Tio Frank: o passado ecoa no presente

Cena do filme Tio Frank. Na imagem, vemos três dos personagens do filme dentro de um carro conversível em uma estrada na zona rural. Da esquerda para a direita, vemos Betty, uma mulher branca, de cabelos ruivos curtos, aparentando ter cerca de 15 anos, vestindo uma blusa roxa e óculos escuros e tomando sorvete no banco do passageiro; Frank, um homem branco, com cabelos curtos loiros e bigode, aparentando ter cerca de 40 anos, vestindo uma camisa azul e óculos escuros, no banco de trás; e Wally, um homem muçulmano, de cabelos curtos pretos e barba preta, aparentando ter cerca de 40 anos, vestindo uma camisa marrom e óculos escuros, tomando sorvete enquanto dirige.
Uncle Frank, longa independente adquirido pela Amazon Studios, foi lançado Prime Video e concorre ao Emmy 2021 como Melhor Telefilme (Foto: Amazon Studios)

Vitória Lopes Gomez

Se o Cinema é um modo divino de contar a vida e esta não se preocupa com a originalidade, toda história é inédita. É assim que, em uma Hollywood cheia de premissas batidas, o roteirista ganhador do Oscar Alan Ball se inspirou na vida real e transformou uma sinopse repetida em uma sensível e comovente road movie sobre repressão familiar, pertencimento e aceitação da sexualidade. Em Tio Frank, o passado não fica para trás, mas ecoa no presente.

No longa, Betty (Sophia Lillis) se sente deslocada na cidadezinha interiorana e conservadora em que vive, na Carolina do Sul, e se muda para Nova Iorque para fazer faculdade. Longe de casa, ela reencontra o tio Frank (Paul Bettany), reconhecido e admirado professor na universidade, e logo descobre que ele vive uma vida diferente da que é conhecida pela família: o tio preferido da menina é gay e casado há anos. Quando uma tragédia familiar os força a voltar para sua cidade natal, a viagem faz com que os dois conheçam mais um sobre o outro e sobre si mesmos. 

Cena do filme Tio Frank. Na imagem, em uma sala de estar, vemos, à esquerda, o personagem Mike, um homem branco, de cabelos e bigode castanho, aparentando ter cerca de 40 anos, sentado em uma poltrona amarela. Ele se inclina para a direita em direção ao personagem Daddy Mac, um homem branco, de cabelos castanhos curtos, aparentando ter cerca de 70 anos, sentado em uma poltrona marrom e olhando um porta-retrato. Entre eles, ao centro, há uma mesa de centro com um abajur, livros, um porta-retrato e duas garrafas de cerveja.
Daddy Mac é mais um na lista de pais terríveis e homofóbicos que já não são novidade no cinema e na TV (Foto: Amazon Studios)

É através dos olhos e das palavras de Betty que conhecemos e acompanhamos o personagem do título: Frank Bledsoe é professor de literatura, inteligente, divertido e atencioso, como ela mesma o descreve. Ele logo contrasta com o restante da família e a menina não entende o porquê do tio ser o alvo das piadas do irmão e dos maus tratos do pai, o cruel Daddy Mac (Stephen Root). Betty, que também se sente diferente e incompreendida, se identifica com o parente e o admira, mesmo que ele se mantenha distante e resguardado no ambiente familiar. 

Anos depois, a narradora escapa da sua cidade natal em direção a Nova Iorque, assim como Frank fez. A sobrinha o tem como exemplo, mas as expectativas são idealizadas quando sabe tão pouco sobre ele. Quando ela conhece o tio longe do restante da família, vivendo plenamente e feliz ao lado do marido Wally (Peter Macdissi) e sem ter que esconder a sexualidade, o progressismo se contrapõe ao conservadorismo da criação.

Frank receia a reação da menina com a descoberta, já que ela cresceu no mesmo ambiente preconceituoso que ele. Recém-chegada na Nova Iorque dos anos 70, a Betty de Lillis é inocente e divertida ao se deparar com as diferenças na cidade grande e não falha em acolher o tio. Apesar das dores do passado, a leveza e a ternura da relação dos dois, somadas aos alívios cômicos que vêm a calhar, criam o tom ideal para uma condução leve e agradável na mão de Ball, que também assume a direção. Isso até que a notícia da morte de Daddy Mac obriga a dupla a viajar de volta para casa.

