Euphoria e o retrato de uma juventude autodestrutiva

Sexo, drogas e muita maquiagem (Foto: Reprodução)

Egberto Santana Nunes

O rótulo de drama teen foi só fachada para Euphoria, série da HBO que teve seu último episódio transmitido no domingo (04). O subgênero fez o marketing e chamou atenção de um Conselho de pais dos EUA, que pediram pelo cancelamento da produção, antes mesmo de sua estreia. O motivo? “Conteúdo adulto extremamente gráfico – sexo, violência, profanação e uso de drogas – aos adolescentes e pré-adolescentes” e de acordo com o grupo, o programa estava comercializando “internacionalmente esse conteúdo para crianças”. E de fato, tem muito disso, mas também tem muito mais.

Criada por Sam Levinson, a inspiração vem de uma produção israelita de mesmo nome, adaptada livremente com suas memórias adolescentes sobre ansiedade e dependência. A trama segue um grupo de estudantes de uma escola localizada no subúrbio dos Estados Unidos (a localidade exata nunca é revelada), a East Highland, entre o fundamental e ensino médio, enquanto eles vivenciam problemáticas envolvendo drogas, sexos, relacionamentos e outras obsessões.

O meio das redes sociais também se coloca como personagem nesse mundo, com todas as suas causas e consequências. Com exceção do oitavo, cada um dos episódios anteriores se concentra na origem de um personagem, enquanto todas as outras subtramas se desenvolvem.

Somos guiados o tempo todo pela voz de Rue, a narradora onisciente da série, interpretada brilhantemente pela Zendaya (essa mesma atriz pop da Disney e agora a MJ da Marvel Estúdios). E é nesse ponto onde Euphoria deixa claro desde o começo que sabe que é um show, está contando uma narrativa sobre adolescentes problemáticos pelo ponto de vista de um deles e a liberdade toma conta do cenário. A qualquer momento uma sequência dramática pode ser cortada, Rue questiona algum comportamento ou confessa para o público, e cenas totalmente desconexas, mas não tanto – sejam zoons em cenas de filmes pornô ou uma aula sobre fotos de pintos –  tomam conta daquele espaço e alinham com o diálogo.

(Foto: Reprodução)

E, falando nela, nada mais correto do que pegar a criança mais viciada, recém recuperada da overdose e falsificadora de assinatura no narcóticos anônimos para ser interpretada por um fenômeno teen. Para Zendaya, foi um cargo que encaixou nela enquanto não achava mais nada, queria algo diferente e se sentia desmotivada. Já para Sam Levinson, o criador da série, a atriz sempre esteve em sua mente, desde a primeira amostragem para HBO, Rue tinha nascido para Zendaya. E concordamos com ele.

O núcleo familiar da protagonista se concentra na relação carinhosa e amigável com Gia (a brilhante Storm Reid, da também forte e poderosa When They See Us) e as intensas brigas e discussões com sua mãe, Leslie (Nina King). As três entregam os momentos mais emocionantes e dramáticos, amadurecendo e desenvolvendo cada uma. Longe dos flashes e das festas, nesse ambiente familiar há as primeiras consequências de problemas e destruição causados pelo uso das drogas. E Rue não tem nenhuma intenção de parar o uso após a reabilitação.

Tudo muda quando ela encontra um novo vício, Jules (magnífica estreia de Hunter Schafer), recém chegada na cidade por conta do divórcio de sua mãe. Mesmo sendo amiga de Kat (a brasileira estilosa Barbie Ferreira), ela tem poucos amigos e preenche suas noites saindo com caras de encontros em aplicativos, geralmente casados e com famílias. Jules não tem o privilégio de sair às claras, e aí temos mais um acerto na diversidade dos personagens: ela é trans. E não, seu arco não gira em torno de sua sexualidade, e isso é poucas vezes dito em voz alta. E a comunidade LGBTQ adorou. Sim, representatividade importa.

O melhor casal sem química da TV (Foto: Reprodução)

De fato, o destaque está mesmo em Hunter. A modelo e ativista trans encontrou o trabalho vendo o anúncio no Instagram. Logo na sua apresentação, ela entrega uma excelente performance de conflito e ali, em poucas palavras e muita ação, já conhecemos e nos apaixonamos por sua personagem. Ela é colorida, vívida, intensa, mexe com as cores da série, e mesmo assim complexa e profunda, por conta de seu passado que é pincelado aos poucos. Após essa sequência de conflito do primeiro episódio, as duas rapidamente viram melhores amigas e iniciam um convívio diário bastante dependente e conflituoso

É nesse primeiro atrito de Jules que também nasce o vilão ou o antagonista da nossa dupla. Nate Jacobs (Jacob Elordi, o Noah da Barraca do Beijo), é o famoso “hétero topper” e, para usar mais palavras da moda, ele exala “masculinidade tóxica”. Alto, branco, másculo e popular. O quarterback do time de futebol americano da escola. Sua personalidade é clássica, trata mal as mulheres, ama e protege sua namorada, e enche a cara nas festas. Rue logo o detesta pelo seu comportamento de bullying e alto status. Com Jules, ele também não hesita e logo provoca e intimida, porém, a relação entre os dois vai aumentando e apresentando as verdadeiras intenções conforme o decorrer da série.

