Do começo ao fim, há vida: a cultura Ballroom do nascimento ao presente

A capa é uma colagem de várias fotos de Mothers, figuras lendárias e muito respeitadas na cena da Ballroom por serem fundadoras de casas que acolhiam outras pessoas. A esquerda, Crystal LaBeija, uma pessoa negra, em um vestido vermelho com acessórios combinando e cabelo castanho volumoso e bem arrumado. Ao lado, em um recorte em preto e branco, está Angie Xtravaganza, com um elegante vestido, desfilando em uma das passarelas da Ballroom. Ao centro acima, uma parte da capa do documentário “Paris is Burning”. Logo abaixo, uma foto de Pepper LaBeija, uma pessoa também negra, em uma ball, com roupas douradas brilhantes e muita elegância. No topo direito está Paris Dupree, uma pessoa branca de cabelos loiros e olhos claros, usando uma boina e roupas pretas brilhantes que, na foto, está em uma pose de Voguing. Abaixo, Willi Ninja, um homem negro e um dos maiores nomes do Voguing de todos os tempos, considerado por muitos como o fundador do estilo amplamente conhecido, que na foto está parado em uma pose até meio contorcionsita, usando um boné azul e uma camisa parcialmente aberta.
Sendo um símbolo de resistência, falar sobre e dar os devidos créditos a Ballroom por suas contribuições é mais do que um resgate histórico: é um ato político (Arte: Aryadne Xavier)

Aryadne Xavier

“Você pensou que eu deitaria e morreria?/Oh não, eu não. Eu vou sobreviver/Enquanto eu souber como amar/Eu sei que permanecerei viva/Eu tenho minha vida toda para viver/Eu tenho meu amor todo para dar e/Eu vou sobreviver, eu vou sobreviver” 

– I Will Survive (Gloria Gaynor)

O ser humano pode não nascer programado para certos comportamentos, mas os aprende tão cedo que pode sentir, em seu íntimo, que as coisas apenas são dessa maneira. O desejo de pertencer, resquício fundamental do desenvolvimento em grupos, é tão latente que se transforma em uma vontade dupla de ser aquilo que é aceitável ou ao menos parecer ser. Lançada ao mundo pela primeira vez há 130 anos, a revista Vogue imprime o que seu próprio nome diz. Registrando e, talvez, ajudando a ditar o que está em alta, a publicação estadunidense foi, por incontáveis vezes, inacessível a uma parcela da população, que podia apenas se projetar nela, como um sonho. 

Tal projeção se via em uma sombra, refletindo aquilo que brilhava, mas o objetivo nunca foi copiar fielmente. Ao imitar as poses das modelos da Vogue em uma espécie de duelo, o grupo que participava das balls se apropriou daqueles movimentos, criando algo único. O Voguing se tornou algo muito além da revista, mesmo que seus nomes ainda possam ser assimilados. Esse ato de reconstruir, verbo que sempre fez parte dessa cultura, foi o que reinventou e revolucionou o que é ser uma pessoa da comunidade LGBTQIA+ em sua época de fundação, trazendo identidade, força e conexão até o presente.

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60 anos de X-Men e sua alegoria disruptiva

Imagem retangular do quadrinho de X-Men. No desenho estão 16 pessoas que fazem parte da narrativa, divididos principalmente em três grupos, os cinco mutantes originais ao centro com seus uniformes pretos e amarelos em destaque. À esquerda estão focados personagens mais vilanizados e a direita outros membros uniformizados. Todos estão em cima de destroços com um fundo com fumaça escura apocalíptico.
Wolverine, a estrela dos mutantes, apareceu pela primeira vez como vilão – e não em uma história X-Men, mas em uma HQ do Hulk (Foto: Marvel Comics)

Henrique Marinhos e Henrique Rabachini

A história das HQs é datada desde o fim do século XIX, como uma evolução das tiras cômicas publicadas em jornais. Os primeiros quadrinhos eram voltados para o humor e a sátira, mas logo começaram a explorar outros gêneros como a aventura, o romance, o terror e a ficção científica. Um dos que se destacou foi o dos super-heróis, que se consolidou na década de 1930 com a criação de personagens como a dupla da DC Comics, Super-Homem e Batman, e Capitão América, pela Marvel. Esses heróis representavam os ideais de justiça, coragem e patriotismo, em um contexto de crise econômica, guerra mundial e ameaças totalitárias. Eles também refletiam as aspirações e os medos da sociedade norte-americana, que buscava escapar da realidade através da fantasia. 

No entanto, nem todos os super-heróis eram tão simples e otimistas. Na década de 1960, surgiram os X-Men, uma equipe de mutantes que traziam uma nova perspectiva para os quadrinhos. Nessa época, o mundo passava por grandes transformações, com movimentos pelos direitos civis como a luta contra o racismo e o movimento hippie, em paralelo a Guerra Fria e a corrida espacial. Sean Howe, jornalista e autor do livro Marvel Comics: The Untold Story, descreve o grupo como provavelmente o mais explicitamente político dos quadrinhos da Marvel dos anos 1960, quando a cultura pop ganhava cada vez mais influência através da Música, do Cinema, da Televisão e, claro, das HQs. Os heróis mutantes são um importante exemplo refletor de seus valores e transformações que completam seu sexagenário aniversário em 2023, propondo questionamentos e a busca por mudanças, influenciando a cultura e a política até hoje. 

