Os Melhores Filmes de 2022

Entre as múltiplas facetas de Jobu Topaki, a estrela Pearl e a singularidade da conchinha Marcel, 84 filmes apareceram no ranking de Melhores do Ano do Persona (Arte: Nathália Mendes/Texto de abertura: Vitória Gomez)

A trajetória de retomada dos eventos presenciais consolidou-se em 2022. Na recuperação do pós-pandemia da covid-19 – que não nos deixou, mas, em um alívio, permitiu o relaxamento de algumas medidas de proteção -, o Cinema viu seus ávidos fãs retornarem às salas de forma irrestrita. Desde o Oscar até a 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, os eventos da indústria cinematográfica internacional e brasileira também abraçaram a possibilidade da realização totalmente presencial, e deram alento àqueles que encontram conforto na pipoca quentinha e nas subidas rumo às poltronas aveludadas. 

Apenas no primeiro semestre do ano passado, o número de pessoas que compareceu aos cinemas presencialmente foi maior do que o contabilizado em 2021 inteiro, segundo levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Apesar do retorno seguir lento e gradual, com expectativa de voltar a níveis normais e continuar a crescer em 2023, o restabelecimento do hábito também se refletiu no Melhores Filmes de 2022. Das 84 produções citadas no tradicional ranking anual do Persona, que reúne membros da Editoria e colaboradores, 42 estrearam ou passaram pelos circuitos brasileiros. Após um ano em que os streamings dominaram os grandes lançamentos, o cenário volta a se reequilibrar.

A união das redes de cinema às plataformas, porém, garantiu a diversidade da programação de 2022. A animação Pinóquio de Guillermo del Toro, o whodunnit Glass Onion: Um Mistério Knives Out, e os dramas Nada de Novo no Front, da Alemanha, e Argentina, 1985, da Argentina, foram alguns dos destacados pelos colaboradores, que os assistiram exclusivamente nos formatos digitais. Já os campeões de menções desse ranking, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo e Marte Um, estrearam nos cinemas e levaram os espectadores às salas.

Diferentemente do que aconteceu com lançamentos anteriores, a presença opressiva de grandes empresas, como Marvel e Disney, foi obrigada a dividir sua programação com produções mais diversas. Apesar de Batman, Pantera Negra: Wakanda Para Sempre e Doutor Estranho no Multiverso da Loucura conseguirem suas menções, foi o independente Aftersun que não saiu de cartaz (até o momento desta publicação), ultrapassando três meses nos cinemas nacionais. O sensível primeiro longa-metragem da diretora irlandesa Charlotte Wells aborda uma relação entre pai e filha, e chegou ao Brasil pela 46ª Mostra de SP.

Os gêneros das produções também refletiram diversidade. Os filmes de super-heróis tiveram sua vez e os de aventura também – Avatar: O Caminho da Água e Gato de Botas 2: O Último Pedido receberam boas indicações -, mas foram as produções de Terror que marcaram 2022. Com alguns ganhando grandes lançamentos no Cinema, como foi o caso de Pânico 5 e O Telefone Preto, e outros não surpreendentemente deixados de lado, como X – A Marca da Morte, Aterrorizante 2, Pearl, Até os ossos e Morte Morte Morte, as obras de gênero mereceram 15 nomeações como Melhores do Ano.

Elevando o número em relação ao ano passado, as produções dirigidas ou co-dirigidas por mulheres alcançaram a marca de 20 indicações – menos de ¼ do total. Já nas obras nacionais, a quantidade foi ainda mais negativa: dos 84 filmes citados, apenas 6 eram brasileiros, com destaques como Carvão, Regra 34, Eduardo e Mônica e A Mãe. Ao todo, foram citadas obras de 17 diferentes idiomas e nacionalidades.

E falando em nomeações, 22 títulos indicados ao Oscar 2023 também apareceram no ranking. Da categoria de Melhor Filme, que inclui apenas uma mulher indicada, apenas Entre Mulheres e Triângulo da Tristeza não foram mencionados aqui. Os Fabelmans, Elvis, Top Gun: Maverick e Os Banshees de Inisherin receberam múltiplas indicações. No Melhores Filmes de 2022 do Persona, você confere todas as obras destacadas pela nossa Editoria e colaboradores.


Se tem alguém que merece destaque por melhor atuação do ano, esse alguém é Brendan Fraser (Foto: A24)

A Baleia (The Whale)

Somente quem é pai sabe quais são os verdadeiros obstáculos da paternidade e o filme A Baleia, roteirizado pelo escritor Samuel D. Hunter, cumpre bem esse brilhante trabalho. Neste drama psicológico, acompanhamos de perto a fragilidade de um pai que tenta se reconectar com a filha. Enfrentando problemas graves de saúde física e mental, Charlie (Brendan Fraser) é um professor de inglês que enfrenta cada dia como se fosse o último, em uma luta diária entre arrependimentos e manutenção de uma auto-estima completamente abalada. A única forma que ele encontra de mascarar seus problemas é através da compulsão alimentar, tópico bastante ressaltado na narrativa.

O trabalho de Samuel Hunter não é apenas voltado ao clichê ‘pai e filha que buscam uma reconciliação’. Neste drama, a história é centrada na profundidade que atravessa aquilo que é aparente. Os conflitos pessoais do protagonista fazem parte disso. Nas dificuldades que envolvem temáticas super sensíveis, mas nem sempre amplamente discutidas em nossa sociedade, como arrependimento, autodestruição, compulsão alimentar, paternidade e depressão. Como aflorar uma relação íntima e afetuosa que nunca existiu, de uma hora pra outra? Esse é o “x” da questão que permeia The Whale, que contou com a premiada atuação de Fraser e a excelente direção Darren Aronofsky.

Cotado pela crítica como candidato favorito ao Oscar de Melhor Ator, Brendan Fraser se destaca nessa obra para ter um merecido reconhecimento profissional. Ele, que revelou ter enfrentado problemas relacionados à depressão e assédio, avaliou que o papel de Charlie pode ser visto como um grande exemplo de superação para pessoas que passam por grandes traumas. – Gabriel Gomes Santana


Cena do filme A Fera do Mar. Um homem loiro com roupas velhas encara uma menina de cabelos cacheados. Ela tem uma espada em sua mão e faz um gesto oferecendo ao homem. Estão em pé numa praia de areia cor de rosa e matagal verde.]
Alguns nomes do elenco de A Fera do Mar são Karl Urban, dublando o protagonista Jacob Holland, e Jared Harris, a voz do Capitão Augustus Crow (Foto: Netflix)

A Fera do Mar (The Sea Beast)

A Fera do Mar nos faz perceber como ser sábio independe da idade, e que se pode aprender algo com qualquer situação ou pessoa. O filme é uma narrativa fluida e bastante rápida, ideal para dias em que se quer assistir algo leve, mas não tão banal. A animação carrega uma identidade genérica, mas há uma arte única no design das Feras, o que é um ponto alto no filme. Pode-se perceber o esforço dos artistas. Porém, depois de tantas animações da Disney preenchendo nossas vidas, em especial as em 3D, é difícil não pensar que há a tentativa de se equiparar a estas: não apenas há pontos em comum na estética, mas na narrativa, no desfecho e na complexidade das personagens. 

Ainda que hajam pontos que os distanciam, como a abordagem a certos preconceitos, coisa que a Disney não faz com frequência, há muito em comum. Mas as perguntas certas são: ela consegue nos transportar para aquele universo? E, se tem uma mensagem, ela é acessível à plateia? Nesse caso, sim. A Fera do Mar cria com sucesso seu próprio universo. Suas personagens reforçam os pensamentos de lá e tornam críveis a problemática a ser resolvida. A mensagem também é bem captada, mas o desfecho é genérico e pode entediar alguns espectadores. – Izadora Azevedo Albertini 


A Mãe passou por festivais internacionais, estreou no Brasil no Festival de Gramado e foi exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: CUP Filmes)

A Mãe

A força da figura materna é inspiradora. De histórias que as enaltecem a outras que tomam a maternidade como causalidade dos por quês de uma vida, as mães da ficção e da realidade movem produções. Batizado em homenagem à sua figura central, A Mãe traça o dia a dia de Maria (Marcélia Cartaxo) depois do desaparecimento do filho, Valdo (Dunstin Farias). O desespero e a tormenta da mãe das telas se estende para o espectador: a trama é angustiante no que os principais suspeitos pelo sumiço do jovem são os policiais locais – ainda mais atormentador é saber que a realidade não anda longe da ficção.

Na pele de Maria, Cartaxo entrega uma performance excruciante. Ela bate de porta em porta e roda as secretarias de desaparecidos e delegacias em busca do filho, sem sucesso. Moradora do bairro Jardim Romano, periferia de São Paulo, a presença opressiva da polícia torna os dias de ausência de Valdo um motivo de angústia ainda maior: a quem a Mãe recorre é justamente o responsável pelo sumiço do filho. Não há esperança para A Mãe. – Vitória Gomez


Infância, família e descobertas dolorosas: essa é a trama retratada em A Menina Silenciosa (Foto: Inscéal)

A Menina Silenciosa  (The Quiet Girl)

Sair da casa dos pais nunca é uma tarefa fácil, quem dirá para uma garota introvertida de nove anos de idade. Este é o drama retratado em A Menina Silenciosa, longa irlandês dirigido por Colm Bairéad que aborda a vida de Cait, uma criança extremamente observadora, inteligente e carente psicologicamente. A vida da personagem é intensa sob todos os aspectos, sobretudo, no momento em que é transferida para a casa de familiares que possuem melhores condições de renda. Escolhida para ser a protagonista do filme, a jovem atriz Catherine Clinch, de apenas 12 anos, demonstra um desempenho surpreendente neste que é seu primeiro trabalho no Cinema.

Uma narrativa que explora o início dos anos 1980, costumes conservadores e particularidades um tanto quanto tenebrosas da época são reveladas neste filme, que concorre ao prêmio de Melhor Filme Internacional no Oscar 2023. Essa é a primeira vez que um longa-metragem de língua irlandesa foi prestigiado no Festival de Berlim de 2022, sendo vencedor do Grande Prêmio do Júri Internacional da mostra Geração Kplus. – Gabriel Gomes Santana


Cena do filme A Mulher Rei (2022), Nanisca (Viola Davis), vestida com um top e uma saia em tons de verde, sai com seu grupo de guerreiras de um matagal. Estão todas armadas de facões e adornadas com colares e braceletes típicos
Viola Davis traz toda sua força em um filme de ação épico (Foto: Sony Pictures)

A Mulher Rei (The Woman King)

Em A Mulher Rei, um dos mais poderosos reinos africanos, Daomé, possuía um destacamento militar inteiramente feminino – as poderosas Agojielideradas pela lendária general Nanisca, interpretada por ninguém menos que a multi-premiada Viola Davis. As guerreiras enfrentam uma guerra com o reino vizinho, o Império de Oyó, motivadas em acabar com o tráfico de pessoas escravizadas, financiado pelos países europeus. Cabe à general treinar as novas recrutas para garantir a independência da nação.

A Mulher Rei é um super épico! Dirigido por Gina Prince-Bythewood e protagonizado quase exclusivamente por mulheres negras, o que infelizmente ainda não é comum nos filmes de ação, o filme entrega combates e lutas eletrizantes e uma carga emocional arrebatadora. O longa não só nos prende como nos faz desejar por muito mais a cada minuto. Tudo isso, com um comentário político discreto, porém importante, que nos leva à reflexão sobre o imperialismo.  – Guilherme Dias Siqueira


Cena do filme a voz do empoderamento, na imagem Gangubai olha diretamente para sua frente. Gangubai tem a pele branca, seus cabelos estão presos despretensiosamente e são ondulados de tons castanho escuro, veste uma blusa rosa clara, sári branco com flores, piercing no nariz e bindi vermelho em sua testa. Ao fundo, meninas indianas com cabelos trançados e laços vermelhos na ponta, camiseta branca e vestido cinza por cima.
A atuação de Alia Bhatt, a fotografia e beleza da história de Gangubai encanta o público (Foto: Netflix)

A Voz do Empoderamento (Gangubai Kathiawadi)

Gangubai Kathiawadi não é um daqueles filmes que arrecadou milhões em bilheterias ou que ficou conhecido mundialmente, mas essa produção indiana não precisa disso para provar seu valor. Baseada na história da protagonista homônima, a narrativa apresenta Gangubai (Alia Bhatt), uma mulher que, em sua juventude, foi enganada e vendida para ser prostituta. Mas a vida de Gangu não se limita a seu sofrimento. Contrariando todas as expectativas, ela se mostra forte e destemida, garantindo que nenhuma outra injustiça a aflija.

A fotografia de Sudeep Chatterjee é digna do Oscar e as cenas em que Kamli (Indira Tiwari) morre, o casamento e o desfile final chegam próximas da perfeição. Sanjay Leela Bhansali dirige a obra com maestria e fluidez, dando a dose exata de sentimentalismo e realidade nos momentos devidos, além da implementação das canções e cenas de dança, com coreografias elaboradas e figurinos impecáveis. A cereja do bolo é atuação de Alia Bhatt, que faz você se apaixonar por cada respirar de Gangubai. – Thuani Barbosa


Cena do filme Abracadabra 2. Imagem horizontalmente retangular. Ao fundo, vemos uma pintura representando um cemitério, feita principalmente em tons de azul, roxo e verde. À frente, vemos, da esquerda para a direita, as personagens Mary Sanderson, Winifred Sanderson e Sarah Sanderson. O trio está virado para o lado esquerdo da imagem e bate palmas com os braços para cima. As personagens usam vestidos que remetem ao século dezessete. Mary tem cabelo preto, Winifred tem cabelo ruivo e Sarah tem cabelo loiro.
Segundo o Disney+, Abracadabra 2 foi a maior estreia de um filme na plataforma (Foto: Matt Kennedy)

Abracadabra 2 (Hocus Pocus 2)

De um jeito ou de outro, nós vamos te encontrar/Nós vamos te pegar”. Interpretando com muito brilho o hit One Way or Another, da banda norte-americana Blondie, as Irmãs Sanderson mostraram ter mais poder do que nunca no retorno triunfante de Abracadabra às telinhas mundiais. Agora protagonistas de Abracadabra 2, Winifred, Mary e Sarah se aventuram em uma espécie de filme-nostalgia, cujo objetivo principal é alegrar os fãs que sempre sonharam com uma continuação do longa de 1993.       

