O universo nunca mais foi o mesmo depois de conhecer a infinitude de Marisa Monte

Em 2021, o mundo de Marisa Monte dividido entre Infinito Particular e Universo Ao Meu Redor completou 15 anos (Foto: Marisa Monte)

Raquel Dutra

O planeta Terra não era habitado por Marisa Monte quando este iniciava o ano de 2006 ao completar mais um ciclo ao redor do Sol. Depois de dar à luz ao fenômeno romântico filho de Vênus batizado de Memórias, Crônicas e Declarações de Amor em 2000, a jovem deusa da música pop brasileira se recolheu. Para bem longe do brilho, grandiosidade e tudo mais que envolvia a ideia de sua ascensão escrita nas estrelas, cuja concretização nesta galáxia lhe era prometida desde os anos 90, Marisa Monte passou seis anos orbitando o seu próprio universo. 

Dentro de seu sistema, a artista só permitiu a presença de objetos voadores identificados, o que fez com que aqueles anos não fossem de completo silêncio decorrente do vácuo espacial. No período entre a virada do milênio e o primeiro terço do século XXI, ecoaram por aí as ondas sonoras da estreia dos Tribalistas, supergrupo da MPB composto pelos amigos de longa data de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que consolidaram sua parceria estelar no disco autointitulado de 2002. 

Assim, o hiato de Monte ficou resguardado aos seus singulares voos solo. Mas quando sentiu falta do oxigênio da nossa atmosfera e finalizou a exploração de seu próprio cosmo, a astronauta da Música brasileira voltou. Como alguém que retorna de uma missão trazendo itens que servirão para quem ficou aqui compreender as descobertas de quem foi para lá, Marisa Monte aterrissou na Terra em 10 de março de 2006 com Infinito Particular em uma mão e Universo Ao Meu Redor em outra.

Só não se perca ao entrar (Foto: Phonomotor)

A primeira coisa que perguntamos para alguém que chega de viagem é como a experiência dela foi. Sendo assim, quando Marisa Monte se apresentou de volta através de sua dupla de discos lançados simultaneamente, ela ofereceu uma espécie de diário de bordo para os seus ouvintes através de suas primeiras canções, que também constituíam as faixas-título de cada álbum.

Infinito Particular comunicou as descobertas da artista em seu âmbito mais íntimo, somando-se às outras 12 composições inéditas que sustentavam o pop psicodélico do disco – o primogênito de 2006 por uma fração de segundos. Já Universo Ao Meu Redor introduziu um novo olhar de Marisa Monte para a Música que a cercava, com direito a chamada no rádio da espaçonave e a companhia de um generoso repertório de samba, cujas 14 canções misturavam autorais e regravações de grandes referências do gênero.

Mas obviamente, depois de conhecer as nebulosas e supernovas que deram origem ao seu mundo, Marisa Monte tinha muito mais a dizer. O público, por sua vez, diante do seu retorno celestial, também tinha muito mais a saber. Sem tirar a novidade dos discos que chegaram à Terra na velocidade da luz, boa parte das questões que giravam ao redor da artista naquele momento poderiam ser respondidas pelo seu próprio contexto e pelo seu próprio trabalho.

Universo Ao Meu Redor ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Samba ou Pagode, enquanto Infinito Particular foi nomeado para Melhor Álbum de Pop Contemporâneo Brasileiro (Foto: Phonomotor)

As razões para uma viagem tão intensa e extensa? Algumas secretas para a artista que habita Marisa Monte, e nenhuma surpresa para o público que a acompanha. Embalando a vida de uma mulher de ciclos, a carreira artística de Marisa foi consolidada apenas no novo milênio. Primeiro, a dupla MM (1989) e Mais (1991) apresentaram Monte ao Brasil e para fora dele; depois, Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão (1994) alcançou o clamor da crítica como um dos melhores álbuns não só de sua discografia como também de toda a Música brasileira. Tudo isso permitiu à artista inaugurar seu próprio selo musical, um ano antes de Memórias, Crônicas e Declarações de Amor colocá-la entre as mais vendidas do país.

Então, o que faltava à constelação de Marisa Monte depois de 2000? Autoria. Detentora de uma carreira que colocou os palcos na frente dos estúdios, a artista já era conhecida como uma intérprete extraordinária desde sua estreia em 1987 com a turnê Veludo Azul. A setlist do show produzido por Nelson Motta para divulgar o nome de Marisa pelo território nacional originou seu primeiro disco, composto por 15 faixas, das quais apenas uma era inédita. A decisão criativa não foi nenhum problema para sua capacidade de regravar canções clássicas da Música brasileira, e assim, o primeiro aspecto da identidade artística de Monte estava formado, aguardando para ser muito bem aplicado em seus próximos quatro álbuns. 