Nate e seu grupo de amigos homens sem camisa em uma cena de horror na série (Foto: Reprodução)

Talvez aí se encontra o seu único erro. Em cada episódio, conhecemos os personagens, eles vão se desenvolvendo e sua origem é apresentada pela voz e visão da Rue. Assim, podemos compreender suas ações e desejos. Porém, quando os olhos se voltam ao Nate, o texto o vilaniza excessivamente trazendo facetas irreais ou perversas demais até para alguém com comportamentos odiosos normais. Enquanto o compromisso de trazer um pouco da realidade é alcançado em alguns pontos, ela se esquece desse fator ao fantasiar demais em cima de um antagonista, colocando até falas que só poderiam sair de um seriado na boca do mesmo. Podendo até mesmo cair no erro de pensar “ele tem seus motivos”, o quê nunca é o certo.

O acerto de Euphoria está em traçar as problemáticas da juventude atual à sua maneira. São clichês, mas que aqui recebem um tratamento refinado e único. Pornografia, masculinidade tóxica, abuso sexual, identidade, relacionamento abusivo, e vício em drogas são alguns dos temas discutidos, e todos bem gráficos na tela. O quê fez a série se tornar “polêmica”, mostrando algo para alguns chocantes, e para outros, partes de suas vidas. Para Zendaya, não há nada chocante, a não ser que você não conheça essa realidade (aí explica os pais quererem acabar com a produção).

Filha de brasileira, Barbie Ferreira incorpora e empodera em Euphoria (Foto: Reprodução)

Todos esses elementos são filtrados pelo uso excessivo das mídias sociais, algo tão presente nos dias de hoje, tornando impossível uma produção com as mesmas temáticas ser feita dessa forma no passado. Nossas diferentes relações pessoais com o uso das redes passa pela trama de todos os personagens, como cada um encara isso offline, o olhar de fora da tela, a diferença quando se está desligado e suas consequências.

A divulgação da série foi extremamente consciente em relação aos recentes gatilhos nas produções audiovisuais. Em seu Instagram, antes da estreia, Zendaya alertou aos seguidores sobre o conteúdo forte, e nos episódios há avisos próprios antes do início de cada um, e no encerramento, uma letreiro indica o acesso a um site com ajuda para pessoas que sofram dos vícios representados.

A consciência esteve nos bastidores também. Uma consequência do movimento Me Too, que denunciou diversas personalidades de Hollywood por conta de assédio, as cenas de sexo foram todas acompanhadas por aconselhadores, para certificar que o elenco estava confortável e seguro sobre a cena.

A produção técnica não falha nem um pouco e beira o espetáculo. Há um forte uso de cores frias e fortes, abusando do azul e do verde. Em conexão com a narrativa, somos hipnotizados e tomados por um cenário alucinógeno nos momentos do uso de drogas. É luz e sombra na sua melhor função.

Zendaya incopora e emociona na luz neon (Foto: Reprodução)

Além disso, a direção evita muitos cortes, e opta por caminhar pelo cenário, quando esse está sempre mudando. A trilha sonora é bem diversificada, atenta aos ouvidos do público, e as canções são delicadamente escolhidas e mescladas perfeitamentes nas performances.

Euphoria foi muito diminuído e comparado durante toda sua exibição. Skins (2007), Kids (1995) e até mesmo Trainspotting (1996), entre outras produções retrataram à juventude da sua época da sua maneira. Porém, em 2019 não temos mais como romantizar os abusos e os vícios, e sem nunca forçar e soar didático, o voice-over da Rue grita os problemas de seguir uma vida como a do elenco.

Para a realização desse show, a HBO esteve em parceria com a A24 (Corra!, Hereditário, Lady Bird). As duas, juntamente com toda a equipe extramamente talentosa, trouxeram algo único para TV. Na primeira temporada, recordes de audiência garantiram uma sequência e assim como as produções mencionadas, entrou para a história. Enquanto você ainda não confere o resultado, vale a conferida na excelente trilha sonora que embala as noites dos estudantes de East Highland:

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