Sem buscar e – talvez, por isso mesmo – sem conseguir superar a obra original, Abracadabra 2 diverte o público ao reunir inúmeras referências ao filme de Kenny Ortega, mesmo que isso dê origem a uma continuação beirando a superficialidade. A verdade é que assistir a Bette Midler, Kathy Najimy e Sarah Jessica Parker revivendo um dos trios de bruxas mais queridos de todos os tempos faz qualquer um vibrar. E é esse constante movimento de resgate, presente nos mínimos detalhes do longa de 2022, que faz com que Abracadabra 2 seja uma excelente escolha para quem quer um entretenimento leve e nostálgico. – Eduardo Rota Hilário


Com Paul Mescal indicado ao Oscar de Melhor Ator, Aftersun venceu o British Independent Film Award, o BAFTA e o DGA de Melhor Direção Estreante; e levou o Troféu Bandeira Paulista de Melhor Filme na 46ª Mostra de SP (Foto: MUBI)

Aftersun

Não é difícil perceber que, no cenário audiovisual contemporâneo, as composições foram dominadas pela reprodução de um passado nostálgico. Nessa situação, existem méritos e riscos, como tudo que envolve alguma contemplação estética. Aftersun, porém, fica distante o suficiente dos moldes amplamente vendidos pela indústria, podendo ser caracterizado no melhor “Cinema de estilo”, cuja marca é uma característica lentidão. Sem pressa, a diretora Charlotte Wells não se rende às formas básicas que a nostalgia pode oferecer, e cria um trabalho seguro, profundo e emocionalmente fascinante, marcado pelas grandes atuações de Paul Mescal e Frank Corio.

Sem se restringir a trama e expandindo as compreensões do filme aos seus sentidos fora do roteiro, o longa-metragem de estreia da escocesa é um clássico instantâneo. Wells sabe exatamente o que está fazendo e, nesse trabalho com raízes pessoais, mistura contextos de fragmentação das personagens às sequências “tradicionais” das cenas. A relação de Sophie (Corio) com seu pai, Calum (Mescal) – ambos em viagem de férias pela Turquia –, ganha contornos quase investigativos, quando, a certa altura, percebemos que toda a trama é vista por uma Sophie já adulta, que rememora com certa lamentação a morte do pai; a viagem havia sido um dos últimos momentos juntos. O trabalho se reveste ainda mais de metalinguagem quando lembramos que a “verdadeira” Sophie é quem dirige o longa.

À primeira vista, Aftersun parece um coming of age sobre o tradicional perigo do amadurecimento. Contudo, através das lentas transições, percebemos que Calum, tanto quanto Sophie, é protagonista da história. Ele é um pai jovem (a mãe, embora não apareça, faz uma ligação em certa altura do filme, evidenciando sua voz igualmente jovem), que se divide entre transmitir as melhores sensações à filha e lutar contra os seus próprios demônios. Enquanto Sophie encara a chegada da adolescência (ela parece ansiar por um envelhecimento acelerado), Calum lida com a solidão da vida adulta. Em algum lugar, em meio a uma tensão que parece fugir da resolução, Aftersun se consolida na percepção de que, enquanto tentavam dar sentido a uma nova vida sob seus cuidados, pais e mães também estavam, eles próprios, amadurecendo. – Bruno Andrade


Cena do filme Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore apresenta a atriz Maria Fernando Cândido em plano central da imagem, uma mulher branca, de cabelos castanhos preso, com expressões severas, usando um vestido laranja e apontando a varinha, que emite uma luz branca, em direção a câmera. O funco da foto apresenta um paredão de pedra.
Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore não revela grandes mistérios, mas serve como entretenimento (Foto: Prime Video)

Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore (Fantastic Beasts: The Secrets of Dumbledore)

A história do mundo bruxo não acabou com o Harry destruindo as Relíquias da Morte e muito menos começou com o bruxinho recebendo sua carta para estudar em Hogwarts. Esses eventos vêm sendo apresentados pouco a pouco em Animais Fantástico, que, após uma longa espera de quatro anos, retornou para revelar Os Segredos de Dumbledore. Na verdade, a homossexualidade do diretor da escola de maágia já não era mistério para senhum fã da série, porém essa foi a primeira vez em que a temática foi abordada abertamente na história.

Dessa vez, Newt Scamander (Eddie Redmayne), autor do livro Animais Fantásticos e Onde Habitam que deu o pontapé inicial no primeiro filme, ocupa o lugar de coadjuvante, para Dumbledore (Jude Law) e Grindelwald (Mads Mikkelsen) desenvolverem sua relação de amor e ódio, centrada na Alemanha e no Butão. Ainda assim, sobrou espaço para a renomada atriz Maria Fernando Cândido fazer papel de figurante como Vicência Souza. Gabriel Gatti


Imagem retangular horizontal do filme Argentina, 1985. A imagem mostra um grupo de pessoas posicionado ao redor de uma mesa em um escritório. São onze pessoas, todas latinas, quatro delas são mulheres, apenas três são mais velhos.
A equipe de defensoria pública que auxiliou o promotor Strassera tinha jovens advogados, um professor universitário de família militar e um dramaturgo (Foto: Amazon Prime)

Argentina, 1985

Nenhum país ousou levar ditadores à justiça. Ou nenhum país ousou processar seus militares por seus crimes? Até que o promotor Julio Strassera (Ricardo Darín) e seu vice Moreno Ocampo (Peter Lanzani) o fazem, mas a justiça é amarga. Argentina, 1985 compartilha friamente como a ditadura militar argentina, vigente de 1976 a 1983, foi uma das mais violentas na história. É pelos relatos das vítimas ou de parentes das que seguem desaparecidas, feitos durante o julgamento do alto escalão militar, que conhecemos a verdade sangrenta. E com um nó na garganta, ouvimos a súplica de Strassera: Quero utilizar uma frase que não me pertence, porque pertence a todo o povo argentino. Senhores juízes, nunca mais

A obra do diretor Santiago Mitre, que também escreveu o longa ao lado de Mariano Llinás, é dura, sem inovar em seu formato. Mas isso é essencial: manter Argentina, 1985 nos elementos tradicionais do Cinema e permitir sua flutuação entre drama e fato documentado foi o que assegurou uma ótima condução da narrativa. Com o Globo de Ouro e o Prêmio da Crítica do Festival de Veneza em mãos, resta a torcida para que a dolorosa história de nossos companheiros latinos seja, de fato, enxergada mundo afora e merecidamente agraciada com o Oscar de Melhor Filme Internacional neste ano. – Nathália Mendes


Close de cena do filme As Linhas Tortas de Deus. Uma mulher loira olha para o horizonte, seu corpo parcialmente virado para o observador. Atrás dela, uma parede com fotos de jornal e linhas vermelhas conectando diferentes pontos das fotos.]
As Linhas Tortas de Deus foi inspirado no livro que carrega nuances filosóficas e espirituais sobre as pessoas (Foto: Netflix)

As Linhas Tortas de Deus (Los Renglones Torcidos de Dios)

As Linhas Tortas de Deus é um filme que promete e engana, mas surpreende. O mistério, que se passa na década de 1960, tenta se equiparar a Ilha do Medo – não consegue, apesar de criar uma identidade própria. A narrativa começa muito clara: uma detetive se infiltra numa instituição mental para descobrir o caso de um possível homicídio tido como suicídio. Ela é deixada na instituição pelo homem interessado no desenrolar do caso, o suposto pai da vítima. A personagem parece sã durante boa parte da história, o que nos intriga são as possibilidades: ela estaria louca ou não?

O filme nos engana diversas vezes, sendo um bom divertimento para o raciocínio. A audiência banca o próprio papel de detetive durante o longa. Quais as pontas soltas que a detetive não percebe e deixam espaço para sua possível loucura? O que reafirma que ela não está louca? Foi mesmo um suicídio? Quem realmente é o pai da vítima? São todas indagações pertinentes. Alguns vão adorar, outros vão se decepcionar. – Izadora Azevedo Albertini 


Cena do filme Assassino Sem Rastro, Alex, (Liam Neeson), homem branco de cabelos grisalhos, veste um casaco marrom claro e um relógio preto, aponta uma pistola com um silenciador na ponta
Liam John Neeson fez 70 anos em 2022 (Foto: Prime Video)

Assassino Sem Rastro (Memory)

Typecasting  é o nome que se dá a atores que se vêem muito relacionados a um tipo específico de papel, para um tipo específico de filme. Para alguns, isso pode soar repetitivo e maçante, mas Liam Neeson (Busca Implacável) cabe como uma luva no papel do assassino Alex Lewis, em Assassino Sem Rastro. Na história, o personagem, prestes a se aposentar, recusa um último trabalho: assassinar uma garota que serviria de testemunha em um caso de exploração infantil.

Martin Campbell (O Estrangeiro) também trabalha muito bem no tipo de trama em que está acostumado a dirigir – mistérios envolventes, conspirações envolvendo milionários, políticos e autoridades policiais. O longa ainda dá espaço a discussões sobre o fim da vida, a moralidade policial e o fato de Alex sofrer de um  Alzheimer progressivo torna tudo mais intrigante. – Guilherme Dias Siqueira


Cena do filme Até os Ossos. Na imagem temos o personagem Lee, interpretado por Timothée Chalamet, um jovem branco, magro e de cabelos castanhos encaracolados com mechas na cor rosa. Vestindo uma camiseta rosa com detalhes brancos e uma bermuda jeans. Ao lado dele temos Maren Yearly, interpretada por Taylor Russell, uma jovem negra de cabelos ondulados na cor preta, vestindo uma blusa branca e uma saia jeans. Ambos estão sentados nas montanhas, enquanto observam o pôr do sol.
Aclamado pelo Festival de Veneza, Até os Ossos presenteia a plateia com enquadramentos angustiantes e frágeis sobre o amadurecimento (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer)

Até os Ossos (Bones and All)

Não é novidade o sucesso de Luca Guadagnino em relatar histórias sobre a juventude e todas as indagações que esse período proporciona. Guadagnino é um exemplo de diretor que dispõe desse olhar poético sobre o amadurecimento, de forma que todas as comoções direcionadas aos personagens também são conduzidas ao público – como apresentado no filme Call Me By Your Name (2017) e no seriado We Are Who We Are (2020). Em Até os Ossos, o cineasta retorna com essa característica marcante de suas obras, e a renova com um toque de terror e visceralidade. 

Após ser abandonada pelo pai, Maren Yearly (Taylor Russell) perpassa por um vagaroso trajeto de encontros e desencontros em busca de pertencimento e de compreensão sobre sua própria identidade. Em meio a essa agitação, conhece Lee (Timothée Chalamet), jovem também deixado à margem pela sociedade e que guarda da mesma condição conflituosa de Maren, o incessante desejo de provar carne humana. A adaptação do romance de Camille DeAngelis é exorbitante e bem aventurada pelo diretor, que opera o longa-metragem através do clássico gênero road movie. Na vertente, o excurso dos personagens em encontrar conforto na normalidade em meio às suas circunstâncias, reverbera-se para uma linda e trágica história de amor. – Ludmila Henrique


Cena do filme Aterrorizante 2 que mostra o personagem Art, um palhaço de rosto branco, boca, sobrancelha e olhos desenhados com maquiagem preta, e boca sangrenta, que veste uma roupa preta e branca, um pequeno chapéu preto e luvas brancas. Ele sorri e está apoiado sobre o batente da janela de um trailer.
O palhaço macabro interpretado por David Howard Thornton é o primeiro papel do ator no Cinema; ele que se inspirou em seus trabalhos anteriores como mímico (Foto: Dark Age Cinema)

Aterrorizante 2 (Terrifier 2)

A sequência do experimental Aterrorizante (2016), tão aguardada pelos fãs de slashers de baixo orçamento, marca o retorno do maníaco Art, o palhaço assassino. O filme de Damien Leone, que custou pouco mais do que 250 mil dólares, rompeu as barreiras do nicho e foi um grande sucesso de bilheteria, majoritariamente graças ao marketing orgânico de relatos de pessoas desavisadas vomitando, abandonando as salas de cinema e até desmaiando durante as sessões.

O espetáculo da atuação de David Howard Thornton, que interpreta Art, o palhaço, junto dos magníficos efeitos práticos são os grandes destaques no turbilhão de longas cenas sádicas, chocantes e apelativas de violência extrema e gratuita. Apesar de marcar um grande avanço em relação ao seu antecessor, o roteiro, novamente idealizado e escrito por Damien Leone, ainda se perde em pontas soltas: a falta de consistência na lore e a misoginia presente na obra deixam um gosto agridoce durante a diversão macabra. A duração exagerada do longa, que possui 138 minutos, também não ajuda na experiência do espectador, visto que o filme se perde em um limbo de cenas repetitivas, maçantes e sem função clara. – Bruno Alvarenga


Cena do filme Avatar. Na imagem, aparecem dois habitantes de Pandora, planeta pertencente ao universo de Avatar. Neytiri e Jake Sully, dois Na'Vi, estão de pé observando o oceano de Pandora, local de águas cristalinas, rodeado de uma vegetação bastante verde e algumas poucas flores. Existem vários rochedos espelhados pela área.
Na nova sequência de Avatar, James Cameron comprova que seu domínio técnico ainda não atingiu um limite máximo: mergulhamos ainda mais no universo 3D (Foto: Disney)

Avatar: O Caminho da Água (Avatar The Way of Water)

Ao se tornar a maior bilheteria do mundo e revolucionar a história do Cinema, Avatar criou ao redor de si um imaginário exigente e com grande expectativa pela sequência. 13 anos depois, James Cameron retornou a primeira (de quatro) sequências planejadas para as histórias de Pandora. O deslumbre visual que se pode ter com o filme é inenarrável: elevando o nível de perfeição técnica do projeto, após desbravar as florestas e animais do universo criado, Cameron mergulha no universo marítimo com filmagens que utilizavam atores reais que permaneciam nas águas por tempo suficiente para a gravação se tornar fluida.

