimento é necessário em um ambiente em que a representatividade em grandes produções é cobrada. Talvez ainda faça justiça à estadunidense Pose, série da FX que chamou atenção pela diversidade em seu elenco e o protagonismo dado para mulheres trans. Ao não aparecer entre as listas de indicadas, as atrizes MJ Rodriguez, Angelica Ross e Dominique Jackson – que deram um show de atuação -, escancararam uma indústria relutante em derrubar seus preconceitos e olhar para além de produções normativas e embranquecidas.

Mesmo que não tenha dado brecha para uma possível segunda temporada, I May Destroy You cumpriu o seu papel em todos os pontos em que se propôs a tocar. A combinação da qualidade fotográfica da produção – que em alguns momentos se assemelha com o ludismo da série adolescente Euphoria, da HBO -, com a excelente trilha sonora, proporcionam uma boa experiência imersiva. O roteiro não fica atrás. Com equilíbrio entre o cômico e o trágico, todas as pontas da série se fecham, trazendo consigo uma ampliação de perspectivas da realidade.

Obra de Coel destaca a importância da visão da vítima (Foto: Reprodução)

Michaela ter compartilhado as suas experiências e ter se colocado no drama, trouxe uma profundidade que talvez ainda demore para vermos ser unânime entre diretores e roteiristas da cena convencional. Ainda mais quando o assunto é violência sexual, que é tratada com muita romantização na indústria cultural. Mas o brilhantismo da série é justamente esse, a visão de quem entende a dor. E isso é notório em todos os momentos em que a intérprete de Arabella não deixa os acontecimentos de I May Destroy You destruir, com banalizações, quem está assistindo.

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