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Lagum: tem gente que só começa Depois do Fim

Capa do álbum Depois do Fim, da banda Lagum. Quatro homens estão centralizados na imagem, distantes, sentados em uma janela em cima de um telhado. A casa na qual o telhado está, queima em chamas, com fumaça e fogo aparecendo nos cantos. Os homens aparentam estar tranquilos, conversando no local, que está anoitecendo e sendo iluminado apenas pelas chamas.)
A estética de casa em chamas aparece no quarto álbum de estúdio da banda Lagum e aponta para um recomeço pós destruição (Foto: Sony Music)

Luiza Lopes Gomez

Angústias, perdas, negação e reencontro. Estas são algumas das palavras que caracterizam e são usadas como base para a criação do quarto álbum da banda mineira Lagum. Depois do Fim é lançado como um olhar diferenciado sobre o mundo e traz à tona questões filosóficas talvez nunca aprofundadas nos últimos discos – pelo menos, não na mesma intensidade. A chegada do projeto recorre a jornadas internas em meio ao entendimento do despertar depois do fim, abordando temáticas como o destino e o acaso, a saudade, o reconhecimento pessoal e esclarecimentos internos na mente de um jovem reflexivo. 

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Mussum, o Filmis: o samba e o humor brasileiro agradecem

Maior estreia nacional em 2023, Mussum, o Filmis integrou a programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Downtown Filmes)

Vitória Gomez

Mussum, o Filmis chegou às telas em uma safra fértil para as personalidades brasileiras: alguns meses depois de Nosso Sonho, junto do documentário Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você e Meu Nome é Gal, e pouco antes de Meu Sangue Ferve por Você. Haja cultura e diversidade em um ano em que, independentemente dos desempenhos individuais de cada obra, o Cinema nacional mostrou a potência que é – e que poderia ser ainda maior com políticas públicas que verdadeiramente valorizassem esse potencial. Para melhorar, a envolvente cinebiografia do sambista, ator e comediante Mussum, eternamente conhecido pelo seu papel como um dOs Trapalhões, arranca risadas fáceis e, não por menos, estreou com seis Kikitos do Festival da Gramado na bagagem, além de passagens pelo Festival do Rio 2023 e pela 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Mostra Brasil.

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Dulcineia explora a música como a conexão, inspiração e destino de um artista em busca de sua identidade

Cena do filme Dulcineia. Na imagem estão os dois protagonistas Hugo e Dulcineia andando de bicicleta. Hugo é um homem de meia idade com cabelos lisos, longos e presos. Ele tem uma barba preta que cobre seu rosto enquanto anda de bicicleta. Dulcineia é uma mulher branca de cabelos castanhos longos. Ambos estão em uma rodovia movimentada e muito iluminada por postes e reflexos da água em poças formadas pela chuva. Estão usando capas de chuva, Dulcineia uma capa vermelha e Hugo uma capa transparente.
Junto a Dulcineia, mais de 20 filmes portugueses integram a 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Bando à Parte)

Henrique Marinhos

Dirigido e roteirizado pelo cineasta português Artur Serra Araújo, Dulcineia conta a história de Hugo, um contrabaixista de jazz que decide tirar um ano sabático e voltar a Porto, sua cidade natal, em busca de equilíbrio e inspiração. No entanto, como o fio condutor da trama, a sinfonia se desenvolve lentamente em torno de um mistério como um pianista famoso, que toca uma música que o protagonista vem escrevendo na sua cabeça há anos, mas nunca conseguiu colocá-la no papel.

A obra está presente na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Perspectiva Internacional, e mistura elementos de romance, suspense e uma quase fantasia. Suas referências também são diretas e bem-vindas, construindo uma base sólida para o desenvolvimento da narrativa: Dom Quixote, que influi o nome da personagem Dulcineia (Alba Baptista) e sua relação com Hugo (António Parra); a própria cultura de Porto, retratada em belas imagens e diálogos; e o jazz, a paixão e a expressão de Hugo e dos demais músicos que ele encontra em sua nova jornada de autoconhecimento. 