E o que orientava os movimentos de Marisa Monte no universo da Música brasileira? Suas (muitas) referências artísticas. A diva revelada no final dos anos 80 ostentava um repertório eclético em shows performáticos e teatrais, que destacavam sua versatilidade e maestria em qualquer papel que a Música lhe concedesse. Ao criar para si mesma muito mais experiências coletivas do que representações pessoais, e alimentar muito mais respeito pelas suas influências antes de trabalhar alguns de seus dons, a Música de Marisa Monte se aproximava da independência, mas ainda sentia a necessidade de desenvolver seu próprio sistema.

Entre 2006 e 2007, Marisa Monte uniu os repertórios na turnê mundial Universo Particular (Foto: Murillo Meirelles)

O conflito era do tamanho do mundo. E por isso é que a artista foi além da materialidade conhecida para compreender o que era seu ambiente artístico. Assim, Infinito Particular é Marisa conhecendo o seu âmago criativo, e Universo Ao Meu Redor é Monte aprendendo a lidar com suas referências. Quase como um conto bíblico que explica a origem de tudo, a deusa criou seu Universo Particular a partir do Infinito que existia ao Redor. Ali, tudo é perfeitamente coordenado: ela define muito bem o dia e a noite, a luz e a escuridão, o que compete ao ser humano e o que compete a natureza, qual criação domina qual ambiente e como cada uma delas deve existir dentro daquele cosmo.

É por isso que Infinito Particular foi o primeiro trabalho totalmente autoral em composições de Marisa Monte e que Universo Ao Meu Redor consolidou sua musicalidade tão aclamada e bem referenciada. A artista esteve presente em cada uma das letras que criaram o primeiro disco (também assinadas por, obviamente, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, além de outros nomes como Pedro Baby e Nando Reis) e escolheu a dedo quem estaria junto dela para formar as canções do segundo (resgatando a presença de deuses e deusas da Música brasileira, como Dona Ivone Lara, Moraes Moreira, Paulinho da Viola e Argemiro Patrocínio). 

Nesse ínterim, ela foi do pop ao samba, esbarrando no rock, bossa nova, MPB e jazz, contando com a coprodução de Alê Siqueira no disco-infinito e Mário Caldato no disco-universal. Revisitando algumas épocas de sua carreira com composições antigas que ainda não haviam sido gravadas, e estabelecendo contato direto com sua gênese artística, Marisa Monte se encontrava imersa em Música. E aproximando as características contrastantes dos álbuns-siameses pela última vez, a coesão magnética de Infinito Particular é o principal nó do mundo musical de Marisa Monte, frente à vibração espontânea que coloca o apreço de Universo Ao Meu Redor antes de seu irmão gêmeo.

Infinito Particular estreou na primeira posição dos discos mais vendidos no Brasil, se tornando o sétimo álbum consecutivo de Marisa Monte a alcançar essa posição nas paradas musicais do país (Foto: Murillo Meirelles)

A autoconsciência de Infinito Particular é tudo o que Marisa Monte sugere no primeiro verso da faixa-título que abre o disco. “Eis o melhor e o pior de mim”, ela inicia a apresentação de seu mundo com um tremendo suspense. Dançando em um instrumental curioso e convidativo mas hesitante e nada dócil, a letra mestra de Marisa Monte é ecoada num contraste denso, surrealmente combinado com a rarefação de sua voz em um ambiente quase inóspito. Ela brinca com os seus elementos, e na melhor das sinestesias, a imagem que se constrói para a trilha da canção é a de uma deusa que livremente compõe sua criação.

No entanto, ao ouvinte irresistivelmente atraído pela sua gravidade, Marisa Monte confessa alguns segredos e afasta qualquer ideal metafísico que poderia comprometer seu compromisso com a humanidade (“Eu sou daqui, eu não sou de Marte”). Quando a intimidade parece profunda demais, ela não desiste de buscar a companhia de outras formas de vida nem na última estrofe (“Vem cá, não tenha medo”), e nunca falha em manter os tripulantes cientes das consequências de adentrar aquela atmosfera, avisando que ali, a realidade existe de uma forma diferente: “Só não se perca ao entrar no meu infinito particular”.

