As Pontes de Madison ou se a mágica pudesse ser vista

Francesca na ponte coberta Roseman (Foto: Amblin/Malpaso)

Gabriel Rodrigues de Mello

Um dos traços que pode definir a obra do cineasta Clint Eastwood é o eterno conflito interno. Se na maioria dos personagens que incorpora – em filmes seus ou não – o que fica a mostra é a autoconfiança exacerbada e o apreço por regras pessoais em detrimento às externas, o seu trabalho enquanto diretor, por outro lado, se ocupa de mostrar por dentro da estrutura que sustenta sua atitude perante a vida, revelando a natureza contraditória de seus valores que se renovam a cada filme.

Em As Pontes de Madison, lançado em 1995, adaptação literária que já teve até musical na Broadway, a estória começa com a reunião de dois irmãos, Caroline (Annie Corley) e Michael (Victor Slezak), após a morte de sua mãe Francesca (Meryl Streep). Ao lerem o testamento, se assustam com o seu último desejo: o de ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas de uma ponte histórica da região. A surpresa maior chega quando, lendo cartas antigas, descobrem que Francesca teve um caso com um fotógrafo da National Geographic chamado Robert Kincaid (Clint Eastwood). Uma das cartas é destinada aos filhos: “É difícil contar isto aos meus filhos, eu imagino que poderia deixar tudo isso morrer comigo. Mas quando se envelhece, o que se torna mais e mais importante é ser conhecido”.

Robert e o seu trabalho (Foto: Amblin/Malpaso)

Através dos diários da mãe, é revelado que, durante quatro dias em 1965, quando os irmãos tinham viajado com o pai, Richard (Jim Haynie), Francesca conhecera o fotógrafo que procurava por pontes cobertas para uma reportagem. Os longos trechos de flashback são interrompidos pela reação dos irmãos e é nesta dinâmica que se inicia o drama do filme. A resistência maior vem de Michael, que se sente traído e vê neste segredo a profanação da pureza materna. Para ambos, ocorre uma dissipação da figura habitual que tinham da mãe: um ser de infinito altruísmo, como se parasse de funcionar até que sua família retornasse e assim pudesse retomar todas as tarefas que fazem de uma casa um lar.

Esta transformação está estreitamente ligada ao que leva Robert ao condado de Madison: fotografar as pontes, isto é, torná-las dignas de contemplação, indo contra a concepção dos moradores da região, que pensam nelas apenas no seu significado prático, como a mãe que em sua vida “simplesmente fica imóvel para que seus filhos possam se movimentar”.

Os primeiros sinais do interesse de Francesca. (Foto: Amblin/Malpaso)

Se nota uma contradição análoga quando Francesca acompanha Robert até uma das pontes para mostrar o caminho. Na cena, ele toma distância para enquadrar a ponte enquanto ela, que caminha por dentro da construção, cede às primeiras fagulhas de desejo, entrevendo o fotógrafo por entre os vãos da madeira. É como se ela transitasse por dentro da ponte ao passo que o seu espírito recém-reanimado começasse a se agitar de dentro das paredes erguidas pelas décadas de vida familiar.

A primeira impressão de Michael de que o que aconteceu em 1965 foi uma transgressão exclusivamente cruel é contraposta pela amizade sincera que surge já no primeiro encontro entre os dois. Enquanto Francesca não consegue esconder os trejeitos ingênuos de alguém que interagiu pouco com outros homens, Robert jamais toma proveito disso: o interesse mútuo brota genuinamente de um fascínio pelo que é extraordinário. Um vive à base do que o outro rejeita e o fato de ambos serem francos lubrifica os trilhos que os levam a entender suas diferenças.

Os dois lados da moeda estadunidense: Francesca e sua casa, Robert e seu carro (Foto: Amblin/Malpaso)

Dito isso, os amantes representam dois dos principais tipos americanos. Opostos e, por isso, tão característicos da cultura do país. Francesca representa aquele habituado às raízes da tradição, que antes eram impostas e depois passaram a fundar uma intricada serenidade depois do casamento, “uma vida de detalhes” como ela própria narra. Já Robert é o andarilho guiado por ímpetos momentâneos, “um cidadão do mundo” semelhante àquele nas letras de Hank Williams: “Alguns podem dizer que eu não sou bom/ que eu não ‘pararia quieto’ nem se pudesse/ Mas quando aquela estrada aberta começa a me chamar/ existe algo além da montanha que preciso ver”.

Ainda que seja a história de Francesca, o filme se ocupa de expor o choque entre estes dois extremos do espectro cultural e dar valor à subsequente fragmentação de ambas perspectivas. O grande mérito de Eastwood aqui é o de trazer à vista os movimentos imperceptíveis do amor que fazem uma vida inteira se esvaziar de sentido e despertar em Francesca uma vaidade antiga e esquecida. Ao se apaixonar por Robert, as fronteiras do seu mundo se tornam turvas e, de repente, ela se sente como uma criança que com os pés no horizonte avista um outro mais longe.

Os trechos abaixo contém spoilers! Leia por sua conta e risco

Francesca na encruzilhada de sua vida. (Foto: Amblin/Malpaso)

No entanto, para Francesca, o que ocorre não é a vitória definitiva de um lado pelo outro. Desta posição sublime se põem dois caminhos. Um é o ligado à sua família: previsível e confortável; fundado na felicidade homeopática que se cultiva no dia-a-dia e, por isso, torna-se mais significativa ao passar do tempo. Já o outro é feito de um sentimento tangível e imediato, que permite ser inteiramente transportado às palavras, gestos e corpo de Robert. Agora com estes dois futuros tão nítidos, Francesca pela primeira vez encontra valor na sua independência e se ela recusa fugir junto à Robert é porque entende que o amor familiar não é menos misterioso e complexo que sua nova paixão. Já é tarde demais para apagar uma vida e começar outra. Não é a toa que o momento mais certeiro e representativo do filme é em uma das poucas falas de seu marido, que, antes de morrer, lamenta: “Querida, eu só queria dizer que eu sei que você teve seus sonhos. Desculpe se não pude realizá-los”.

A tragédia da estória é que Francesca não pôde compartilhar sua experiência mais valiosa. Só depois de sua morte a caixa de Pandora é aberta e, em vez de maldições, espalha-se a ânsia de viver, pois se torna conhecido o seu amor no estado mais ardente e, logo, a grandeza do sacrifício. Tanto que a revelação faz surgir em Caroline, Michael e, sobretudo, no espectador, uma irrefreável vontade de realinhar sua vida de acordo com seus sentimentos reais, que foram resgatados pela mãe em sua excursão por um campo sem regras, onde nascem desimpedidos. O tipo de sentimento que é tão debilitado pelo popular e automático modo de vida norteamericano.

“If you could see the magic
If you could see me too there
Would be nothing tragic in all
My dreams of you”

Deixe uma resposta