Nessa nova sequência, muitos anos se passaram desde que Jake Sully (Sam Worthington) e Neytiri (Zoë Saldaña) derrotaram as forças do Povo do Céu (Terra) e expulsaram os colonizadores de Pandora. O casal, vivendo em paz com seus quatro filhos no clã Omatakayas, só não aguardava uma segunda invasão, de poder bélico muito maior que a original, botando em risco a vida dos Na’vi. Com tamanha ameaça, eles decidem ir pedir abrigo aos Metkayina, um clã aquático dos oceanos de Pandora. Com três horas de duração, a história é uma experiência visual, de encher os olhos com tamanho detalhismo e mágica presente no universo. O roteiro (feito por James Cameron em parceria com Rick Jaffa e Amanda Silver), no entanto, fica para trás, raso, não indo muito além do que já fora tratado no primeiro filme da franquia.  – Aryadne Xavier


Margot Robbie brilha em Babilônia como Nellie LaRoy, uma personificação de Hollywood em seus lados mais belos e obscuros (Foto: Paramount)

Babilônia (Babylon)

Aos 76 anos, Steven Spielberg (Amor, Sublime Amor e E.T.: O Extraterrestre) lançou em 2022 uma carta de amor ao Cinema com o seu autobiográfico e belíssimo Os Fabelmans. Aos 38, Damien Chazelle também lançou no mesmo ano a sua carta de amor, só que um pouco mais cínica e pessimista com Babilônia, filme que divide opiniões hoje, mas será redescoberto no futuro pela maneira como faz do Cinema seu motor principal e Hollywood, sua protagonista. Ambos são próximos, mas ao mesmo tempo completamente diferentes um do outro.  

Em Babylon, a Sétima Arte é fruto da colaboração intensa de diferentes pessoas, enquanto Hollywood é um lugar que explora as camadas mais vulneráveis dos colaboradores, como o imigrante mexicano Manny (Diego Calva, de Narcos: México), a dançarina amarela Lady Fai Zhu (Li Jun Li, de Quantico) e o músico negro Sidney Palmer (Jovan Adepo, de Um Limite Entre Nós). As custas dessas pessoas, a indústria cultua a excelência individual, vide o star power do Jack Conrad de Brad Pitt (Era uma Vez em Hollywood) e a Nellie LaRoy de Margot Robbie (Eu, Tonya). 

No fazer cinematográfico, existe a beleza das imagens capturadas pela cinematografia efervescente de Linus Sandgren (007: Sem Tempo para Morrer); mas também o caos, a sujeira e o hedonismo da máquina hollywoodiana, bem representados na intensa e energética festa que abre o longa, ao som da trilha sonora magistral de Justin Hurwitz (O Primeiro Homem). O Cinema avança, enquanto a fábrica de sonhos decai, juntamente com suas principais figuras. Quando chegamos aos minutos finais, nos quais somos confrontados com a justaposição desses dois caminhos, só nos resta levantar e aplaudir Chazelle por nos ter entregue mais um grande trabalho, depois de uma filmografia de futuros clássicos como Whiplash e La La Land– Nathan Nunes


Cena do filme Batman. A foto é retangular. A imagem mostra o protagonista, Batman, do peito para cima. Ele está no canto direito e de meio-perfil, com o corpo também voltado para o lado direito. Ele usa um traje preto que consiste em uma armadura emborrachada com um símbolo de morcego no peito, uma capa preta e uma máscara com orelhas pontudas no topo da cabeça, que cobre parcialmente seu rosto deixando a mostra apenas seus olhos e a região do maxilar e boca. Batman é interpretado por Robert Pattinson, um homem branco, alto, com traços do rosto marcantes e angulados. A imagem está escurecida, o personagem está em uma sala fechada e, ao fundo, é possível ver uma parede com colagens de jornal e “LIES” (mentiras, em inglês) escrito em vermelho sobre os recortes.
As representações notáveis de Pattinson e de Zoë Kravitz como Mulher-Gato evidenciam a escolha certeira de elenco de Cindy Tolan para Batman (Foto: Warner Bros.)

Batman

Dois anos na noite o transformaram num animal noturno”. Revelando-se das sombras, um dos heróis mais queridos e famosos já criados ganhou sua mais nova versão para os cinemas logo no começo de 2022. Sob muitas expectativas, o diretor Matt Reeves reinventou o vigilante da DC Comics nos longa-metragens, baseando-se em referências excelentes das HQs, como a clássica Batman: O Longo Dia das Bruxas e Batman: Ano Um. Com um bom e interessante roteiro, também de Reeves, junto de Peter Graig, somado à atuação do talentoso Robert Pattinson, o resultado são quase três horas de uma narrativa investigativa que, sem abandonar a ação, explora uma faceta extremamente sombria de um herói em ascensão.

Todos os aspectos técnicos – desde os cenários chuvosos, apáticos e cinzentos de Lee Sandales, até a impecável fotografia de Greig Fraser – conversam com esta abordagem obscura do Batman e de Gotham. Ao vestir seu traje de morcego, Bruce Wayne revela sua real essência. Ele é temido, fechado, frio e imponente. Mas ainda é extremamente cativante e hipnotizante vê-lo agir como um detetive, enquanto, simultaneamente, descobre como é capaz de atrair e instigar vilões únicos. Um show visual, The Batman foi indicado a categorias como Melhores Efeitos Visuais e Melhor Maquiagem e Penteados no Oscar 2023. Já no British Academy Film Awards (BAFTA), o longa concorre a Melhor Design de Produção, Melhor Cabelo e Maquiagem, Melhor Cinematografia e Melhores Efeitos Visuais. – Mariana Nicastro


Cena de divulgação do filme Bigbug. Sete humanos, um humanoide e três andróides com roupas de diferentes cores, porém todas em tons vivos, estão presos numa cúpula sob uma mesa de madeira. Olhos azuis sinistros os observam do lado de fora.]
Jean-Pierre Jeunet também dirigiu longas como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, que mostra sua linguagem dramática única (Foto: Netflix)

Bigbug 

Bigbug começa despretensiosamente, mas seu desfecho surpreende pela atitude das personagens. O chamariz da comédia sombria é a identidade visual da obra, assim como o tom satírico e sombrio que consegue, apesar disso, ser adotado de forma leve e cômica pelo diretor Jean-Pierre Jeunet. A narrativa segue pessoas em uma quarentena forçada, que encontram empecilhos durante seu período em lockdown. O grande diferencial, no entanto, é o cenário, por se passar em um futuro em que nossa dependência sob as máquinas é extrema e nossas casas são inteligentes, ditando a temperatura do ar-condicionado, a abertura de nossas cortinas e portas, e até quem entra e sai. A partir daí, é perceptível o flerte com o autoritarismo.

O maior feito da obra é nos dimensionar naquela realidade. Há um trabalho rico de efeitos visuais que nos transporta para dentro da atmosfera da obra. Contudo, além dos efeitos visuais, outra coisa que nos faz entrar naquela realidade é o comportamento e a cultura das personagens. Podemos traçar muitos paralelos com eles e nos identificar naquele universo, mas além disso, percebemos as diferenças, ou seja, os opostos ao nosso universo, bem como seus extremos. Seria esse extremismo de Bigbug uma possibilidade num futuro remoto? Não há dúvidas de que nossa Era Digital só dá cada vez mais força às máquinas, que, apesar de extremamente inteligentes, podem também ser estúpidas. – Izadora Azevedo Albertini 


Cena do filme Blonde. Na imagem, Ana de Armas, que interpreta Marilyn Monroe, é uma mulher branca e loira. Ela está dentro de um carro ao lado de Arthur Miller, interpretado por Adrien Brody, um homem branco mais velho que usa um terno e um óculos.
Ana de Armas brilha em Blonde, apesar das polêmicas ao redor da produção (Foto: Netflix)

Blonde

Não há como mensurar o valor ícone de Marilyn Monroe, ainda mais representá-lo – mas Blonde é uma boa tentativa. Embora a maior crítica ao filme seja o exacerbado sofrimento da loira, este é um de seus pontos altos, se deixarmos de lado seu caráter biográfico e tomarmos como uma ficção que trata dos desprazeres da fama e exposição. Isso fora a estupenda atuação de Ana de Armas, que interpreta com imensa minuciosidade a personalidade de Marilyn e não à toa foi indicada ao Oscar 2023 de Melhor Atriz.

Inspirado no livro de mesmo nome, escrito por Joyce Carol Oates, Blonde teve seu roteiro adaptado e dirigido pelo problemático Andrew Dominik. Seu comprometimento em fazer a loirinha sofrer é tanto que muitas vezes a produção tem tons de terror e suspense pelas longas quase três horas de duração. Porém, se prestarmos atenção na esplêndida fotografia de Chayse Irvin, o tempo passa rápido. – Arthur Caires


Cena do filme Carvão. Na imagem está Irene, interpretada por Maeve Jinkings. Irene é uma mulher não branca de cabelos castanhos e cacheados, ela está com os cabelos presos sob um boné laranja e veste uma camiseta vermelha com detalhes brancos. Ela está segurando uma galinha para abate. Ao fundo há alguns entulhos, chão de terra e uma cerca de madeira.
Carvão foi um dos pré selecionados do Brasil para o Oscar 2023 e fez parte da seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Pandora Filmes)

Carvão

Entre as faíscas brilhantes da indústria cinematográfica nacional, Carvão é o tipo de narrativa que usa tons disruptivos para figurar a verdade sobre a sociedade brasileira. A produção, dirigida por Carolina Markowicz, nos leva para um núcleo familiar com uma vida atribulada e cheia de falso moralismo. Enquanto nos revela os lados sombrios dos personagens, o roteiro, também escrito pela diretora, desmonta as imagens do tradicionalismo. Sob o olhar dos protagonistas Irene (Maeve Jinkings), Jean (Jean Costa) e Jairo (Rômulo Braga), vemos como tudo tem um preço: a se cobrar ou a se pagar. 

Entre as muitas camadas da produção, conseguimos captar os tons da hipocrisia e os modos como a infância e a velhice são tratadas culturalmente. As atitudes de Irene e Jairo com o pai dela e com o filho deles carregam ao fundo a ideia de enxergar o início e o fim da vida como pedaços sem autonomia. Mesmo abordando temáticas pesadas, a narrativa insere tons de comicidade e consegue equilibrar leveza e intensidade. Esses momentos se mostram principalmente com o traficante argentino Miguel (César Bordon) e com a sinceridade infantil de Jean. 

A co-produção Brasil-Argentina ainda ganha pontos com a caracterização. Os cenários são impecáveis e conseguem transportar qualquer pessoa para as zonas menos urbanizadas do interior do país. Desde as relações entre os personagens, até os grãos de poeira captados pelas filmagens – dirigidas por Pepe MendesCarvão é autêntico. Caminhando na corda bamba do caráter humano, o filme coloca a rede de proteção em chamas. – Jamily Rigonatto


Cena do filme Cha Cha Real Smooth. Estão os atores Cooper Raiff e Dakota Johnson se olhando e sorrindo. Ambos estão de perfil e o enquadramento mostra apenas dos ombros para cima. Cooper Raiff é um jovem adulto branco de barba e cabelos castanhos, usa uma camisa branca e uma gravata preta. Dakota Johnson é uma mulher branca, possui cabelos com franja castanhos, que estão presos em um coque. Ela veste uma blusa branca com flores vermelhas desenhadas. Sua mão está apoiada no batente da porta do quarto que está entrando.
Apesar da trama de Cha Cha Real Smooth apresentar questões delicadas, como aborto, adulterio e alcoolismo, a direção escolhe não se aprofundar nesses temas (Foto: Apple TV)

Cha Cha Real Smooth

Entre tantas comédias românticas dramáticas já produzidas, Cha Cha Real Smooth – O Próximo Passo pode não se sobressair para a maioria. Contudo, para aqueles que se sentem perdidos nos seus vinte e poucos anos, o longa de Cooper Raiff chega como um ombro amigo. Protagonizado pelo diretor e produtor, o filme conta a busca de Andrew (Raiff) pelo amadurecimento e transmite uma veracidade que não se encontra em muitos dos coming of ages atuais. Isso se deve a proximidade do autor com essa fase da vida. Com apenas 25 anos, Raiff consegue retratar, de forma sutil e ponderada, os dramas do jovem da geração Z, que ainda não sabe ao certo qual o seu lugar no mundo. Sem grandes reviravoltas, a produção da Apple Originals se torna facilmente o confort movie do ano, não apenas pela sua sensibilidade e sutileza na narrativa, mas pelo enorme carisma que todas as personagens esbanjam, sobretudo o próprio protagonista.

Para acompanhar a simpática narrativa, há a presença de uma trilha sonora divertida, que permeia as festas de Bar Mitsvá as quais Andrew é animador. Estão presentes as faixas Funkytown de Lipps Inc. e Cha Cha Slide de DJ Casper, que faz alusão ao título do longa. E é nesse ritmo embalado que corre a relação de Andrew com Domino (Dakota Johnson) e sua filha Lola (Vanessa Burghardt). Por meio dessa ligação com uma mulher mais velha e sua filha, no espectro autista, o jovem vai reconhecendo a necessidade de assumir mais responsabilidades que lhe cabem, e percebe que ser adulto não significa ter todas as respostas – muitas vezes, os mais velhos podem se encontrar mais perdidos do que ele.

Como o filme fez sua estreia no Festival de Sundance, havia uma perspectiva de que o drama percorrese uma trajetória similar com a do vencedor do Oscar de 2021, No Ritmo do Coração. Porém, Cha Cha Real Smooth acabou não saindo da lista de repescagem. Isso não é motivo para ficar de fora dos Melhores do Ano, pois é possível se conectar e se emocionar verdadeiramente com o storytelling da obra. A produção traz uma perspectiva interessante sobre a virada de chave que ocorre na juventude e mostra como o encadeamento de eventos mundanos auxiliam na descoberta do seu propósito. – Costanza Guerriero


Cena do filme Crimes do Futuro, que mostra o rosto do personagem Ear Man, um homem branco e careca, que possui um par de orelhas em sua testa. Seus olhos e boca estão sendo costurados com uma linha preta por uma mão branca.
Em Crimes do Futuro, o corpo é a essência da existência humana e a tecnologia sempre foi uma extensão ultra-humana do ser (Foto: MUBI)

Crimes do Futuro (Crimes Of The Future)

O marcante retorno de David Cronenberg ao terror, Crimes do Futuro é uma obra  grotesca e visceral em que o erotismo clássico do diretor é retomado: “Cirurgia é o novo sexo”, ele clama. O terror corporal de ficção científica vai além da intenção de chocar e aposta com sucesso em uma abordagem de utilizar o incômodo e o grotesco como base para discussões atuais.

