Crônica da Casa Assassinada explicita os desejos reprimidos da aristocracia mineira

Capa do livro Crônica da Casa Assassinada. Na imagem consta uma capa estampada por formas marrom e preto, com o nome do autor, Lúcio Cardoso, no canto superior. O título do romance está abaixo em uma caixa cortada preta, onde está escrito: Crônica da Casa Assassinada. Acima, está o logo da editora Companhia das Letras.
Em abril, foi lançada a nova edição de Crônica da Casa Assassinada pela Companhia das Letras (Foto: Companhia das Letras)

Isabella Siqueira

Crônica da Casa Assassinada, lançado em 1959, assim como vários romances eternizados, contempla o fim da tradição familiar. Mas, ao contrário de clássicos como Os Buddenbrook e Cem Anos de Solidão, o romance não ficou marcado na literatura brasileira como deveria. A reedição pela Companhia das Letras é apenas o ponto de partida para a reparação que o autor merece. O crédito, muito merecido, de Lúcio Cardoso é visível pela maneira com que ele examina o interior da aristocracia mineira e sua decadência.

A família retratada no livro, Os Meneses, existiu na vida real, e é o exemplo perfeito para a maldição mais clássica da literatura. Inevitavelmente, o apogeu de um clã tradicional é sempre passageiro, e apesar da glória momentânea, é garantido que o fundo do poço é muito mais traiçoeiro. Em meio a cartas (enviadas ou não), confissões e relatos avulsos, Cardoso trilha uma história sombria sobre indivíduos aprisionados pelo próprio sangue. Os capítulos são todos narrados em primeira pessoa, trazendo certa desconfiança quanto a cada versão apresentada, e noções distorcidas sobre cada personagem.

A condenação à solidão é uma realidade auto imposta na Chácara, residência dos Meneses. O retrato de uma casa acabada e triste é clichê, mas efetivo. Conforme vão sendo contadas as histórias dos familiares, é possível entender o estado decadente dos cômodos e jardins, abandonados a Deus numa combinação perfeita com a miséria de seus moradores. Assim como o declínio da residência dos Buendía em Macondo e dos Buddenbrook no norte alemão, a mansão mineira localizada em Vila Velha sofreu com o fim da oligarquia latifundiária.

“Do lado de fora, isolada daquele quadro harmonioso, pensei comigo mesma que eles tinham toda a aparência de uma família feliz. Aparência apenas, porque em todos eles havia um elemento destrutor que os corroía.”

A vida doméstica dos Meneses é regida por sentimentos de dor e ódio, familiares que se detestam, evitam a presença e palavras afiadas uns dos outros. O próprio destino que criou um clã abastado, foi culpado pela existência de seres tão miseráveis. Os herdeiros restantes, Valdo e Demétrio, não tentam elevar o status de glória e solidez que um dia tiveram, visto que já não sabem administrar uma propriedade desse porte. Contudo, a existência simplória de todos muda com a chegada da carioca Nina, moça jovem, bela e espontânea.

Tal como Anna Karenina, Nina é uma personagem descrita por sua beleza e juventude que é brutalmente castigada por seu criador. Ao mesmo tempo que atrai homens com um simples olhar, recebe desconfiança e culpa. Enganada por Valdo pela promessa de uma vida abastada, ela chega a Vila Velha para se deparar com a solidão. A personagem não hesita em se entregar aos prazeres da vida, tendo casos amorosos, e inclusive se envolvendo com o próprio filho. Revela em cartas a fuga de seu casamento com Valdo, tendo sido acusada de adultério e levada ao exílio, voltando 15 anos depois. Os momentos finais da personagem são cruéis, visto que ela padece de um câncer doloroso que extenua a agonia de sua morte.

A trama é explorada sob pontos de vista distintos. Além dos familiares, o médico, padre e o farmacêutico registram a visão externa da família, sendo também testemunhas do passado rico do clã. Ana, esposa de Demétrio, é dona de valores regionais conservadores e nutre uma obsessão pela cunhada, mostrando-se como uma vilã rancorosa. Assim, se destaca a dualidade que permeia o romance, de um lado o regionalismo mineiro dos Meneses, de outro a vulgaridade urbana do Rio de Janeiro explícita em Nina.

Foto do autor Lúcio Cardoso. A fotografia possui um aspecto antigo, em bege e marrom claro. O autor é um homem branco de meia idade com cabelos e olhos castanhos, ele veste uma camisa preta e olha para o lado, suas mãos estão na altura dos joelhos. A sala possui paredes brancas, uma pequena estante com livros e pinturas na cama onde Lúcio Cardoso está sentado.
“Se Deus existe – e sei, sinto que existe – está comigo. Não é possível participar de tantas formas de vida, delas estando tão ausente. E morro de tudo o que vivo: sinto que a existência, em certos momentos, é quase um sacrilégio”, escreveu Lúcio Cardoso em seu diário (Foto: Reprodução)

Lúcio Cardoso opta por explorar intimamente a condição humana dos personagens. Ademais, o autor reúne recursos sociais da época para complementar a história, considerando que a sociedade da trama é formada por uma pequena vila mineira do século XX. O medo do desenvolvimento urbano, o fim dos grandes casarões e o apego ao saudosismo regional são fatores que inflamam a fragmentação dos Meneses. Já no âmbito privado, o autor pontua os tabus que alcançam o clã, como homossexualidade, incesto e suicídio. 