Tio Frank é perspicaz ao engatar em uma roadtrip: de Nova Iorque à Carolina do Norte, uma longa viagem de carro é o jeito ideal para Frank e Betty se aproximarem ainda mais. Além do ritmo do filme, o cenário também muda e, saindo da cidade grande rumo ao interior, quanto mais a paisagem se torna rural, mais Frank tem que se esconder e se reprimir. 

Os flashbacks relembram o início da intolerância e dos maus tratos do parente, que nunca aceitou o fato de Frank ser gay. A repressão e o preconceito velados o afastaram, mas, apesar de ter escapado e construído uma vida para si mesmo, longe da opressão e dos disfarces, ser forçado a se esconder e não se sentir acolhido e pertencente à própria família não são traumas esquecidos ou superados facilmente. 

Entre os problemas com o álcool e a dificuldade de se deixar ser amado pelo parceiro, que acompanha a viagem do tio e sobrinha escondido, mostram como o passado ainda ecoa e afeta o presente de Frank. E confrontar a figura do terrível pai, que mesmo depois de morto ainda faz questão de ofendê-lo, desencadeia o pior nele.

Cena do filme Tio Frank. Na centro da imagem, em um ambiente ao ar livre, vemos os personagens Frank, um homem branco, de cabelos e bigode loiro, aparentando ter cerca de 40 anos, e Wally, um homem muçulmano, de cabelos e barba castranhos, aparentando cerca de 40 anos, abraçados chorando.
Peter Macdissi, que interpreta Wally, é produtor de Uncle Frank, além de ser casado com Alan Ball (Foto: Amazon Studios)

Ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original por Beleza Americana, Alan Ball é afiado nos poderosos diálogos e na direção simplista, que vai da atmosfera leve à densa ao passo que o protagonista de Bettany retorna à sua origem. Somado à fotografia com iluminação e tons naturais, o trabalho do diretor e roteirista permite que seus personagens existam naquele ambiente dos anos 70 no sul estadunidense. Felizmente, até quando a narrativa segue por um lugar comum e previsível, o foco continua neles.

Se Uncle Frank, o título original do longa, é sobre o tio Frank, Paul Bettany brilha. À medida que o longa avança e o protagonista se aproxima de casa, o ator descasca as camadas de seu personagem e o ressentimento passa a consumi-lo. Mesmo que o intérprete do Visão não seja o ideal para encarnar as vivências de Frank – não tinha nenhum ator gay igualmente competente em Hollywood? -, Bettany imprime a dor e a mágoa ao mesmo tempo que a doçura e o carinho, em uma performance sensível, emocionante e, nos minutos finais, verdadeiramente comovente.

Só que não só de Frank se faz Tio Frank: a narradora de Sophia Lillis é inocente e divertida, e seu carinho pelo tio é a esperança em meio à família. Junto do Wally de Peter Macdissi, que é caloroso e acolhedor mesmo na dor da sua própria jornada como um homem gay muçulmano, os dois são o respiro para Frank e para o longa. Na Carolina do Norte, a mãe (Margo Martindale) e a cunhada (Judy Greer) do protagonista, ao final, transparecem suas boas intenções e o Daddy Mac de Stephen Root sabe se manter desprezível e nojento até depois de sair de cena.

Cena do filme Tio Frank. Na imagem, em um jardim, vemos várias pessoas sentadas em cadeiras espalhadas pelo espaço. Ao centro, sentados em volta de uma mesa com copos e bebidas, vemos, da esquerda para a direita, a cunhada de Frank, Frank, Betty, Wally e a mãe de Frank rindo.
Além de participar com Uncle Frank, Paul Bettany pode sair vitorioso no Emmy 2021 pelas indicações com WandaVision, incluindo Melhor Ator em Série Limitada (Foto: Amazon Studios)

Após a boa recepção e as críticas positivas no Festival de Sundance de 2020, onde estreou, a produção independente foi adquirida pela Amazon Studios e destinada ao streaming da empresa. Tio Frank foi oficialmente lançado para o público no Prime Video e a exibição na TV rendeu uma indicação ao Emmy 2021 na categoria Melhor Telefilme. O longa concorre com Oslo, da HBO, Natal com Dolly Parton, da Netflix, Robin Roberts Presents: Mahalia, do Lifetime e O Amor de Sylvie, também do Prime Video.

Um dos favoritos para sair com o troféu, Tio Frank se inspira na vida real para mostrar que o passado ainda pode afetar o presente. Ninguém é obrigado a perdoar aqueles que machucaram, por mais próximos que sejam, e nem buscar a aprovação de ninguém, mas, se cada história é diferente, o sentimento de pertencer e se aceitar plenamente foi essencial para Frank.

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