A ambientação de natureza sintética, estranhamente familiar e sem vida, de um futuro distópico em que a humanidade já não sente dor traz uma reflexão perspicaz sobre a percepção da corporalidade e os limites da arte. Neste universo, Saul Tenser, interpretado por Viggo Mortensen, junto de sua parceira e admiradora Caprice, vivida por Léa Seydoux, realiza performances artísticas clandestinas extremas em que seus órgãos advindos de mutações são prazerosamente removidos em frente ao público extasiado. Outra personagem que merece destaque é a estranha Timlin, interpretada majestosamente por Kristen Stewart, que se vê dividida entre fascínio pela nova arte e seu trabalho burocrático para um misterioso setor secreto do governo. 

Apesar do incrível design visual e ambientação, além da temática provocativa e pertinente, o longa não se aprofunda suficientemente nessa fascinante realidade apresentada e deixa de lado o desenvolvimento de diversos aspectos da narrativa. Assim, após o final abrupto de Crimes do Futuro, o que permanece é a sensação de que a obra poderia ter se beneficiado de um tempo de execução mais longo. –  Bruno Alvarenga


Cena do filme Decision to Leave. Da esquerda para a direita na imagem, os protagonistas Song Seo-rae e Jang Hae-joon se entreolham. A câmera captura ambos a partir da cintura. Ela é uma mulher chinesa de cabelos e olhos escuros. Ele é um homem coreano de cabelos e olhos escuros. Song veste um enorme casaco de inverno em um tom de marrom terroso. Jang veste um terno cinza sobre uma camiseta social branca e uma gravata listrada nas cores cinza e azul. Ao fundo, o cenário é o mar envolto por montanhas, iluminados pela luz de um dia nublado.
Park Chan-wook recebeu o prêmio de Melhor Diretor por Decision to Leave no Festival de Cannes 2022 (Foto: Diamond Films)

Decisão de Partir (Decision to leave)

Estarrecedor, Decisão de Partir empurrou da ponta de uma montanha os clichês de um mistério policial e arremessou ao mar a satisfação romântica. Acorrentado ao tema da obsessão, o diretor sul-coreano Park Chan-wook repetiu o tipo de construção audiovisual que caracteriza a sua filmografia: a tentativa de solucionar um mistério movido por reviravoltas. Mas, dessa vez, ele se livrou do vermelho da violência e da liberdade da nudez para adotar a crueldade intrínseca do cotidiano que, incoerentemente, resulta em maior dor e sofrimento do que qualquer narrativa mirabolante.

No momento em que você disse que me ama, o seu amor está acabado. No momento em que o seu amor termina, o meu amor começa”. Opostos que se atraíram, os protagonistas Jang Hae-jun (Park Hae-il) e Song Seo-rae (Tang Wei) reproduziram em cena não somente o clima envolvente entre personagens, como também a tensão histórica entre as suas nações, Coréia e China, fato que atravessou o roteiro de Park e Chung Seo-Kyung. A fotografia de Kim Ji-yong não destoou da composição e é tão genial quanto a escolha de simbolismos que transformaram Decisão de Partir em um dos primores de 2022. – Nathalia Tetzner


Cena do filme Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Na imagem, vemos Elizabeth Olsen, que interpreta Wanda Maximoff. Ela é uma mulher branca de cabelos castanhos, utiliza uma camiseta branca e está com seu rosto manchado de sangue. À sua volta se encontra uma sala em destruição, com fumaça e fogo.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura poderia muito bem ter sido um filme da Feiticeira Escarlate (Foto: Disney+)

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness)

Muitas expectativas foram criadas com o anúncio e os trailers de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Primeiro filme de terror da Marvel, três horas de duração, participações de personagens icônicos e muitas outras referências a filmes da franquia pautaram os rumores sobre a produção. Enquanto algumas se concretizaram, como a aparição dos Illuminati e do Professor Xavier, as outras foram deixadas de lado e decepcionaram o público. Porém, os 126 minutos de Elizabeth Olsen como Feiticeira Escarlate valeram a pena.

A construção do arco da personagem desde Vingadores: Era de Ultron culmina em seu ápice em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Wanda perdeu os pais, o irmão, o marido e os filhos, o que faz com que ela se torne difícil de antagonizar, já que há empatia pela sua dor. Apesar da resolução ao redor do controle dos poderes de América Chavez, interpretada por Xochitl Gomez, ser preguiçosa, ao menos nos leva para a tocante cena final de Wanda e seus filhos. Benedict Cumberbatch, como sempre, também entrega uma ótima performance de Stephen Strange, apesar de ter sido ofuscado pela presença da mãe sem filhos em seu próprio filme.

A direção de Sam Raimi é outro ponto alto da produção e que não a torna mais do mesmo. Suas marcas registradas e as diferentes perspectivas das cenas – como a primeira vez que Wanda assume o corpo de sua própria variante – tornam o longa com um enredo fraco em algo delicioso de assistir. Em um cenário mais amplo, apesar da produção não ter tido um comprometimento total com o gênero do terror, ainda é um sabor diferente para a Marvel. – Arthur Caires


Cena do filme Eduardo e Mônica. Monica é uma mulher branca de cabelos castanhos longos, ela veste uma calça jeans azul, uma jaqueta de couro preta e um par de tênis surrado com tom amarronzado. Eduardo é um homem branco de cabelos castanhos cacheados, ele veste uma calça caramelo, uma camiseta cinza com detalhes em vermelho por baixo de uma camisa xadrez de cinza e azul e um all star preto. Os dois estão sentados lado a lado embaixo de uma árvore.
“Ela era de leão e ele tinha dezesseis” (Foto: Paris Filmes)

Eduardo e Mônica

Se todas as músicas de Renato Russo pudessem ganhar espaço em telas de cinema, a ideia da vida sob um olhar extremamente singular seria guardada na profundidade da luz dos projetores. Em Eduardo e Mônica, lançado nos cinemas brasileiros no início de 2022, isso se prova com toda a beleza existente nos amores improváveis. No longa, os personagens da música ganham solidez nos atores Alice Braga e Gabriel Leone que, entre opostos, performam em menos de duas horas a grandeza do existir. 

Dirigido por René Sampaio, o filme nos leva para a Brasília da década de 1980 e mostra os caminhos que atravessam a história do casal, enquanto eles tentam equilibrar suas diferenças em nome do amor. O trabalho muito bem feito com os cenários faz os espaços e as cenas – assinadas por Gustavo Hadba – serem extremamente fiéis aos da canção. Da festa estranha ao futebol de botão, os frames parecem ter sido escolhidos pelo próprio Legião Urbana. 

A trilha sonora escolhida pelo diretor é outro primor da produção, entre o rock nacional e o internacional, as melodias nos submergem no âmago dos personagens. Acompanhar os impasses dos dois é tão gostoso que a vontade é assistir até as partes desconhecidas dessa história. Desde as relações familiares, amigos, inseguranças, atitudes impulsivas e tudo mais que couber ser descrito, Eduardo e Mônica são um espelho do ser. Ao fim, realmente é impossível dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração. – Jamily Rigonatto 


Ela Disse foi uma das apostas para a listagem do Oscar 2023, mas acabou não sendo indicado em nenhuma categoria (Foto: Universal Studios)

Ela Disse (She Said)

Em 2022, a Universal Studios resolveu cinematografar o jornalismo investigativo e foi o tipo de escolha que deu certo. Ao contrário do esperado em narrativas do gênero, a diretora Maria Schrader secundariza o melodrama para dar protagonismo ao suspense. Ela Disse não é comovente, é tenso. A produção é uma adaptação do livro das jornalistas Megan Twohey e Jodi Kantor, Ela disse: Os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo, e conta sobre a apuração feita pelas profissionais no boom de denúncias de assédio sexual contra Harvey Weinstein. 

As pouco mais de duas horas do filme são marcadas pelas feições temerárias de Megan (Carey Mulligan) e Jodi (Zoe Kazan), enquanto enfrentam a rede de proteção de Weinstein e encontram vítimas assustadas e silenciadas. É na relação das protagonistas com essas vítimas que Ela Disse encontra o pote de ouro, já que, em cena, as atrizes constroem uma intimidade tão verdadeira com as mulheres que isso transpassa os limites da tela. Apesar de termos relatos escancarados, emoção não é o tipo de reação desencadeada no telespectador – a angústia é quem grita mais alto. 

Tudo é muito acinzentado e a fotografia acompanha esse movimento. Natasha Braier escolhe enquadramentos em perspectiva e brinca com as luzes para pesar os frames e compor a ambientação apreensiva. Para além de termos técnicos ou estéticos, o registro visual do longa tem uma importância ímpar para a visibilidade do assédio sexual. Com imagens bem feitas e um roteiro imponente criado por Rebecca Lenkiewicz, nos conectamos com uma narrativa sobre força feminina, poder da indústria hollywoodiana e resistência. – Jamily Rigonatto


Michelangelo pintou a criação do mundo, para Baz Luhrmann e Mandy Walker a invocarem na primeira apresentação de Austin Butler como Elvis Presley (Foto: Warner Bros.)

Elvis

Nove anos depois de seu último projeto para os Cinemas (o irregular O Grande Gatsby), Baz Luhrmann (Moulin Rouge, Romeu e Julieta) retornou a cadeira de direção em 2022 com Elvis, sobre a vida e carreira do polêmico, mas icônico Elvis Presley. Desenvolvido na onda do bem sucedido filão recente de cinebiografias musicais, catapultado em 2018 por Bohemian Rhapsody; o projeto poderia facilmente ter caído no lugar comum do subgênero, marcado pela pouca inspiração estética e o roteiro escrito na base do resumo da Wikipédia. Felizmente, não foi esse o caso, pois Luhrmann, no final das contas, mostrou-se o autor perfeito para transpor o espírito extravagante e potente do cantor para as telonas. 

Elvis deixa isso claro em sua feitura cinematográfica, desde a montagem alucinada de Matt Vila e Jonathan Redmond, até a fotografia pomposa de Mandy Walker (ambos os trabalhos foram reconhecidos com indicações ao Oscar 2023, inclusive). Contudo, também o aproveita enquanto narrativa, conforme analisa e desconstrói Presley do ponto de vista de seu empresário, o infame Coronel Tom Parker (Tom Hanks, de Forrest Gump e Toy Story, em desempenho caricato, mas subestimado). Passando pelas raízes do artista na música negra americana e explorando o seu alto status construído por mídia e propaganda, o filme se mostra uma aula de como entender um ícone através da Sétima Arte, principalmente quando canaliza sua força na performance arrebatadora do astro revelação Austin Butler (Era uma Vez em Hollywood), também reconhecido com a nomeação da Academia. Nathan Nunes


Cena do filme Enola Holmes 2. Jovem de cabelos castanhos com vestes da Era Eduardiana. Ela corre para longe de dois policiais de farda azul petróleo. O cenário é uma rua com casas, pessoas e carroças.
O diretor de Enola Holmes 2 deu liberdade para que Millie Bobbie Brown improvisasse e alguns desses momentos estão presentes na obra final (Foto: Netflix)

Enola Holmes 2

Normalmente, continuações são decepcionantes, mas não é o caso de Enola Holmes 2, que nos surpreende com cenários e plot-twists inesperados. Não podemos dar muito mais spoilers que isso, então espere ansioso até o fim do filme. O longa nos prepara para o fim pouco a pouco, sem que nos demos conta, não abrindo espaço para uma sugestão tão rápida, o que possibilita a dedução.

Muitos filmes de mistério e aventura pecam nesse sentido, dando de bandeja a trama e fazendo os telespectadores parecerem idiotas. O segundo filme da franquia não nos faz pensar muito além daquele ponto, e ainda permite a dúvida, conservando perfeitamente o mistério. Um outro grande ponto positivo de Enola Holmes 2 é a evolução da personagem. Enola certamente amadureceu da primeira obra  para esta e se tornou preparada e astuta, mas como todo jovem, ainda é extremamente atrapalhada. Os defeitos são bons para nos tirar algumas risadas e proporcionar momentos imprevisíveis. – Izadora Azevedo Albertini 


Cena do filme em animação Entergalactic, da Netflix. Imagem retangular e colorida. Nela, Jabari e Meadow se encaram romanticamente ao fundo de uma galáxia estrelada. Jabari é um homem negro de barba, com cabelos crespos trançados em dreads curtos, vestindo uma camisa preta e vermelha nas manga. Meadow é uma mulher negra, de cabelos crespos volumosos, usando um vestido amarelo brilhante.
O longa dirigido por Fletcher Moules traz o estilo de animação mais deslumbrante da Netflix desde Arcane (Foto: Netflix)

Entergalactic

Kid Cudi é uma ogiva criativa. Independentemente de obras com resultados controversos, Scott sempre busca, em suas alçadas artísticas, expandir a premissa até as últimas consequências. Ainda assim, para 2022, o desafio foi inusitado: não um filme acompanhado de um disco, ou um disco acompanhado por um filme, mas um projeto multimidiático, em que áudio e visual se costuram mutuamente. Afinal, as viagens psicodélicas de Jabari (Kid Cudi), quando vislumbra sua paixão por Meadow (Jessica Williams) pela primeira vez, não seriam as mesmas sem os sintetizadores divinos de Angel.

