Mrs. America é a lembrança de que ainda vivemos no passado

Um dos grandes nomes indicados ao Emmy deste ano, a produção revive um cotidiano patriarcal muito similar aos dias atuais (Foto: Reprodução)

Vitória Silva

O quanto uma sociedade consegue evoluir em 50 anos?

Há 50 anos, o telefone celular ainda era algo em desenvolvimento. Não existia wi-fi, nem conexão bluetooth. Hoje, temos praticamente um aparelho ou aplicativo para realizar cada função do nosso dia-a-dia. O homem vai ao espaço quase como quem viaja para a Europa. Nós conseguimos até imprimir comida

Pensar no cotidiano de 50 anos atrás é pensar num passado distante e totalmente fora da nossa realidade. Uma sociedade tão retrógrada e nem um pouco próxima da modernidade que temos hoje em dia. Isso, se a humanidade fosse capaz de se desenvolver no mesmo passo que os aparelhos tecnológicos. E Mrs. America surge para comprovar essa afirmação. 

Ambientada nos anos 70, a minissérie, produzida pela FX e exibida no Hulu, conta em nove episódios a história do movimento de ratificação da Equal Rights Amendment (Emenda dos Direitos Iguais). Phyllis Schlafly (Cate Blanchett), ativista conservadora da época, é o grande foco da trama. Já familiarizada com o meio político, ela lidera um movimento contra a ratificação da Emenda (o Stop ERA), unida a uma legião de donas de casa que se sentem ameaçadas pela possível instauração de direitos iguais entre homens e mulheres.

A caracterização das personagens é impecável, com semelhanças até nos pequenos detalhes em relação às figuras da vida real (Foto: Reprodução)

Em contraposição, existe o grupo de ativistas a favor da Emenda, as feministas. Nele, se encontram nomes muito relevantes na luta da conquista dos direitos das mulheres: Gloria Steinem (Rose Byrne), Betty Friedan (Tracey Ullman), Shirley Chisholm (Uzo Aduba), Bella Abzug (Margo Martindale) e Jill Ruckelshaus (Elizabeth Banks). A série acompanha todo o processo de ratificação pelos estados norte-americanos, centralizando o contraste entre os dois núcleos.

Apesar da aparente densidade na narrativa, com diálogos que utilizam diversos termos do meio político, a ERA é apenas o plano de fundo para contar uma história que se passa diante dos nossos olhos. O contexto em que a trama se ambienta elucida diversos aspectos machistas presentes no comportamento da sociedade. O desprezo por mulheres em cargos altos, a visão estereotipada do movimento feminista, a necessidade de mulheres terem que ceder ao desejo dos homens, são apenas algumas das questões trabalhadas. Sem frases prontas ou discursos de empoderamento, Mrs. America sutilmente explora vivências que até hoje são rotineiras no meio feminino. 

Em 1971, Bella Abzug ajudou a fundar o National Women’s Political Caucus, citado várias vezes na série, para garantir que as mulheres tivessem um caminho mais seguro para se juntar a ela no Congresso (Foto: Reprodução)

A minissérie ainda apresenta a genialidade de abordar sobre os direitos das mulheres por meio de várias perspectivas. Isso através do olhar de suas personagens, que também dão nome aos episódios, cada uma representando uma questão diferente. Gloria  é a tentativa falha de se abraçar as diferentes causas dentro do movimento feminista, enquanto Betty e Bella são o radicalismo. Jill é a necessidade da mulher ter que se submeter aos homens para ser ouvida. Shirley mostra a falta de visibilidade das mulheres na política. Brenda (Ari Graynor), o conflito pessoal de ceder ou não a padrões heteronormativos. E Phyllis é a cegueira do conservadorismo, que a impede de olhar para seus próprios direitos.

Por ficcionalizar eventos reais, Mrs. America não transforma nenhum personagem em herói ou vilão, todos são retratados na sua mais pura forma. A série não peca em mostrar uma visão totalmente otimista sobre o feminismo, e o apresenta com suas diversas contradições. Entre elas, a falta de um recorte de raça e a dificuldade de abranger as diversas causas dentro do movimento, como os direitos das mulheres lésbicas, o que o torna majoritariamente representado por mulheres brancas heterossexuais.

