Em Cry Macho: O Caminho para Redenção, Clint Eastwood desmantela o símbolo que já representou um dia

Vemos os personagens Mike e Rafael, interpretados por Clint Eastwood e Eduardo Milett, em uma cena do filme Cry Macho: O caminho para redenção. À esquerda, temos Mike, um homem branco e idoso. Ele veste um chapéu de cowboy, jaqueta marrom, camisa de botões azul claro e calça jeans. Ao seu lado, está Rafael, um adolescente branco, com o tom da pele moreno, cabelos na altura das orelhas e veste uma jaqueta vermelha sobre uma camiseta amarela, além de uma calça bege. Atrás dos dois, vemos um carro grande e laranja.
Clint Eastwood tem uma longa trajetória no Cinema, atuando em mais de 60 filmes e dirigindo mais de 40 (Foto: Warner Bros.)

Gabriel Fonseca

O Cinema sempre contribuiu para a construção de heróis que fizeram parte do imaginário popular. Alguns duraram pouco e outros atravessaram gerações, como é o caso de Clint Eastwood com o seu tipo durão, para os clássicos de faroeste. Conhecendo a imagem que projetou de si mesmo nas telas, o ator e diretor aproveitou mais de uma oportunidade para se desconstruir, ao mesmo tempo em que conta uma bela história.

Em Cry Macho: O Caminho para Redenção, vemos uma versão atualizada dos heróis que protagonizaram o mito de criação dos Estados Unidos, no qual eles são trazidos para o século XX e se mostram mais humanos. O longa também explora um tom leve, pouco trabalhado nos filmes que Eastwood dirigiu e revela que o diretor ainda está aberto a novas experiências, mesmo que não precise inovar a sua forma de contar histórias.

Apesar de declarar a aposentadoria em 2019 com A Mula, Clint anunciou em 2021 o retorno como diretor e ator. Em Cry Macho, ele é Mike Milo, um domador de cavalos mal sucedido que já viveu tempos de glória como astro de rodeios. A trama se inicia graças à relação de dependência entre Mike e seu ex-patrão, Howard Polk (Dwight Yoakam), que lhe impõe a missão de viajar do Texas ao México para encontrar o filho, que vive sob os maus cuidados da mãe.

Vemos o personagem sem nome, interpretado por Clint Eastwood no filme Por um punhado de dólares. Ele é um homem branco de barba, chapéu de cowboy marrom e tem um charuto na boca
Eastwood ganhou notoriedade com filmes de bang bang nos anos 60 (Foto: MGM Records)

Mike não consegue argumentar contra o plano de Howard e se vê obrigado a retribuir favores antigos. Assim, ele parte em uma jornada para buscar o garoto, enquanto é perseguido pela polícia e os capangas da mãe de Rafael, um garoto de 13 anos que cresceu em meio à ilegalidade. A relação entre o protagonista e o personagem de Eduardo Minett é o que orienta a trama.

Logo no início, vemos uma relação improvável entre o menino e o ex-cowboy. As diferenças culturais, de idade e personalidades extremas são fontes de conflito e dão profundidade à relação, que se desenvolve aos poucos, como se cada um contribuísse para a jornada de autoconhecimento e redenção do outro. Para Mike, o que importa é garantir a segurança de Rafael, que, por sua vez, tem conflitos internos e dúvidas sobre a própria identidade.

Apesar de ser o motor da narrativa, não encontramos equilíbrio entre as performances de Eastwood e Minett. O veterano consegue se exprimir pelo andar debilitado, a voz rouca, diferentes tons e expressões discretas – sua característica principal -, enquanto o aprendiz parece sair do elenco de uma novela do SBT.  Suas expressões e falas são teatrais, manjadas. Um ótimo exemplo, e contrário ao duo de Cry Macho, é a dupla Josué (Vinícius de Oliveira) e Dora (Fernanda Montenegro), do longa brasileiro Central do Brasil.