E, mesmo isoladamente, Entergalactic entrega a comédia romântica do ano. Para o roteiro, também assinado por Cudi, é importante que esta trama seja figurada como uma típica história de amor. Uma premissa formulaica, que encontra personalidade no retrato honesto e multifacetado de seu vasto universo, dentro de uma narrativa centrada por pessoas negras e que reivindica espaço em um gênero que sempre foi dominado por brancos. Assim que adubado, Entergalatic tem campo aberto para ampliar os conflitos entre os personagens, de tal forma que o instante da colisão se torne, metafórica e literalmente, uma verdadeira supernova. – Enrico Souto


Cena do filme Farha. Farha (Karam Taher) está tentando ouvir através de uma porta de madeira, inclinando o ouvido esquerdo nela. Farha é uma menina árabe, usando um pano na cabeça com moedas douradas costuradas na borda. Apenas um feixe de luz vindo da fresta da porta ilumina seu rosto.
Do rio ao mar (Foto: Netflix)

Farha

Dirigido pela jordaniana Darin J. Sallam, Farha não é apenas uma história contada de geração para geração, preservada na oralidade até que fosse registrada em celulóide. É um retrato visceral e dolorosamente vivo do povo palestino, registrando os momentos iniciais da Al-Nakba (“A Catástrofe”) pelo ponto de vista de uma criança. Acompanhamos de perto a jovem Farha (Karam Taher) ter seus sonhos arrancados de si pela violência que eclode no dia 15 de maio de 1948, quando forças militares do recém-criado Estado de Israel forçam seu vilarejo a debandar. Presa em uma sala trancada, ela é obrigada a sobreviver e testemunhar os horrores de um conflito que não irá terminar em sua vida.

É claro que denunciar a limpeza étnica de um Estado de apartheid moderno teria consequências, como visto pela campanha de difamação promovida por oficiais israelenses contra o filme de Sallam, ameaçando remover investimentos estatais dos cinemas de Tel Aviv que ousarem exibir o longa, atualmente disponível ao redor do mundo pela Netflix (mas não, curiosamente, no Brasil). Processando o trauma e a dor através da arte, Farha é de uma compostura monumental, confinando tanta dor em apenas um quarto por cerca de uma hora e confiando em sua performance central a habilidade de expressá-la.

Taher é uma revelação absoluta no papel da protagonista, habitando tanto a inocência e entusiasmo infantil quanto o torpor emocional causado pelo que ela testemunha. A morte de seu sonho é uma das visões mais trágicas do ano, potencializada pela fotografia minimalista e a iluminação natural do cenário, tornando-se gigante em sua completude. Farha não é apenas um relato de guerra da perspectiva de uma garotinha, mas um verdadeiro manifesto de luto contra a opressão sistêmica que vigora até hoje, devastador em seu vocabulário e imparável em seu desejo de que essa história sobreviva. — Gabriel Oliveira F. Arruda


Fresh é um banquete aos fãs de Terror (Foto: Star+)

Fresh 

Fresh tem sabor de novidade – e devorá-lo é prazeroso, intenso e cômico. Delicioso, o longa dirigido por Mimi Cave coloca uma desiludida Daisy Edgar-Jones frente a frente com um encantador Sebastian Stan. Ela, entediada com os aplicativos de relacionamento e dates com babacas, encontra – ironicamente, em um corredor de vegetais no supermercado – uma esperança no doce médico e resolve se abrir para os sentimentos. O relacionamento vai bem, mas só até quando ele a dopa, sequestra e revela seu lado criminoso e canibal.

No roteiro tenso, mas divertido e até cômico de Lauryn Kahn, Edgar-Jones e Stan têm espaço para brilhar. Seja em dupla ou individualmente, a dinâmica dos dois acentua o potencial dramático da protagonista, e dá a liberdade para o ator explorar novas facetas, esboçando caras, bocas e olhares no seu caráter psicopata. Amplificada pela direção envolvente e vivaz de Cave, que potencializa a tensão nos momentos de suspense e acha o humor até em um filme sobre canibalismo e tráfico, Fresh mostra porque 2022 foi um ano de barriga cheia para os fãs de Terror. – Vitória Gomez


Exibido na seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Garoto dos Céus venceu o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes (Foto: Pandora)

Garoto dos Céus (Boy From Heaven)

Nos minutos iniciais de Garoto dos Céus, Adam Tala (Tawfeek Barhom) tenta esconder a emoção ao receber a carta de aceite da Universidade de Al-Azhar do Cairo – instituição anexada à mesquita de mesmo nome –, o epicentro político do islamismo sunita. A contenção de Tala, porém, reside não somente na alegria de ser um jovem filho de pescador que recebeu o acesso a uma instituição habitada pelos filhos de sheiks mais poderosos do Egito, mas no medo do próprio pai, um indivíduo conservador e abusivo. Ele ainda não sabe que estudar em Al-Azhar será seu maior desafio, e, quando enfim notifica o patriarca que irá à universidade, a reação parece mais suave do que o previsto: “não se pode ir contra as vontades de Alláh”, diz o pai, meio a contragosto, após agredir os filhos cenas antes. Embora essa pareça a maior vitória possível, Zizo (Mehdi Dehbi) o notifica, assim que chega a nova moradia: “sua alma ainda é pura. Mas este lugar vai corrompê-lo”. 

Essa máxima se mostrará verdadeira durante todo o filme, visto que o diretor Tarik Saleh constantemente faz um “jogo de grandezas” na trama. Enquanto a Fotografia repete filmagens da universidade de baixo para cima, mostrando sua imensidão e imponência, o Roteiro – vencedor em Cannes – põe Tala como submisso aos indivíduos mais poderosos. À medida que os elementos “conspiratórios” da trama entram em cena, as questões existenciais do protagonista dão espaço a um clima de investigação habitual, com reuniões secretas, infiltração em um círculo pró-jihadista e o sacríficio de um colega. O título que o filme recebeu na América do Norte, Cairo Conspiracy, opta por evidenciar mais esse aspecto da produção, ligando-a ao thriller psicológico e reduzindo toda a sua filosofia política. Mas talvez a grande marca de Garoto dos Céus seja a habilidade de Saleh em jamais ferir o Islã, consolidando Tala como o verdadeiro sábio por simplesmente questionar as origens do poder. “Não existem anjos”, ao que parece. – Bruno Andrade


Em Gato de Botas 2: O Último Pedido, Gato tem seu medo testado e questionado (Foto: Universal Pictures)

Gato de Botas 2: O Último Pedido (Puss in Boots: The Last Wish)

Devido ao sucesso de Shrek no início dos anos 2000, que frequentemente fez referências (e também o uso de muita ironia) aos contos de fadas originais, a escolha de fazer um longa-metragem de um personagem vindo diretamente do universo do ogro foi crucial para que a Dreamworks ganhasse espaço no mundo da animação novamente – não apenas por ter um design de um gato “de botas”, mas por simbolizar um anti herói que vive de glória, festas: uma lenda (como ele se autodenomina). A introdução do Gato de Botas no segundo filme da franquia definitivamente marcou as gerações que surgiram na década e relembramos que, em Gato de Botas (2011), acompanhamos um guerreiro valente e sem medo de enfrentar os perigos. Já em Gato de Botas 2: O Último Pedido somos convidados a ver um lado mais medroso, profundo e interior do personagem.

Primeiramente, é necessário agradecermos a Homem-Aranha no Aranhaverso por ter vindo em uma época tão necessária de quebra de liderança da Disney e seus filmes de animação em 3D nas premiações. Com a introdução de técnicas que fazem qualquer um babar olhando para tela – como as mudanças de “fps” ou ‘fotos por segundo’ e a junção do 3D e o 2D, nos fazem perceber o quanto o gênero no Cinema deve ser explorado infindavelmente. Não é à toa que outros estúdios olharam para Aranhaverso e perceberam o que não estavam praticando, e, com Gato de Botas 2: O Último Pedido não foi diferente, sobrepondo a tridimensionalidade com desenhos bidimensionais tradicionais, assemelhando-se a uma pintura.

Por fim, com a inserção do Lobo, ou a Morte, o surgimento de um gênero que nunca havia aparecido na Dreamworks desse modo aconteceu. O assobio, as cores e toda a ambientação que levam o Gato a ter medo da Morte também nos causa medo. Assim, a combinação dos elementos em Gato de Botas 2: O Último Pedido, juntamente com a aparição de mais referências e personagens bem escritos, os quais nos familiarizamos mesmo com o pouco tempo de tela, resultam no acompanhamento de uma jornada de amadurecimento de uma figura que, se já era marcante, agora possui ainda mais camadas. – Júlia Aguiar


Cena do filme Glass Onion: Um mistério Knives Out. Nele estão três pessoas se abraçando enquanto andam. Dois homens à esquerda e uma mulher à direita. Logo atrás, um homem apontando seu dedo para frente. Estão todos em uma praia e ao fundo estão as ilhas e o mar azul da Grécia
O título Glass Onion refere-se à música enigmática dos Beatles do The White Album, cabendo, assim, como o título de um filme de mistério (Foto: Netflix)

Glass Onion: Um Mistério Knives Out (Glass Onion: A Knives Out Mistery) 

O número de camadas de uma cebola provavelmente é menor comparado a quantidade de reviravoltas de Glass Onion: Um Mistério Knives Out. A sequência do mistério de Entre Facas e Segredos aprimora um roteiro tão bem performado por seu antecessor. A segunda obra da nova franquia é  maior e intrigante, e por mais fanático que alguém possa ser por mistérios, com certeza será pego de surpresa.

Com os personagens e enredo novos, Daniel Craig como o detetive Benoit Blanc foi a única e brilhante escolha que decidiram manter. Ao lado de Janelle Monáe, Kate Hudson, Edward Norton e outros, a obra diverte, entretém e acima de tudo, traz a satisfação de quão boas podem ser produções sem pretensão de significarem mais do que realmente querem dizer.  – Henrique Marinhos


Cena do filme Hellraiser, que mostra a personagem Pinhead, uma criatura humanoide de pele branca acinzentada, olhos totalmente pretos e cabeça coberta por cortes quadrados ligados por alfinetes. Ela possui cortes expostos no pescoço e ombros.]
“Deleites maiores o aguardam. Desejamos que você prossiga” (Foto: Hulu)

Hellraiser: Renascido do inferno (Hellraiser)

David Bruckner possui contribuições notáveis para o gênero de filmes de horror, como os longas A Casa Sombria (2020) e O Ritual (2017), além de seus trabalhos em segmentos das antologias V/H/S (2012) e Southbound (2015), e é o responsável por dirigir o novo e aguardado reboot de Hellraiser (1987). O 11º filme de uma das mais conturbadas franquias do gênero conta com a urgente e necessária participação direta de seu idealizador original, Clive Barker, que contribuiu em sua produção e roteiro.

O filme, lançado diretamente no streaming  da Hulu, inova ao introduzir pela primeira vez em tela uma pinhead feminina. Interpretada por Jamie Clayton, conhecida anteriormente por seu trabalho em Sense8, ela carrega o peso de viver um vilão icônico e atemporal de forma majestosa, roubando a cena e se tornando a estrela do show

O longa traz a série de volta à essência do universo dos cenobitas, com muito sexo, perversão, fetiche, violência e horror corporal. No entanto, apesar de ter a melhor das intenções, ainda falta tesão em sua execução, que, além de jogar seguro e sem exageros, possui protagonistas rasos e sem carisma, tornando sufocante a tarefa de se conectar à história. Apesar de economizar na ousadia e no apelo presente no clássico de 1987, Hellraiser: Renascido do Inferno de 2022 é, com certeza, um respiro de alívio aos fãs da saga e transmite esperança de dias melhores para os futuros rumos da franquia. –  Bruno Alvarenga


Na despudorada investida da Netflix, o inferno são duas garotas adolescentes: uma descendente de brasileiros e uma nepo baby (Foto: Netflix)

Justiceiras (Do Revenge)

Meses após incorpar o roteiro de Thor: Amor e Trovão, Jennifer Kaytin Robinson abdicou dos heroísmos intergalácticos para vigiar os impiedosos ciclos da adolescência. Justiceiras, segundo filme da cineasta em parceria com a Netflix, segue um plano de vingança compartilhado entre duas protagonistas abandonadas às próprias tragédias identitárias, e que só poderiam tomar as dores uma da outra absorvendo a humanidade por trás do rancor. O resultado, ancorado na perspectiva da geração Z, é a negação de qualquer análise mística ou complexa sobre o que nos leva a buscar revanche; a gente não vale muito mesmo, e tudo bem.

Drea (Camila Mendes, de Riverdale) e Eleanor (Maya Hawke, de Stranger Things) explodem química interpretando as líderes hipnóticas da narrativa, que pega ainda mais fogo quando decide trabalhar seu núcleo secundário recheado de estrelas teens. Fora dessa curva, Sarah Michelle Gellar é uma ótima surpresa no elenco e coroa a série de homenagens requintadas aos filmes noventistas do nicho, infiltrados nos figurinos e ambientações de Do Revenge. Combinando citações de Dante Alighieri com o background sonoro de Olivia Rodrigo e Le Tigre, o conjunto é uma insanidade autocrítica, divertida e com plot twists que cria sua patente na juventude atual. Porque ser cínico e exagerado faz parte de cada um de nós. – Vitória Vulcano 


cena do filme Lightyear. No canto direito da imagem está Buzz, um homem branco com cabelos castanhos e olhos verdes; veste o traje clássico branco, verde e roxo do personagem. Sua mão esquerda está levantada e apontando para outra figura fora do plano - só é possível ver sua mão direita apontando para Buzz. No fundo da imagem é possível ver o céu em tons de azul alaranjado e partes de uma aeronave.
Lightyear é capaz de agradar diversas gerações (Foto: Disney+)

Lightyear 

Buzz Lightyear foi introduzido pela Pixar em 1995, no filme Toy Story. Diferente de suas primeiras aparições, em Lightyear o personagem não é mais um brinquedo, mas sim um verdadeiro patrulheiro espacial em uma missão considerada impossível para sair de um planeta hostil. A proposta do longa é mostrar a narrativa que fez Andy se apaixonar pelo astronauta. No novo lançamento, a voz de Tim Allen foi substituída pela de Chris Evans, facilitando ainda mais a separação entre o brinquedo e o homem. Apesar de distintos, o jeito teimoso e a vontade de resolver todos os problemas sozinho traz reconhecimento ao espectador.