Mas uma vez imersos no universo de Marisa Monte, a perdição é a lei mais natural e o crime mais recompensador. O magnetismo anunciado dos sintetizadores que domina a sonoridade de Infinito Particular, combinado à densidade prometida das composições que rumam o disco, confunde a bússola do melhor dos exploradores. Atenta e generosa como toda boa figura divina, a artista aponta uma referência para orientar as testemunhas de criação no verso que anuncia um de seus maiores sucessos: “Há um vilarejo ali”.

Numa delicadeza que parece o pisar no solo de Saturno mas valendo-se da força rochosa de seus anéis, estamos na segunda faixa do disco, que já afirma a mais valiosa descoberta de Infinito Particular: a Marisa Monte compositora. Vilarejo a revela numa ponta de crítica social, cuja realização só pode partir de uma aluna exemplar da MPB. Afinal de contas, flores enfeitam os caminhos, os vestidos, os destinos, e essa canção, que compreende uma das principais lições de Elis Regina ao tomar o sonho como um aliado na missão de transformar a realidade.

Assim, ela cria um Levante numa deslumbrante influência de jazz que ironiza a cidadania passiva – também conhecida como uma das principais características da nação brasileira –  com apenas uma expressão: nada demais está acontecendo aqui. A canção, que soma Seu Jorge na composição dos Tribalistas, prepara o caminho para a próxima parada na viagem interestelar de Marisa Monte, apresentando em Aquela o que pode ser compreendido como uma de suas essências mais marcantes: uma espécie de bossa nova 00’s que faria o olhar de Tom Jobim brilhar. 

Ela é leve ao cantar “aonde me levar a minha voz, eu vou”, munida de uma determinação artística que não fica só na produção ambiciosa, mas se estende à letra de uma Marisa Monte certa do que faz. É assim também quando ela canta O Rio, em toda a musicalidade etérea proposta por Infinito Particular, que dedica uma atenção especial para encontrar matérias reais e universais dentro dos elementos abstratos e pessoais.

Enquanto um lado de Infinito Particular é iluminado pelo Sol, o outro está numa escuridão que permite apenas os feixes de luz da Lua. Lá, a assinatura sonora de Infinito Particular aparece de novo nos sintetizadores hedonistas de A Primeira Pedra. A canção reproduz uma melodia de fundo que soa quase como uma resposta à primeira faixa do disco, e ao invés de destacar os mistérios de Marisa Monte, ela traz a resolução de alguns deles. E quem ousaria dessas vozes duvidar?

A essa altura da exploração de Marisa Monte, vale lembrar a teoria da composição de um universo: atualmente, a astrofísica acredita que a matéria comum constitui apenas cerca de 5% do cosmo, enquanto 25% dele é preenchido por matéria escura e os outros 70% por energia escura. E se a premissa era compreender seu Infinito Particular, a cosmonauta conseguiu encontrar a potência que preenche boa parte da seu espaço sideral. Ela está em Pernambucobucolismo.

Curiosamente, aqui é a localização do conglomerado musical que mais se difere do resto do álbum, e também marca a origem da vibração que mais expressa o desejo de Marisa Monte em criar um movimento. Em perfeita harmonia com as leis da natureza, a canção coloca a dona do universo em tudo: na composição da letra, dividida com o amigo Rodrigo Campello, e na produção sonora, que fica apenas entre a liderança do groove de seu baixo e a percussão de Dadi Carvalho.

A partir de registros da turnê Universo Particular, Marisa Monte gerou o documentário Infinito Ao Meu Redor em outubro de 2008, que mostra os bastidores da vida da artista (Foto: Murillo Meirelles)

Ao contornar o buraco negro de seu disco, Marisa Monte relata a experiência de sucumbri à sua própria densidade: “quando me dei por mim, já estava aqui”. Na confusão dos eventos de um espaço-tempo distorcido, a décima primeira faixa de Infinito Particular mistura todos os componentes do disco: as modulações do teclado, o pop sintético, o groove grave, a referência acústica da MPB e a composição psicodélica da letrista. Como? A resposta está no nome da canção: Aconteceu. 

De volta às lições da astronomia, o que a concentração de energia procura saciar é sua ânsia por luz. Assim, o lugar mais obscuro e perigoso do universo de Marisa Monte usa seus últimos minutos em atividade para extrair toda a iluminação possível de Infinito Particular. Porque a última música do disco transita a harmonia universal? Os astros explicam, enquanto Pelo tempo que durar flutua em notas lançadas como foguetes da base das últimas oitavas do piano, numa operação pacífica orientada pelo violão melodioso que identifica a canção mais onírica da seleção.