O retrato dos personagens contradiz a visão externa que a família exibe para os habitantes de Vila Velha, a riqueza e tradição dos Meneses é apenas um mito. Timóteo, um dos herdeiros, é um homossexual assumido que vive em reclusão sendo apresentado como doente para preservar a dignidade da família, que tenta esconder suas excentricidades, ele usa roupas velhas e joias de mulher. O personagem encontra amizade e afeto apenas em sua cunhada, Nina, com quem planeja uma vingança contra o clã.

André, narrador do primeiro capítulo, é protagonista do arco mais chocante da trama. Desamparado e perdido com relação ao passado de seus pais, o jovem embarca num caso incestuoso com sua mãe. Incompreendido pelo pai, por quem não nutre nenhum afeto, ele é deixado aos cuidados de Betty, a governanta da casa. A verdade sobre sua origem é revelada no final da obra, Cardoso inverte a história estabelecida nas últimas páginas, onde castiga o leitor por quaisquer juízos de valores errôneos criados.

“E sendo assim, desgraçada também a potência que nos inventou, pois inventou também ao mesmo tempo a ânsia inútil, o furor do escravo, e a perpétua vigília por trás desse cárcere de que só escapamos pelo esforço da demência, do mistério ou da confusão.”

Como dito no próprio título, o personagem principal é a própria Chácara, reflexo das falhas do clã Meneses. Os jardins sem vida e objetos de luxo são lembranças inúteis de um passado rico, janelas fechadas e um quartos escuros são o lar dos fantasmas vivos que habitam o local. A descrição de cada diálogo e cena é acompanhada pela aparência melancólica e decadente do cenário.

Outro ambiente conhecido do leito é o Pavilhão, que abriga os amores e casos de Nina, além do único momento de verdadeira felicidade que a personagem conheceu junto a Valdo. Mas, ao mesmo tempo, é um espaço que exala morte e desespero, onde ocorreu o suicídio de Alberto, amante da carioca, um fator decisivo para o rancor de Ana, secretamente apaixonada pelo jovem jardineiro.

Lúcio Cardoso foi (tardiamente, vale ressaltar) trazido de volta pela editora Companhia das Letras. O escritor, que estreou em 1934 com o romance Maleita, não é tão citado em comparação aos grandes nomes da segunda fase do Modernismo brasileiro, como Clarice Lispector e Graciliano Ramos. Amor juvenil de Lispector, ele fez parte da ramificação modernista chamada de Literatura Intimista, os autores desse grupo centravam suas obras nos conflitos do indivíduo, contrariando as críticas sociais e ares progressistas, marcados em grandes romances como Vidas Secas e Capitães da Areia. Em sua obra-prima, Cardoso não hesita em expor a família burguesa como animais donos de desejos reprimidos e almas solitárias.

Cena do filme A Casa Assassinada. A foto está em preto e branco, nela estão os atores Carlos Kroeber no papel de Timóteo e Norma Bengell como Nina. Timóteo é um homem branco de meia idade com cabelos castanhos e seus olhos estão fechados, ele usa um vestido estampado e maquiagem nos olhos, ele também usa pulseiras e brincos, está com as mãos cruzadas sobre o corpo de Nina. A personagem feminina é uma mulher branca que está deitada e morta, ela possui cabelos loiros e veste um vestido preto. Atrás dos personagens, existem homens de ternos cujas cabeças estão cortadas pela imagem.
Cena da adaptação cinematográfica dos anos 70; o longa é estrelado por Norma Bengell como Nina, e Carlos Kroeber como Timóteo (Foto: Planiscope Planificações e Produções)

Cardoso foi muito influenciado por autores católicos e levanta questionamentos religiosos na obra, principalmente, nas partes narradas por Padre Justino ou em confissões enviadas ao personagem. Outro tema comum ao catolicismo é abordado quando sugere que o pecado é realizado por aqueles que não aproveitam a vida, e que buscam a perfeição como norma suprema. Assim, os Meneses, seres isentos de erros que vivem com a máxima dignidade, são tão pecadores quanto Nina, que aceita uma vida pecaminosa e plena.

A história do romance foi transportada para o cinema nos anos 70. A Casa Assassinada, um filme dirigido por Paulo César Saraceni em 1971, esteve presente inclusive no primeiro Festival de Gramado, e também no Festival de Brasília. O longa teve sua trilha sonora feita por Tom Jobim. Além da produção, existe um projeto para uma nova versão no cinema, cuja direção ficará a cargo de José Luiz Villamarim (Nada Será Como Antes). 

A obra-prima começa pelo final, a morte de Nina e o afastamento de André encerram a narrativa dos Meneses, presos eternamente num conto aristocrático trágico. Meias confissões e relatos envoltos de culpa ajudam a situar a névoa que abraça não só os familiares, mas toda a pacata Vila Velha. O autor é ousado ao afrontar os costumes regionalistas mineiros, expondo sem dó a corrosão moral da oligarquia brasileira. A falta de reconhecimento do romance é injustificável, mil reedições de Crônica da Casa Assassinada não são suficientes para reparar o período em que Lúcio Cardoso permaneceu desvalorizado na literatura nacional.

Deixe uma resposta