Mesmo sendo uma animação, o filme carrega uma grande melancolia, pois, em sua missão, Buzz se perde no tempo e o mundo e as pessoas ao seu redor mudam e envelhecem, mas ele não é capaz de fazer isso. O patrulheiro carrega a culpa de não conseguir libertar seu povo do planeta estranho e de ter perdido a chance de acompanhar a vida e a morte de seus companheiros. Lightyear traz diversas pautas interessantes, inclusive o primeiro beijo queer da Pixar, entre Alisha Hawthorn (Uzo Aduba) e sua esposa. Quem cresceu assistindo Toy Story, a produção é agradável para quem quer se aprofundar nesse universo. – Gabrielli Natividade 


Cena do filme Luck. Na imagem estão Sam e o gato Bob. Ela é uma animação de uma garota jovem de cabelos castanhos médios, está vestindo uma blusa verde de dois tons e uma calça cinza. A personagens está apoiada sobre um dos joelhos ao lado do gato preto de olhos verdes, os dois encaram a paisagem.
Luck conta com produção executiva de John Lasseter e estreou no streaming da Apple em setembro de 2022 (Foto: Apple TV)

Luck 

Dizem que os gatos pretos dão azar, mas Sam Greenfield (Eva Noblezada) prova o quanto essa afirmação é falsa. No filme, dirigido por Peggy Holmes, um felino preto de olhos verdes pode ser mais poderoso que um trevo de quatro folhas. Ao cruzar seu caminho com Bob (Simon Pegg), a rotina pouco afortunada de Sam ganha – quase como em um passe de mágica – uma sorte incomum. Mas, como nem tudo são flores, tudo acaba em uma aventura vibrante no mundo em que a sorte é produzida. 

Apesar de não ser o tipo de animação que tem traços excepcionais ou gráficos tecnológicos da mais alta qualidade, o duende verde da produção é a sensibilidade. Passeando por momentos de flashback da infância da protagonista no orfanato e pelos anos de rejeição vividos pelo gato preto, a narrativa cria uma aproximação muito sincera entre os personagens, provando que a sorte está onde menos se espera. 

Outro ponto alto do enredo é a quebra de expectativas na ideia de vilão. O filme brinca bastante com os contrapontos, mesmo que para mostrar como as coisas não precisam de rótulos permanentes. Essa construção cria uma alegoria com a sociedade e rememora as práticas de exclusão presentes na humanidade. Ainda não existem moedas encantadas capazes de anular o azar, mas assistir Luck é um instante de sorte. – Jamily Rigonatto


Imagem do filme Marcel the Shell with Shoes On. No painel de um carro há um mapa aberto e sobre ele está o boneto Marcel. Marcel é uma concha branca e pequena, possui um olho verde e um par de sapatos branco laranja. do seu lado esquerdo há um rolo pequeno de fita durex. Do seu lado direito há uma pedra e uma espécie de mochila a jato, construída com fita e palitos de fósforo. Ao fundo, através do parabrisa do carro, é possível vislumbrar a paisagem do horizonte, céu azul uma vasta colina, com casas e vegetação.
Marcel, the Shell with Shoes On deixa a mensagem de que mesmo em meio aos tropeços da vida, sorrir vale a pena (Foto: A24)

Marcel the Shell with Shoes on

Antes de Marcel the Shell with Shoes On, jamais se pensou no quão emocionante poderia ser a história de uma pequena concha. Escrito e dirigido por Dean Fleischer-Camp, o filme conta a história de Marcel (Jenny Slate), uma concha que mora com sua avó Connie (Isabella Rossellini) em um Airbnb. A narrativa é filtrada pelos olhos de Dean (Camp), um documentarista que deseja produzir um curta sobre a vida do animal. Para além de pensar em como é o dia a dia de uma concha falante, o filme apresenta questões do âmago humano, o que permite a mais profunda identificação com essa personagem. A obra apresenta o desenrolar de uma vida comum a todos, entre encontros e desencontros e as transformações que ocorrem da convivência com a família – ou da falta dela. 

A produção do estúdio americano A24 combina brilhantemente o live-action com o stopmotion e é estruturado como um mockumentary. Esse visual é apenas uma pequena fração da originalidade do longa. Na busca pela sua família perdida, Marcel reflete sobre a fragilidade dos sentimentos, sobre o luto e aprende a dar espaço para oportunidade e esperança, em suma, é uma história sobre amadurecimento. A sensibilidade e perspicácia da obra como um todo conquista não somente um espaço na lista dos Melhores do Ano, mas também à indicação de Melhor Animação no Oscar de 2023, sendo um forte candidato na corrida.  – Costanza Guerriero


Cena de Matilda: O Musical. Ocupando quase todo o canto esquerdo da imagem está Agatha, uma mulher branca com cabelos grisalhos presos em um coque; veste um uniforme militar, com um apito pendurado em seu pescoço. À sua frente está Matilda, uma garota branca com cabelos castanhos e longos. Agatha é muito maior que a menina e aponta os dedos em seu rosto. Atrás delas é possível ver um céu acinzentado.
A nova versão de Matilda faz um bom trabalho em recriar um clássico dos anos 1990 (Foto: Netflix)

Matilda: O Musical (Roald Dahl’s Matilda The Musical)

A Netflix tinha uma grande responsabilidade quando se propôs a lançar Matilda: O Musical. O filme de 1996 é um clássico lembrado por muitos com carinho, mas a nova versão não deixou a desejar. O longa aprofunda pontos altos da narrativa, como a história de Matilda (Alisha Weir) e Miss Honey (Lashana Lynch), a construção de sua relação uma com a outra, e o desenvolvimento dos poderes da personagem principal, e adiciona novos aspectos, como o enredo paralelo criado pela garota sonhadora, sendo inesperado e familiar ao mesmo tempo. 

Para quem gosta de musicais, esse é o filme certo. As canções são coerentes com as cenas e as coreografias, lindas de serem assistidas. O grande nome do elenco é Emma Thompson, que não decepcionou no papel de Agatha Trunchbull, porém Alisha fez um ótimo trabalho trazendo uma Matilda mais atrevida e cheia de opinião do que a de Mara Wilson. Como o longa, os personagens trouxeram uma perspectiva mais moderna que é muito bem-vinda a Matilda: The Musical, sem descredibilizar o que foi construído nos anos 1990. – Gabrielli Natividade 


Cena do filme Marte Um. Cícero Lucas, que interpreta Deivinho, é uma criança negra que usa óculos e veste uma camiseta cinza. Na imagem, vemos o seu perfil, e ele está deitado em uma cadeira de praia com os braços cruzados. Ele olha para cima, em direção ao céu, e é noite.]
Introspectivo e extremamente sensível, Marte Um emociona ao demonstrar a força do amor no núcleo familiar (Foto: Filmes de Plástico)

Marte Um

O esforço dedicado para que Marte Um pudesse representar o Brasil na premiação mais importante da Sétima Arte é um diferencial que poucos filmes selecionados para tal possuem. É uma pena, no entanto, que o drama dirigido pelo cineasta Gabriel Martins não esteja entre os indicados finais a levar a estatueta do Oscar de Melhor Filme Internacional para casa. Apesar disso, essa obra tão assumidamente temporal tem muito a nos ensinar ao destacar o singelo em toda a sua narrativa – ela aposta no simples, mas em nenhum momento passa a ser menos marcante.

Em seus momentos mais poderosos, Marte Um insere pautas necessárias como política, economia e direitos humanos no subtexto de temas universais, como o amor. A história do longa começa imediatamente após o resultado das eleições presidenciais de 2018 e, para um cineasta menos hábil, seria fácil mergulhar no melodrama ao decidir explorar o dia a dia de uma família negra de classe média baixa em um momento no qual o conservadorismo ganha mais força. Felizmente, não é o que acontece: a combinação de uma montagem (Tiago Ricarte e Gabriel Martins) delicada, uma fotografia (Leonardo Feliciano) graciosa e uma trilha sonora (Daniel Simitan) emocionante com o roteiro de Martins mostra como a dor pode ser reconfigurada como combustível emocional quando o afeto perdura. Assim como disse Wellington (Carlos Francisco, de Bacurau) em uma das cenas mais tocantes do filme, “Uai, a gente dá um jeito”. – Raquel Freire


Cena do filme de animação “Minions 2: A Origem de Gru”. Na imagem, vemos Gru, um menino de pele branca, olhos azuis e nariz grande usando um casaco cinza e um cachecol listrado em cinza escuro e cinza claro, em cima de uma moto. Junto com ele, vemos dois seres amarelos ovais: um possui dois olhos; o outro, possui um. Os dois usam macacões jeans. Estão em uma rua movimentada.]
Manda brasa, Minichefe! (Foto: Universal Studios)

Minions 2: A Origem de Gru (Minions: The Rise of Gru)

Seres amarelos que servem um chefão do mal, que gostam de banana e que falam uma língua que é a mistura de várias outras. A história de Minions 2: A Origem de Gru conta o que aconteceu depois de Gru achar as criaturas chamadas Minions. Em uma comédia cheia de humor, risadas e trapalhadas, vemos o pequeno Gru e seus conflitos com sua mãe, enquanto ele tenta virar um super-vilão. Em reviravoltas e mais reviravoltas, o Minichefe e os amarelinhos Kevin, Stuart, Bob e Otto mostram seu potencial para lutas, fugas e disfarces, para combaterem o Sexteto Sinistro – um grupo de vilões –, que eram ídolos do menino.

Minions 2: A Origem de Gru foi feito para a família toda e cumpre a promessa de divertir desde a criança caçula ao adulto mais velho. As gargalhadas saem fácil, do começo ao final do longa. É um ótimo filme, com uma boa produção – pelas mãos de Chris Meledandri, Janet Healy e Chris Renaud –, e com uma ótima trilha sonora – executada por Jack Antonoff –, mas que, infelizmente, não supera o primeiro da série Minions e nem a sua saga original, Meu Malvado Favorito. Conhecer a origem de Gru é algo que completa a história inicial, além de enriquecer o universo do malvado mais favorito do Cinema; porém, assim como muitos spin-offs, sempre há a questão: será que havia necessidade para uma nova série? – Laura Hirata Vale


Cena do longa-metragem Bodies Bodies Bodies, da A24. Imagem retangular e colorida. Nela, três garotas estão no interior de uma casa e, com seus rostos sujos de sangue, encaram sérias outra garota, que está de costas para a câmera. Em foco, vemos Sophie, interpretada por Amandla Stenberg, uma jovem negra, com cabelos loiros e trançados, vestindo uma regata e blusa verdes. Ao fundo, levemente desfocadas, vemos Bee à esquerda, interpretada por Maria Bakalova, uma mulher branca, com cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, vestindo uma camisa azul; e Emma à direita, interpretada por Chase Sui Wonders, uma mulher branca, de cabelos castanhos, que veste um vestido branco ensanguentado.
Bodies (3x) é um filme feito por e para nossa geração e, por isso mesmo, tão perturbador na realidade que apresenta [Foto: A24]
Morte Morte Morte (Bodies Bodies Bodies)

Reúna um elenco das atrizes mais estimadas do Twitter, uma trilha sonora com os principais hits das baladas de hyperpop da Rua Augusta, iluminação e figurino retirados diretamente de tutoriais de maquiagem de Euphoria e, quando menos perceber, você foi cooptado pelo cavalo de tróia de Halina Reijn. Em Bodies Bodies Bodies, a diretora agrupa minuciosamente cada um desses signos com a intenção deliberada de fazer com que este seja o produto mais vendável à Geração Z possível, de modo a colocar esse público em uma posição vulnerável para que, aí sim, sejamos obrigados a encarar os demônios do nosso tempo.

Cada um dos sete protagonistas incorpora uma caricatura progressivamente mais exagerada, maculada e pitoresca de um jovem que cresceu imerso no ambiente online. Mas o que poderia descarrilar para um discurso moralista revela-se transcender o joguinho macabro assim que a tempestade do lado de fora reflete os turbilhões internos, até que as rachaduras que sustentam aquelas relações sejam rompidas. O terror slasher e mesmo a comédia satírica não passam de pretexto para espelhar a artificialidade da trama em nosso próprio entorno. Nos recusamos a projetar-nos naquelas pessoas justamente porque seria inevitável. – Enrico Souto


cena do filme My Policeman. No lado esquerdo da imagem está Marion, uma mulher branca com cabelos curtos e loiros; veste um casaco vermelho escuro acima de uma peça de roupa azul claro. Ela olha para o lado direito da imagem, onde está Patrick, um homem branco com cabelos castanhos claros; que veste uma camisa social branca, uma gravata preta e um terno cinza. Entre elas, um pouco mais ao fundo e em desfoque, está Tom, um homem branco com cabelos castanhos; veste uma camisa social branca, uma gravata preta e um casaco azul escuro. Ao fundo, é possível ver algumas obras de arte penduradas em uma parede de tom escuro.
Apesar de parecer, My Policeman não é um triângulo amoroso (Foto: Prime Video)

My Policeman 

Dirigido por Michael Grandage, My Policeman é um drama adaptado do livro de mesmo nome escrito por Bethan Roberts, que narra a triste história do casal Tom (Harry Styles) e Patrick (David Dawson) ao sofrerem com a sociedade homofóbica dos anos 1950 e o casamento de fachada entre Tom e Marion (Emma Corrin). O romance entre os dois homens gays se passa em duas linhas temporais diferentes, o que demonstra perfeitamente como os personagens lidam com o mundo e as consequências de seus atos.  

A ideia central do longa é a de que o maior inimigo do homem é o tempo. As decisões tomadas e os caminhos traçados não podem ser desfeitos, mas podem alterar completamente a vida de alguém. Além de uma história muito humana, o filme, disponível no Prime Video, é agradável esteticamente. A fotografia de Ben Davis, as locações e os figurinos encabeçados por Annie Symons são bem pensados. Além disso, a química evidente entre os três personagens principais foi fundamental para o bom funcionamento do filme. – Gabrielli Natividade


Os anseios de quem não é violento, mas é obrigado a estar na linha de frente da Guerra (Foto: Netflix)

Nada de Novo no Front (All Quiet on the Western Front)

Qual o sentido de uma guerra? Nenhum. Então qual o sentido em mais um filme sobre guerra? Total. Nada de Novo no Front explora o que há de pior sobre um dos maiores conflitos bélicos da história ocidental: a Primeira Guerra Mundial. O longa, dirigido pelas lentes de Edward Berger, é um revival inspirado no clássico e homônimo livro de Erich Maria Remarque, lançado em 1929. Ainda que com pequenas modificações, a trama protagonizada por Daniel Brühl e Felix Kammerer é fiel à cruel narrativa alemã e critica o fato de jovens terem arriscado suas próprias vidas para lutar por ideais terceirizados.