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Há 10 anos, Lorde lançava o fermento de uma geração: Pure Heroine

Capa do álbum Pure Heroine. O fundo é totalmente preto. Na parte superior central, está escrito “Lorde” em letras maiúsculas e na cor prata. Logo abaixo, está escrito “Pure Heroine” em letras maiúsculas e na cor prata.
Lorde não era hipertensa para ficar aguentando músicas sem sal, então decidiu criar sua própria receita com Pure Heroine (Foto: Universal Music)

Ana Cegatti

Uma parede clara e uma camisa branca são componentes clássicos de vídeos gravados por subcelebridades que tentam se desculpar por algum erro. No entanto, a neozelandesa Ella Marija não usou tais componentes no clipe de Royals para limpar alguma defecação, mas para jogá-la no ventilador. Há uma década, as rádios anunciavam a transformação de Ella em Lorde e ecoavam melodias que fizeram da onda alternativa da época um tsunami. Naquele momento, a indústria musical precisava fazer uma escolha: se afogar ou aprender a surfar. Lançado pela Universal Music e produzido por Joel Little, Pure Heroine é um álbum que nunca precisou pedir desculpas, já que Lorde jamais sentiria remorso por um erro tão ingênuo: amar demais. 

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Nosso Sonho é coisa de Cinema

Nosso Sonho esteve entre os cotados para representar o Brasil como Melhor Filme Internacional no Oscar 2024 (Foto: Manequim Filmes)

Vitória Gomez

Se o Cinema é um modo divino de contar a vida, as cinebiografias são a vida passando na frente dos nossos olhos. No entanto, assim como acontece com os documentários, realidade e ficção se misturam e o ponto de vista sempre se sobressai. Por que não usar isso a seu favor? É o que Nosso Sonho: A História de Claudinho e Buchecha faz: o longa-metragem que reconta a trajetória da maior dupla de funk nacional abraça de vez o sentimento e mostra que, por trás das coreografias inusitadas e das letras contagiantes, o que prevalecia era a amizade entre os dois.

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RR é uma celebração do amor?

A capa do álbum une as iniciais dos cantores Rosalia e Rauw Alejandro (Foto: Sony Music)

Isabela Domingos 

Juras de um amor eterno e um pedido de casamento marcaram o lançamento de um dos casais mais queridos do mundo pop. Enquanto os fãs se decidiam entre Versace e Louis Vuitton para o matrimônio do ano, a notícia que ninguém esperava veio à tona: Rosalia e Rauw Alejandro se separaram. Para os filhos do divórcio, felizmente, restou um álbum impecável marcado pela mistura de estilos e vocais que definem o fim da era RR

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A partir do afrofuturismo, Dirty Computer mantém seu impacto político intacto mesmo após 5 anos

Capa do álbum Dirty Computer. Nela está a cantora Janelle Monáe, uma mulher negra de cabelos curtos que veste uma burca feita de joias brilhantes interligadas por correntes. Apenas seus olhos não estão cobertos. A burca é de metal e vazada. Sua pele é iluminada por uma forte luz vermelha enquanto ao fundo está um círculo que se assemelha a um planeta com árvores ao redor de sua cabeça. Este é preenchido por um degradê que vai do vermelho ao amarelo. Ao fundo, tons de azul que se assemelham a nuvens e à esquerda o texto Janelle Monáe - Dirty Computer.
Dirty Computer foi anunciado com um trailer, exibido nas sessões do filme Pantera Negra (Foto: Bad Boy Records)

Henrique Marinhos

Baseado em uma história distópica que transforma aqueles que não se conformam em computadores sujos, Dirty Computer é o terceiro álbum de estúdio da cantora, compositora e atriz Janelle Monáe. Lançado em 2018, a obra-prima não se destaca apenas por sua sonoridade, mas também por sua narrativa visual e conceitual, unidas em um audiovisual de 48 minutos emocionante.

Desde o lançamento de seu primeiro álbum, The ArchAndroid, em 2010, Monáe tem sido aclamada pela crítica e pelos fãs por sua originalidade e inovação na Música. Ela mistura elementos de R&B, soul, funk e rock, além de ser conhecida por suas performances energéticas e hipnotizantes, que cativam a audiência em seus shows ao vivo. Hoje, ela pode comemorar a realização de um manifesto impactante que comemora cinco anos de existência.

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PC Music (2013-2023): o pós-pop reencarnado e virtualizado

No seu aniversário de dez anos, em 2023, a PC Music lançou um mix multiautoral de 100 minutos e anunciou o encerramento do selo (Arte: Aryadne Xavier)

Gustavo Capellari

Em 23 de Junho de 2013, o selo e coletivo Personal Computer Music, mais conhecido por seu nome encurtado PC Music, disponibilizava seu primeiro lançamento musical, o single Bobby, da cantora GFOTY. A empresa foi fundada pelo produtor britânico A.G. Cook, que um ano antes já testava um protótipo de selo independente, a Gamsonite.

Embora Cook tenha sido essencial para a sua construção, quando ouvimos falar de PC Music, mais do que uma história linear ou um conceito fechado em uma empresa do Reino Unido, é aberta uma multiplicidade de significados, auras artísticas, gêneros musicais e estéticas (im)possíveis da pós-modernidade tecnocapitalista. O decênio do selo não pressupõe que as histórias das mais variadas subversões da música pop mainstream tenham começado apenas em 2013. A construção da PC Music e, juntamente, de gêneros musicais recentes como o hyperpop e o bubblegum bass, é produto direto e indireto da música que os antecede e da que é criada no mesmo período.

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