Ironicamente, Phyllis Schlafly é uma das maiores feministas que vemos em cena, como afirma a própria personagem Bella Abzug “She is a goddamn feminist. She may be one of the most liberated women in America”. A ativista luta de forma independente pela causa que acredita, tem ambição para conquistar diferentes espaços e quer ser ouvida e respeitada da mesma forma que as figuras masculinas são. Ela apenas se recusa a reconhecer isso.

Phyllis Schlafly faleceu aos 92 anos em 2016, um de seus últimos atos foi endossar a campanha de Donald Trump para presidente (Foto: Reprodução)

Cate Blanchett conversa pelo seu olhar. Mesmo com uma visão totalmente diferente da personagem que vive, a atriz foi capaz de expor todo o desconforto e o cinismo da mesma, em meio às suas contradições. Não à toa, sua atuação rendeu uma indicação ao Emmy 2020, na categoria de Melhor Atriz em Minissérie. A produção – que é liderada por Ryan Fleck e Anna Boden, dupla responsável por Capitã Marvel – foi uma das grandes indicadas deste ano ao prêmio, com dez indicações. Entre elas, Melhor Minissérie, Roteiro, Elenco, Figurino de Época, Trilha Sonora e Melhor Edição.

O elenco conta com outros nomes de peso e que sustentam atuações fenomenais. Cada episódio da trama acompanha uma das personagens do núcleo principal, em paralelo com o desenrolar da corrida para a aprovação da Emenda. A narrativa consegue destrinchar de forma minuciosa os problemas pessoais de cada uma em meio às complicações da vida política. Tracey Ullman, Margo Martindale e Uzo Aduba, todas já veteranas do Emmy Awards, foram as outras grandes consagradas a uma indicação, na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante em Minissérie. 

No time dos grandes destaques, mas que não receberam o devido prestígio, está Sarah Paulson, que interpreta Alice Macray. No oitavo episódio, durante a Conferência de Houston, vemos a sua personagem entrar em transe após o uso de uma droga psicodélica. Sendo uma das grandes precursoras do Stop ERA, ela passa a questionar os objetivos do movimento e até mesmo suas próprias motivações, entregando uma das grandes reviravoltas da série. Mas, infelizmente, Alice não existiu na vida real.

John Slattery também compõe o elenco, interpretando o advogado Fred Schlafly, marido de Phyllis (Foto: FX)

Mrs. America não precisa criar uma distopia para escancarar aspectos machistas e patriarcais presentes na sociedade, visto em produções como The Handmaid’s Tale. Ela apresenta uma narrativa verídica, baseada em fatos reais e com personagens reais. E nos lembra o tempo todo disso, ao alternar para cenas que mostram os eventos da série ocorrendo na realidade. E por esse aspecto realista, ela acaba sendo tão assustadora.

Conseguimos ver que o cotidiano dos anos 70 não se difere tanto dos nossos dias atuais. A interpretação errônea sobre a ERA é constantemente observada nas falas de Phyllis durante os debates, o que não a impede de disseminar informações falaciosas mas que, ainda sim, terão credibilidade na sua legião de apoiadoras. E a dificuldade em se separar assuntos políticos, como o aborto, de questões religiosas também é um dos grandes aspectos atemporais da série.

A cena final da série é uma referência ao filme Jeanne Dielman (1975), que conta a história de uma dona de casa viúva que, ocasionalmente, se prostitui para sobreviver (Foto: Reprodução)

No entanto, a narrativa não nos apresenta apenas momentos negativos. A encenação da primeira Conferência Nacional das Mulheres é um dos grandes marcos da obra. Observar na tela mulheres unidas pela conquista dos seus direitos em um momento que, apesar de não ser tão lembrado, promoveu discussões extremamente pertinentes, é emocionante. O encerramento da série, em que finalmente se dá a queda de Phyllis Schlafly, é outro suspiro de alívio, algo reconfortante após a sequência de absurdos provocados pela personagem, que repercutem até os dias atuais

Mrs. America é uma lembrança dolorosa e necessária sobre o passado. Nos faz lembrar e reconhecer toda a luta e esforço preciso para promover mudanças significativas em estruturas sociais. Mudanças essas que ainda podem levar anos para acontecer, como foi com a própria ERA, que até hoje tem um futuro incerto na política estadunidense. Também faz lembrar que, não importa o quão avançada a nossa sociedade aparente ser, a cada atitude misógina nós retrocedemos, ao menos, 50 anos.

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