Noventa e dois anos após o sucesso de Sem Novidade no Front (1930), primeira adaptação da obra de Remarque para as telonas, a versão cinematográfica de 2022 chega ao streaming da Netflix e cumpre todos os requisitos capazes para ser vencedora nas categorias de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional do Oscar 2023. Além do enredo dramático, Nada de Novo no Front carrega consigo as fragilidades de um tempo do início do século 20. Como outras produções que retratam a Grande Guerra, o roteiro poderia ficar confortável em retratar, quase de forma exclusiva, a ação das batalhas, mas não o faz. 

A densidade psíquica de cada personagem é sabidamente utilizada por retratar dilemas éticos, medos, angústias, ódios, revoltas, amores e tristezas em um pacote fílmico de duas horas e 28 minutos de duração. Felix Kammer interpreta bem esse dilema, dando vida ao papel de Paul Bäumer, um jovem soldado inexperiente que vê sua trajetória pessoal rumar para caminhos tortuosos. Com o filme, é a primeira vez que um filme alemão sobre a temática crítica da Primeira Guerra ganha tanta relevância no mundo do Cinema. Gabriel Gomes Santana


Cena do filme Não Fale o Mal, que mostra os personagens Patrick, um homem branco de meia idade, olhos, barba e cabelos escuros, que veste uma camisa amarela pastel e um casaco azul marinho, e o personagem Bjørn, um homem branco de meia idade, olhos azuis, barba e cabelos loiros, que veste uma camiseta branca e uma camisa xadrez azul marinho. Eles estão um de frente para o outro e gritam com expressões de terror.
De forma macabra, Não Fale o Mal cresce pelas beiradas, se fortalece sobre o desconforto e mostra como as pessoas são o verdadeiro mal (Foto: Nordisk Film)

Não Fale o Mal (Speak No Evil)

Não Fale o Mal, dirigido por Christian Tafdrup, acompanha uma família dinamarquesa que conhece e se aproxima de uma família holandesa durante as férias. No entanto, o clima se torna estranhamente pesado quando os dinamarqueses decidem aproveitar alguns dias na casa dos holandeses e o fim de semana supostamente agradável lentamente começa a desmoronar.

A tensão persistente do longa dinamarquês é crescente. A trilha sonora de Sune Carlsson Kølster, conflitante e antagônica, desafia os sentidos do espectador e brinca com suas expectativas: a sonoridade intensa e horripilante “engana” a percepção e transforma momentos inocentes em pura angústia. Após a construção do pavor da iminente catástrofe, o desfecho amargo do longa surpreende ao desafiar a capacidade humana de prazer pelo sofrimento alheio além dos limites imagináveis.

Autêntico e provocador, o filme explora choques culturais, tensão entre pais e filhos, comportamentos peculiares, etiqueta e socialização. Em uma combinação precisa, a obra mostra como as dinâmicas dos relacionamentos podem ser cruéis quando as vítimas se tornam cúmplices de seu destino: “Porque vocês deixaram”. – Bruno Alvarenga


A imagem é uma cena do filme Não, Não Olhe, onde o protagonista OJ Haywood, interpretado por Daniel Kaluuya está em cima de um cavalo olhando para frente. O ator está usando um moletom laranja e o cavalo está usando uma máscara verde que o impossibilita de olhar para cima.]
Daniel Kaluuya se consolida como queridinho ao protagonizar Nope, segundo longa de Jordan Peele (Foto: Universal Pictures)

Não, Não Olhe! (Nope)

Em seu terceiro longa como diretor, Jordan Peele não abandona o terror psicológico que acompanhou sua carreira desde o início. Sendo sua marca registrada, o sci-fi aterrorizante de  Não, Não Olhe! enfrenta o desafio de não cair na mesmice ao tratar de um assunto batido no Cinema hollywoodiano: aliens. Felizmente, o filme não depende só disso para se desenvolver. Peele conta com uma narrativa bem construída ao redor da dupla principal e um elenco de peso, trazendo relevância até mesmo para a subtrama do longa. 

Daniel Kaluuya e Keke Palmer interpretam OJ e Emerald Haywood, respectivamente, dois irmãos que, após a morte inesperada do pai, têm que tocar o negócio da família – o treinamento de cavalos para produções audiovisuais. Junto com o luto, os irmãos Haywood precisam lidar com acontecimentos sobrenaturais que afetam o comportamento dos animais e humanos na fazenda da família. Paralelamente, o telespectador é apresentado a Jupe (Steven Yeun), que protagoniza a subtrama ao vivenciar um trauma de infância e projetá-lo nos acontecimentos paranormais. 

Nope discute, entre vários conceitos, a negritude. Porém, diferente de sua obra primogênita, Corra!, o debate é coadjuvante do principal – a espetacularização midiática diante de fatos ou acontecimentos trágicos. Assim como seus irmãos mais velhos Corra! (2017) e Nós (2019), Nope também tem seu início baseado em uma passagem bíblica: Naum 3:6 “Eu jogarei imundície sobre você, e a tratarei com desprezo; farei de você um exemplo”. – Amábile Zioli


Cena do filme “Não Se Preocupe, Querida”. Nela, algumas mulheres aparecem sentadas e em pé, dentro de um bonde amarelo. O foco da imagem está no lado direito da imagem, onde Florence Pugh aparece sentada. Florence é uma mulher branca; de cabelos loiros, que estão trançados; olhos verdes. Está vestindo um vestido branco, com detalhes em preto, e um casaco azul-marinho, com detalhes em branco.
Em Não Se Preocupe, Querida, Florence Pugh dá um show de atuação (Foto: Warner Bros.)

Não Se Preocupe, Querida (Don’t Worry Darling)

Mesmo com todas as polêmicas atrás e na frente das câmeras, Não Se Preocupe, Querida é um thriller psicológico bem feito. Escrito por Katie Silberman, o roteiro é intrigante, e possui um ‘quê’ de mistério que deixa o espectador preso até o final. A história de Alice (Florence Pugh) e Jack (Harry Styles) acontece na cidade fictícia chamada Victory (“Vitória”, em inglês), onde tudo parece estar dentro do normal. Porém, a partir do momento que Alice escuta sua vizinha dizer “Nada tá bem. Eu não durmo. Tenho pesadelos”, coisas estranhas começam a acontecer: com tremores na terra e  quedas de avião a sua volta, a protagonista passa a ter flashes em sua memória, desmaios e sensações bizarras. 

Não Se Preocupe, Querida traz para as telonas assuntos delicados – como relações abusivas e violência sexual –, e não aborda “o prazer feminino”, como havia dito a diretora Olivia Wilde. De forma impactante, o filme consegue mostrar a maldade humana e machista que força mulheres a fazerem ações árduas e dolorosas. Porém, mesmo com todas as suas controvérsias, o longa acertou em sua produção artística: sua trilha sonora foi composta por John Powell, de Como Treinar o Seu Dragão; o figurino, por sua vez, ficou nas mãos de Arianne Phillips, de Era uma Vez em… Hollywood. Ambos ajudaram na construção do suspense, que, em certos momentos, deixam a pessoa que está assistindo com arrepios, na beirada da poltrona. – Laura Hirata Vale 


Cena de Noites Brutais. Nela, vemos a personagem Tess, interpretada por Georgina Campbell, uma mulher negra de cabelos cacheados. Ela veste uma camiseta cinza que está suja. Sua expressão é um misto de medo e desespero, com os olhos arregalados e a boca aberta, como se estivesse ofegante. A iluminação da cena, deixa a parte esquerda de seu rosto completamente escura. Ao fundo uma parede de pedras, vinda de um buraco cavado.
Seguindo a qualidade que o gênero vem calcando na era moderna, Noites Brutais é mais um capítulo do terror com velhos pelados (Foto: 20th Century Studios)

Noites Brutais (Barbarian)

O ano de 2022, sem dúvidas, foi uma das melhores safras do terror atualmente: este nos serviu desde os clássicos de slasher, terror psicológico, de criatura, gore e body horror. Dentre os clássicos instantâneos, Noites Brutais (Barbarian) é o que mais sabe trabalhar as nuances do gênero como um todo, a fim de criar uma atmosfera única. Contando a história de uma mulher que alugou um Airbnb e, ao chegar, vê que a casa já está ocupada por outra pessoa, a obra trabalha em sua própria loucura para criar uma das experiências mais sensoriais e surpreendentes no ano.

Se abstendo da fórmula de três atos, o longa funciona quase como dois média-metragens unidos por alguns de seus conceitos, nesse caso: a própria casa e também a devastação financeira – lembrando que é um filme ambientado na Detroit ainda com sequelas de sua grande crise. Dessa forma, seu prólogo alia a direção de Zach Cregger e a fotografia de Zack Kuperstein para desenvolver um suspense que dá frio na espinha, brilhantemente trabalhado através de várias óticas. A obra, então, vira de ponta cabeça em seu próprio eixo para se assumir como um terror de criatura, que, apesar de ter dividido opiniões nessa segunda metade, alcança uma catarse que o coloca como uma empreitada extremamente original do gênero. – Guilherme Veiga


Cena do filme O dragão do meu pai, na imagem o menino o Elmer e o dragão Boris conversam enquanto passeiam pela floresta. Elmer é um menino de pele branca, cabelo castanho curto, camisa vermelha listrada de branco, bermuda azul e botas pretas e carrega sua mochila preta. O dragão Boris é azul marinho listrado de amarelo com asas douradas e chifrinhos vermelhos.
O amor e amizade demonstrado por Elmer e Boris preenche corações (Foto: Netflix)

O Dragão do Meu Pai (My Father’s Dragon)

Simples e emotivo, esse é O Dragão do Meu Pai. Com uma estética bem infantil, o filme é feito de gráficos básicos que lembram o desenho de crianças – mas não se engane, a trama é capaz de comover corações adultos com tanta sinceridade e confiança. A amizade de Boris e Elmer é tão bonita quanto o amor do protagonista e sua mãe.

A sutileza da animação não apaga a importância de seus debates, a falta de trabalho, o abandono de sua cidade natal para buscar algo melhor em uma metrópole e a solidão de uma mãe que sustenta sozinha o seu filho. Elmer traz todo o brilho e leveza para esse tipo de diálogo, abordando temas tão importantes com a beleza que somente as crianças possuem. O que falta para um bom final seria conhecer a narradora, filha de Elmer, o que é compreensível para um fim singelo. – Thuani Barbosa


Já popular no Festival Internacional de Cinema de Berlim, Hong Sang-soo recebeu pela terceira vez o Urso de Prata do Grande Prêmio do Júri, por O Filme da Escritora (Foto: The Cinema Guild)

O Filme da Escritora (The Novelist’s Film)

Mesmo que seUs filmes não destinem o olhar a outra coisa além da vida como ela é, Hong Sang-soo pouco adentra no que seria uma linguagem documental, apesar de seus personagens não poderem ser mais verdadeiros à realidade do que já são. Talvez seu segredo resida no tipo de vida a qual o diretor escolhe direcionar suas lentes; uma pouco construída pelo que, já muito capturado pelo Cinema, é grandioso. Em O Filme da Escritora, Sang-soo continua seu costumeiro olhar às pequenezas e à beleza mundana, movida por conversas calorosas regadas a álcool e literatura e confissões silenciosas de amigos distantes e de desconhecidos; mas, essencialmente, por personagens em uma insistente sensibilidade ao mundo que os cerca, permitindo, em suas andanças, sempre serem movidos e moldados por seus encontros. 

O que potencializa e diferencia o longa de sua prolífica filmografia é o comentário — que acaba, de certa maneira, sendo de um caráter quase ensaístico ao diretor — a sua própria prática criativa. Ao centrar-se em uma escritora tateando novos territórios de sua expressão, interpretada pela espetacular Lee Hye-Yeong, a história está inserida em um universo onde os arcos narrativos não são centrais aos planos visualmente econômicos e saturados em preto e branco. Mas sim, em seus personagens e sequências de extrema sinceridade, em uma transposição total do poético às telas do cinema. Em The Novelist’s Film, existe um excedente das singelas atuações que transbordam o que ali há de real e, sem muitos esforços, mostram a possibilidade de realização de uma arte movida por nada além de um sentimento imenso. — Enzo Caramori


Cena do filme O homem do jazz, na imagem Bayou está cantando com os olhos fechados e um sorriso. Bayou é um homem negro, de cabelos pretos curtos e cacheados, veste camisa branca e colete bege.
O Homem do Jazz levou anos para ser produzido, mas seus resultados revolucionaram a carreira de Tyler Perry (Foto: Netflix)

O Homem do Jazz (A Jazzman’s Blues) 

A história de amor de Bayou e Leanne pode ser descrita em muitas palavras: romântica, realidade e revolta. A trama de O Homem do Jazz acontece em 1940, em um período pós escravocrata no sul dos Estados Unidos, que retrata a vida de Bayou (Joshua Boone), contada pelos olhos de sua mãe; um jovem negro que foi morto cruelmente e teve seus direitos apagados pelo simples fato tentar viver um amor impossível. Mesmo que todo o sofrimento seja causado por um sistema falho e racista liderado por homens poderosos, é impossível separar o sentimento de raiva por Leanne (Solea Pfeiffer), que teve chances de salvar seu grande amor, mas preferiu o egoísmo de perdê-lo para a morte.