Mas mesmo estando em acordo com as ordens do céu, o que Marisa Monte faz ao fim da fase mais intensa e profunda de sua missão de exploração é um mistério do autoconhecimento. Ou nem tanto assim, já que ela também cria os meios necessários para seu acompanhante entender as conclusões de Infinito Particular: a capacidade de manter-se sã diante das ocorrências é o triunfo de confiança que honra quem se arrisca a compreender o próprio mundo.  

Quando chegamos no território já estudado de Universo Ao Meu Redor, a nova etapa da viagem de Marisa Monte não mais estava à mercê do desconhecido. Isso é o que a artista faz questão de postular na faixa-título do segundo disco, cantando que já não se sente mais só confiante de responsabilidade em reportar as novidades. O samba leve composto pelos Tribalistas nos coloca num planeta mais seguro à vida humana, onde o clima é mais caloroso e podemos tocar os pés no chão, sem a preocupação com o que se passa lá no alto do céu, mas autorizados a observar o microcosmo.

A paz proposta pela segunda-primeira-canção embala o caminho até O Bonde do Dom, cuja levada malandra quase traz de volta a pulsão extraterrestre, que tenta saudar a humanidade através dos traiçoeiros sintetizadores escondidos em efeitos de transição. Mas o foco em Universo Ao Meu Redor não é mais a exploração do que pode existir além do infinito, e sim a observação da boa finitude do mundo que já conhecemos. 

Desta forma, Marisa Monte contempla a fauna pela ótica da composição lúdica de Jayme Silva em Meu Canário, a linguagem através do romance de Moraes Moreira em Três Letrinhas e o romance na marcha do jazz de Quatro Paredes. A artista também interrompe o curso de Universo Ao Meu Redor para apreciar a própria vida do gênero reverenciado no disco entre as harpas de Perdoa, Meu Amor. E quando o desejo é olhar para as cidades e seus monumentos, ela faz isso junto de ninguém mais ninguém menos que David Byrne em Statue Of Liberty.

Mas como todos que bravamente não desistiram da exploração espacial já sabem, nem só de matéria e ordinariedade se forma o Universo. Lá pra metade do disco, no momento em que Marisa Monte olha com mais atenção para ser humano, ela identifica o Cantinho Escondido que guarda algumas das nossas dores emocionais. O samba é aparentemente inofensivo com o objetivo de amansar a saudade, a ira, o rancor, a decepção, o arrependimento e a revolta que são nomeados na leveza do kalimba de Marisa. Desta forma, quando chegamos em Lágrimas e Tormentos, o processo de cura sentimental escrito por Argemiro Patrocínio é verdadeiramente pleno.

Se fora do Vilarejo nem tudo são flores, as Pétalas Esquecidas de Dona Ivone Lara trazem ao solo local duas memórias através do timbre de Marisa Monte: o veneno amargo que flui da arrogância do homem, e a erosão que a paixão destrutiva pode causar. E falando de ações antrópicas, a presença de Adriana Calcanhotto cria um temporal que faz o céu cair em Vai Saber. Onde existir um fenômeno da natureza é onde Marisa Monte estará, e a canção é o ápice do disco que reafirma a intérprete de Universo Ao Meu Redor

Ao fim de todas as observações, explorações e experimentações, a conclusão de Marisa Monte é regida em A Alma e A Matéria – lembra da composição do universo? -. Entre o plano físico e o espiritual e perfeitamente de acordo com as leis do universo, ela mais uma vez organiza a criação: “Vem pra esse mundo, Deus quer nascer”. O ouvinte, no entanto, não pode mais contar com a hesitação convidativa de Marisa Monte. Agora, ela revela em Satisfeito sua independência e chega ao destino final almejado por Infinito Particular e Universo Ao Meu Redor, entendendo o que significa ser um sistema por si mesma e compreendendo como viver em harmonia com a vastidão à sua volta.

Sinta-se em casa (Foto: Murillo Meirelles)

É fato que nas descobertas de Marisa Monte o tempo passa de uma maneira diferente do que conhecemos e o espaço não se constrói da forma como estamos acostumados. Mas o Infinito não temeu nenhuma experiência e o Universo foi certeiro em todas as orientações. Aqui é só mistério, não tem segredo. Você também não está só e o mundo é portátil, mas só para quem não tem nada a esconder. O 15º ciclo ao redor da órbita de Marisa Monte se completou e sua cosmologia continua em expansão. Parabéns para você que permaneceu nele até aqui e olá para você que acabou de chegar para o próximo.

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