Tribalistas e a minha velha infância

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Elisa Dias

A possibilidade de escrever crítica musical foi anulada automaticamente do meu plano de ideias no momento em que a cogitei. Simplesmente porque, em segundos, um pequeno fluxo de pensamentos a respeito me mostrou quão complexa é a minha relação com a música. Complexa porque, a meu ver, a minha visão a respeito é a mais baudelairiana possível, sem indícios de qualquer análise técnica que comprove de alguma forma o que eu quero dizer. Um texto crítico sem embasamento é mais um achismo pro mundo – e o mundo já está bem cheio disso, convenhamos.

Mas eis que descubro que meu disco brasileiro preferido completará 15 anos esse ano. “Discutir música é um negócio complicado”, já dizia Nilo, em seu texto da última quinta-feira sobre Pavement, e eu concordo e assino embaixo. Porém, sob o argumento de que Tribalistas é interessante demais para passar seu aniversário em off (e com ajuda de certa pressão externa dos amigos editores), decido enfim dar um jeito na vida e me arriscar no meio musical por, no mínimo, bons motivos.

Na minha pré-adolescência, minha mãe costumava me acordar com música alta nos finais de semana de vez em quando. Eu levantava da cama com olhos fulminantes, estressada mesmo antes de perceber que estava acordada de fato – disco e músicas sessentistas definitivamente não me animavam nas manhãs de sábado. Raras eram as vezes em que eu abria os olhos e não queria quebrar o aparelho de som, e em todas elas o mesmo disco ecoava da sala para meu quarto.  Meus ombros se relaxavam aliviados quando escutava a voz de Carlinhos Brown anunciando o começo dos Tribalistas- e do meu dia.

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Hoje, percebo que “bom dia comunidade” anunciava mais do que o simples início do único álbum do grupo – ele significava um nascimento, o surgimento de algo novo e de uma experiência amplamente brasileira. Com o passar das músicas, é perceptível a mistura experimental e bem feita de brasilidades, indo de elementos do samba à MPB, com backgrounds cheios de ruídos bem colocados e um posicionamento de músicas intrigante.

Na primeira vez em que me dei ao trabalho de escutar Tribalistas com ouvidos mais atentos, imaginei que o álbum se tratava da narração de uma grande história desenvolvida ao longo de suas 13 músicas; era um romance escrito na minha frente. A transformação dessa história para um livro de ficção não parecia tão difícil: tudo se inicia com o despertar de um interesse amoroso, e a ele se seguem as escolhas, a volta ao passado para reflexão, a impaciência com o passar do tempo por não alcançar o amor desejado, a desilusão, a revelação amorosa, seu desenvolvimento, a inserção do sentimento na rotina e na relação, uma análise momentânea da situação, a necessidade da ardência amorosa novamente, o entendimento do sentimento no presente e, finalmente, o epílogo /”sobre o autor”. Um clichê, digno de best-seller adolescente (fun fact: as bases de Nicholas Sparks e John Green se encontram no rearranjo dos mesmos fatores).

Pois bem, os tempos mudam e as visões de mundo também. Já não entendo todo o otimismo e singeleza com que enxergava o mundo na época, mas admiro minha versão romântica de anos atrás. Com ouvidos exaustivamente mais atentos, sento-me na cama com meu notebook e recomeço a jornada de outra forma, decidida a me concentrar no que as músicas iriam me dizer. Quando cheguei ao último segundo da última faixa, desejei não ter me concentrado tanto assim. A minha ficha caía lentamente, enquanto eu percebia que o romance se esvaíra para dar lugar a um abismo acolhedor.

A sociedade parece ter se dado conta da melancolia velada e da confusão que é o disco antes de mim, já que as músicas mais tocadas e conhecidas parecem ser as mais leves e menos subjetivas. Dessa vez, foram as mais desinteressantes para a minha consciência – não que “Velha Infância, “Já Sei Namorar” e “Carnavalia não tenham seus atrativos, mas a atenção estava agora voltada para as geralmente esquecidas.

De cara me encantei com “Pecado é lhe deixar de molho”, primeiramente pela grande margem de interpretação que um simples pronome oblíquo pode gerar. A cada “lhe” imaginado, temos um novo sentido para a música inteira, e sinceramente isso é tão realista que chega a assustar. Flash, personagem da DC comics, já nos provou que qualquer detalhe da nossa vida que seja modificado altera todo o andar da carruagem. E me vem o pensamento: porque não induzir uma reflexão aprofundada sobre como cada pormenor de nossas vivências tem sua importância e como cada leitura única gera uma interpretação diferente no ouvinte? Louvada seja a língua portuguesa.

O segundo vício do álbum veio quando fui confrontada pelo existencialismo de “Carnalismo“. Marisa Monte tem o dom de transmitir sentimentos específicos em seu cantar, e isso faz toda a diferença na maneira com que se percebe o que ela tem a dizer emocionalmente. Para melhor compreensão da música, dei-me ao luxo de me colocar no lugar de Marisa enquanto a escutava. Um efeito ímpar: pude sentir a anestesia e confusão de suas palavras, além da perplexidade pela proposta de que o amor não passa de uma relação carnal entre seres humanos. Com a repetição dos mesmos sentimentos na segunda parte da música, sinto a voz de Arnaldo Antunes surgindo e me acompanhando na tentativa de me sustentar, até que a imersão se torna grande o suficiente para que eu mergulhe por completo e fique impossibilitada de continuar. Carlinhos assume os dois últimos versos, e a música termina do mesmo jeito que começou – com chuva e indiferença. Demoro um tempo para me recompor.

A pré-adolescente rabugenta de anos atrás não se proporia a interpretar as coisas dessa forma. Novamente, me pergunto o que aconteceu com aquele otimismo e lirismo no olhinhos ingênuos de quem achava que entendia muita coisa, mas decido que aceitar o excesso de profundidade e pluralidade das minhas perspectivas é a coisa mais sensata a se fazer, no fim das contas.

Decido também que o termo “tribalista” não vai mais remeter apenas a “três” e “tribal” como eu pensava antes. Agora, assumo que se refere a excesso de balismo (doença caracterizada por tremor involuntário, desordenado e de grande amplitude), nesse caso de oscilações e vibrações nos fluxos lógicos da nossa mente. A perturbação às vezes se faz necessária, e não desviar os olhos de tudo o que convém como uma menina de 12 anos também.

Tribalistas me fez assumir a complexidade das coisas e escrever sobre música de alguma forma, o que já o torna um disco memorável para minha pessoa. Não sei mais escutar qualquer música ou ler sequer um poema sem me atentar às minhas próprias entrelinhas, fato não mais desesperador – apenas inconveniente às vezes, devo dizer, mas ninguém morre de inconveniência. No fim, em meio de tantas incertezas (que incluem a aguardada volta do grupo à ativa), uma coisa fica evidente: valeu a pena dar mais uma chance ao disco e à minha nova versão mais obscura e caótica.

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