Vemos uma cena de As Pontes de Madison. À esquerda, a atriz Meryl Streep interpreta Francesca. Ela é uma mulher branca, de cabelo comprido castanho, camisa branca, calça azul e segura algumas fotos enquanto está deitada. À direita, Clint Eastwood interpreta Robert. Ele é um homem branco, de cabelo branco, usa uma blusa verde e uma calça jeans. Robert está fotografando Francesca, enquanto os dois estão sobre um lençol no chão gramado.
Depois da queda dos filmes de velho oeste, Eastwood transitou por diferentes gêneros, como o drama e o romance (Foto: Warner Bros.)

A conexão com a história só acontece depois da metade, quando Mike e Rafael fogem da polícia federal mexicana e se abrigam em uma pequena cidade, com a ajuda de Marta. Natalia Traven interpreta a dona de um restaurante que se envolve com o protagonista e revela mais camadas de sua personalidade. Ele se mostra um homem amável e com talento para lidar com animais, o que nos passa uma impressão de pureza e reflete até a forma como o romance é construído.

O amor entre Mike e Marta é um amor contido, que se manifesta nos detalhes, nas interações cotidianas, sem que eles verbalizem, o que condiz com o perfil de direção de Eastwood, lembrando até mesmo As Pontes de Madison (1995), romance em que o diretor contracenou com Meryl Streep, dando vida a um romance idealizado, contemplativo e platônico. Porém, em Cry Macho, essa relação é concretizada.

Ao contrário dos grandes sucessos de Eastwood, neste filme não temos Morgan Freeman, Meryl Streep ou Hilary Swank. O que o torna especial é o seu aspecto revisionista, coisa que já foi trabalhada em 1992 com Os Imperdoáveis. Assim, como no clássico do faroeste, Cry Macho dialoga com os paradigmas do gênero e apresenta uma visão nova. Notamos isso na apresentação do protagonista, que encarna a figura do cowboy fora de seu tempo, trazendo-o para a nossa realidade.

Vemos Earl Stone, interpretado por Clint Eastwood no filme A Mula. Ele é um homem branco, idoso, de boné cinza, jaqueta bege e camiseta marrom.
Aos 91 anos, o diretor diz que retornou ao Cinema por não ter o que fazer em sua aposentadoria (Foto: Warner Bros.)

Assim, a imagem que a indústria construiu sobre Clint é desmistificada e dá lugar a um herói frágil, sensível e nada letal. Esta subversão do gênero acontece tanto na personalidade de Mike, quanto no enredo. Ao invés de utilizar a violência plástica nos embates, temos soluções simples como fugir, ou conversar, sem a bravura e os tiroteios atordoantes. O que desenvolve a história é o diálogo, impondo um ritmo lento e contemplativo. Até a imagem dos mexicanos é desmontada. Se, de início pareciam um povo hostil e desonesto – graças às rinhas de galo, capangas e bandidos -, depois se transformam em pessoas simples e generosas. 

É neste tipo de revisão que o gênero western sobrevive no Cinema atual. Tantas histórias de mesma temática foram contadas, que a indústria tem apostado em obras que subvertem ou dialogam com a linguagem própria do faroeste. Filmes como Bravura Indômita (2010) e Relatos do Mundo (2020) são exemplos de releituras mais sérias, que tratam o heroísmo com sobriedade. Quando não se desfazem da assinatura do gênero, estes filmes elevam os seus padrões ao exagero cômico, como o excelente A Balada de Busters Scruggs, dos irmãos Coen. 

Apesar de não ter um caráter inovador, Cry Macho: O Caminho para Redenção consegue despertar empatia e sua maior qualidade é a simplicidade. Sem reviravoltas surpreendentes, o enredo é despretensioso mas prioriza o desenvolvimento dos personagens. Além da lógica que orienta a narrativa e a forma como ela é contada: a ressignificação do conceito de masculinidade muitas vezes representado pela Sétima Arte.

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