Além de toda a perfeição do enredo de Tyler Perry (que poderia facilmente ser baseado em fatos reais), a musicalidade e singeleza nas atuações conquistam qualquer um que as vejam, principalmente o incrível trabalho de Boone, ator que deu vida ao protagonista e emocionou o público com seu talento. Mesmo que para alguns o longa explore estereótipos, a produção condiz com a escrita melodramática dos anos 1990, com personagens sofridos, brigas clássicas e um romance proibido. Thuani Barbosa


Cena do filme O Homem do Norte. No frame, ambientado em um vilarejo tradicional dos anos 900 em terras de povos nórdicos, aparece em foco Amleth, interpretado por Alexander Skarsgård. Amleth é um homem forte, alto, que aparece sem camisa, tendo seu corpo com manchas de sangue. Em seus dois braços ele utiliza braceletes prateados, além de um colar no peito. Seu cabelo é loiro e grande, seu olho é claro e ele possui uma barba volumosa.
Em O Homem do Norte, esquecemos que Alexander Skarsgård é ele mesmo, ao interpretar com veemência um príncipe quase animalesco em busca de sua vingança (Foto: Universal Studios)

O Homem do Norte (The Northman)

Ao lançar mais um longa, o diretor Robert Eggers demonstra um domínio que exprime o motivo por ser tão aclamado pela crítica. Contando uma história já muito explorada pela indústria cinematográfica, com um orçamento muito maior do que o de seus filmes anteriores (aproximadamente 90 milhões de dólares) e um elenco de grandes nomes, como Alexander Skarsgård, Anya Taylor-Joy (revelada pelo longa anterior do diretor, A Bruxa), Nicole Kidman e Björk, O Homem do Norte (The Northman) veio brutal, direto e com uma sede de vingança. 

No longa, conhecemos a história de Amleth (Alexander Skarsgård), um príncipe viking que, ao presenciar, ainda jovem, o assassinato de seu pai por seu tio, tem sua trajetória completamente mudada. Seus objetivos em vida viram três: a vingança de seu pai, o salvamento de sua mãe e a morte de seu tio. A história de cada personagem e as reviravoltas do roteiro, feito por Eggers em parceria com Sigurjón Birgir Sigurðsson, mantém um ritmo brutal, mas que carrega uma delicadeza única do diretor, que se ateve a todos os detalhes de cenário, figurino e uma direção de câmera magistral. O projeto é uma obra visual impressionante, que reconta uma história de um jeito nada tradicional, traduzindo um conto em Sétima Arte. – Aryadne Xavier


Cena do filme The Menu. Na imagem, vemos Anya Taylor-Joy, que interpreta Margot, mulher branca de cabelos ruivos, usando um vestido violeta sentada na mesa de um restaurante, com uma taça de champagne à sua frente. Ao seu fundo podemos notar as outras mesas com os clientes e de pé, os garçons.
O Menu tenta ser terror mas acaba caindo na comédia (Foto: Searchlight Pictures)

O Menu (The Menu)

Coloque uma pitada de suspense, cozinhe no humor, deixe de molho em caos e coloque no forno por 106 minutos. Pronto, O Menu está pronto para ser servido. Dirigido pelo mesmo diretor de Succession, Mark Mylod, a produção nos leva para um jantar homicida do Chef Slowik, interpretado meticulosamente por Ralph Fiennes, em que a tensão e a humilhação aumentam a cada prato servido. A protagonista aqui é Anya Taylor-Joy, que interpreta Margot, uma personagem que não estava nos planos daquela noite e que, querendo ou não, nos representa naquele ambiente.

O filme é classificado como terror, porém, a premissa é a mesma de Succession: rir da cara de ricos. A vexação aprofundada na história de cada convidado é o que diverte a quem assiste, além do excessivo constrangimento do personagem de Nicholas Hoult, Tyler. Fora isso, outro destaque é a sua fotografia, assinada por Peter Deming, que brinca com a criatividade dos pratos e a utiliza a seu favor. No geral, O Menu não traz muitas inovações à mesa, mas é uma ótima degustação. – Arthur Caires


Fotografia presente no filme "O Mistério de Marilyn Monroe". Uma mulher loira olha sorridente para o horizonte. Um homem de óculos de armações escuras pega em seu braço. Ele coloca a cabeça sob seu ombro e olha em direção ao vestido dela. Estão numa paisagem campestre sentados sob uma árvore.
Diferente das adaptações recentes e indecentes dela, Norma Jeane era muito mais do que seus retratos midiáticos; logo, o documentário nos habitua a ver outras faces da atriz (Foto: Netflix)

O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas (The Mystery of Marilyn Monroe: The Unheard Tapes)

O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas é um conjunto tocante de fatos abordados através de fitas gravadas pelo próprio psiquiatra de Marilyn Monroe, em um tom de veracidade, menos romantizado que adaptações recentes da vida da atriz, que não fizeram favor a sua imagem. Diga-se de passagem, gasta pelo uso e reuso, assim como o abuso, de uma história de vida densa.

O documentário também levanta mistérios e conspirações, mostrando evidências baseadas em testemunhas e documentos. Porém, isso talvez não seja o melhor ponto do filme, e sim a humanização da pessoa Norma Jeane. É possível apreciá-la em diversos momentos que vão além da imagem hollywoodiana que, quase sempre, é a propagada. Se você for fã de true crime, drama e documentários, O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas é uma forte recomendação. – Izadora Azevedo Albertini 


Cena do filme O Pálido Olho Azul. Homem branco barbudo de cabelos grisalhos segura uma chama numa sala de papel de parede estampado azul, preto e branco. Ele está perto de uma lareira e sob ela um relógio antigo, uma pintura e outros objetos. Ele olha para além daquele espaço observando algo na distância.]
Edgar Allan Poe escreveu a primeira história moderna de detetives antes mesmo de Agatha Christie, com o personagem Auguste Dupin, que teve sua primeira aparição em 1841 (Foto: Netflix)

O Pálido Olho Azul (The Pale Blue Eye)

O Pálido Olho Azul é um mistério de época que faltava no catálogo da Netflix. Os fãs dos gêneros mistério e policial, além de filmes de época, devem ter se entusiasmado e tiveram suas expectativas atendidas: a obra é um deleite. O mais surpreendente durante mais de duas horas de filme são os últimos 20 minutos do título. Podemos estar nos adiantando, mas é um tempo bem gasto.

Christian Bale, intérprete do detetive Augustus Landor, entrega um personagem racional e frio, mas extremamente humano e falho. Harry Melling, que atua como Edgar Allan Poe, certamente é uma ótima representação de como o autor seria enquanto em vida: um ser no mínimo peculiar, cativante e misterioso, mas muito gentil. A melhor parte do filme é a atuação dos dois papéis principais, com uma boa química entre eles, reviravoltas e contradições nas ações entre Poe e Melling. Ao final, o espectador torce para que o autor dos romances fique com a mocinha e deseja tê-lo conhecido – uma inspiração para diretores de Cinema, escritores de livros e roteiristas ainda hoje. – Izadora Azevedo Albertini


Cena do filme O Predador: A Caçada. Naru (Amber Midthunder) está de costas contra uma árvore, preenchendo a metade esquerda da tela, escondida do Predador, à direita, fora de foco. Naru é uma mulher Comanche de cabelos pretos e longos, usando roupas de couro marrom. Manchas de sangue cobrem o seu rosto. Atrás dela, podemos ver que o Predador possui cabelos pretos e longos e um tipo de capacete branco. Está de dia, com uma luz do Sol branca iluminando-os por entre as folhas das árvores.
“Se ele sangra…” (Foto: Hulu)

O Predador: A Caçada (Prey)

Quase 40 anos depois que o clássico estrelado por Arnold Schwarzenegger mudou o Cinema de ação e introduziu um dos grandes monstros da ficção científica, o Predador volta às telas – só que dessa vez, direto para o streaming. Dirigido por Dan Trachtenberg (Rua Cloverfield, 10), O Predador: A Caçada é um prelúdio do filme de 1987, se passando quase 200 anos antes que o icônico alienígena enfrentasse o Major Dutch nas selvas da América Central. Aqui, acompanhamos a jornada de coming-of-age de Naru (Amber Midthunder), uma guerreira Comanche tentando se provar para o resto de sua tribo.

O roteiro de Patrick Aison entende algo que a maioria das sequências do Predador se esqueceram: o Predador não é suficiente. É preciso haver alguém que valha a pena seguir e torcer para que sobreviva à perseguição, contra todas as possibilidades. O novo filme retoma essa tradição, introduzindo uma protagonista que cresce durante a jornada e se torna uma adversária à altura de seu oponente, em uma estrutura certamente clássica, mas inteiramente efetiva. Apesar de estar sempre procurando por novos recursos, a maior arma de Naru acaba se tornando sua mente inquisitiva e astuciosa. Ela é a primeira que percebe que há algo na floresta que não deveria estar ali, escalando a cadeia alimentar em direção à ela e sua tribo.

Apesar das sequências de ação do filme não deixarem à desejar, é na tensão que Trachtenberg brilha, construindo habilmente a rivalidade entre a guerreira e o Predador (que também possuí novos brinquedos que nunca vimos antes) em direção à um clímax tão arrebatador em sua claridade emocional e física que se torna impossível não vibrar com cada golpe recebido. Resta apenas torcer para que a franquia finalmente volte aos eixos e que as próximas sequências recebam de volta a honra de serem lançadas em uma sala de cinema. — Gabriel Oliveira F. Arruda


Cena do filme O Telefone Preto. Na imagem, o sequestrador Albert está dormindo sentado enquanto o menino Finney o observa, tentando escapar. A câmera captura o homem a partir do busto e a criança a partir do joelho. Albert é um homem branco de cabelos castanhos que veste uma máscara assustadora para cobrir o rosto. Shaw é um menino branco de cabelos castanhos e olhos escuros. Ele veste uma camisa cinza de mangas longas azuis e uma calça jeans. O cenário é a casa de Albert, onde há móveis em tons terrosos e uma iluminação amarela.
O Telefone Preto marcou o reencontro do diretor Scott Derrickson e o ator Ethan Hawke com o terror (Foto: Universal Studios)

O Telefone Preto (The Black Phone)

Em O Telefone Preto, Ethan Hawke tinha uma máscara, um telefone preto quebrado no porão e um carisma assustador capaz de hipnotizar qualquer criança. Porém, a sua presença intimidadora fez parecer que ele desejava algo a mais: prender a respiração do público. E Hawke conseguiu., nNa pele do sequestrador Albert, o ator se transformou em uma aberração que deixou o rastro do horror no ar, responsável por causar repulsa em quase todas as cenas que dividia com Finney (Mason Thames). Esperto na direção do longa, Scott Derrickson trouxe para as telas do Cinema o pavor do conto de mesmo nome do autor estadunidense Joe Hill.

Com roteiro e premissa simples, o texto de Derrickson e C. Robert Cargill ganha dimensão através do elenco adulto e infantil, ambos excelentes e mergulhados por completo na profundidade da atuação que uma produção de suspense exige. Ambientado no final da década de 1970, o longa possui efeitos especiais um tanto quanto bizarros, mas que, surpreendentemente, não tiram a imersão da atmosfera de medo. Produzido pelo veterano das franquias de terror Jason Blum, O Telefone Preto acertou ao colocar Ethan Hawke no comando do temor e se consagrou entre os melhores filmes do gênero em 2022. – Nathalia Tetzner


O filme foi transmitido na 20ª edição da Flip, acompanhado de um bate papo com Annie Ernaux e David Ernaux-Briot, diretores do filme (Foto: Les Films Pelleas)

Os Anos do Super 8 (Les Années Super 8)

Lembrança e esquecimento. Os eixos temáticos que atravessam a obra literária da escritora Annie Ernaux, laureada pelo Prêmio Nobel da Literatura, fazem que seja natural o destino — trilhado por sua característica autosociobiografia — a uma apropriação reflexiva dos arquivos, como feita no filme Os Anos do Super 8. O longa, ambientado pelas imagens silenciosas das filmagens de uma câmera Super 8, que capturou a esfera matrimonial e familiar da autora por mais de uma década, é montado a partir da narração de um texto de Ernaux acerca dos anos em que a máquina esteve presente na construção de suas relações interpessoais, sempre (como em sua escrita) em confronto com o coletivo. 

Lançado em 2022, Les Années Super 8 — título original da obra estreante, no Brasil, na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo — adiciona uma sensibilidade única à prática recorrente de retomada de arquivos ao se propor ao desafio de procurar, em imagens extremamente íntimas e domésticas, registros invisíveis das mudanças não apenas de um núcleo familiar, mas sim de uma geração. A delicadeza melancólica com que Ernaux e seu filho (e também parceiro de direção do longa), David Ernaux-Briot, se vêem diante dos arquivos — como guardiões de uma luminosidade e de um tempo único de suas vidas — é o que confere excepcionalidade a um trabalho tão verdadeiro a si mesmo quanto a literatura da autora. – Enzo Caramori


Martin McDonagh reúne Brendan Gleeson e Colin Farrell em um conto melancólico sobre amizade e existencialismo (Foto: Searchlight Pictures)

Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin)

Em 1923, na ilha fictícia de Inisherin, os sons da guerra civil irlandesa são ouvidos diariamente, de forma alternada às conversas e fofocas alheias. Esse cenário, contudo, diz bem mais do que parece dizer: as bombas do outro lado do mar sintetizam o caos emocional no qual, em breve, todos os personagens estarão submersos. Com um roteiro sempre à beira do colapso, Martin McDonagh reúne novamente em Os Banshees de Inisherin Colin Farrell e Brendan Gleeson, que dividiram o protagonismo em seu longa de estreia, In Bruges (2008).

Na trama, depois de anos bebendo juntos no pub da ilha, Pádraic (Farrell) recebe uma recusa de seu melhor amigo, Colm (Gleeson), e demora a entender que essa situação é permanente. Eles são diferentes, um tipo de “yin-yang do Cinema” que, aqui, é muito bem trabalhado: Pádraic é a alma doce e ingênua, que pode ficar horas falando sobre sua burrinha, Jenny – possivelmente seu único amor verdadeiro. Colm, por outro lado, é o malicioso intelectual, o músico deprimido que quer deixar “uma marca no mundo”. Dessa situação – a princípio insustentável – surge uma das tramas mais fascinantes de 2022, na qual Colin Farrell se sobressai (tarefa difícil, visto que Kerry Condon e Barry Keoghan também integram o elenco).

McDonagh constrói as cenas no mesmo espaço, quase como uma peça de teatro gravada. O personagem de Farrell tem como característica “se transformar” quando fica alcoolizado; essa mudança é crucial no desenrolar da trama, mas é ainda mais contundente ao demonstrar a habilidade do ator, que precisa dar vida a um indivíduo que gradualmente perde sua bondade. Os Banshees de Inisherin mescla constantemente a comédia e a tragédia, nos fazendo rir da desgraça de forma civilizada, como se fosse a adaptação de um conto de James Joyce. Não por acaso o longa foi o grande vencedor do Globo de Ouro deste ano, e chega ao Oscar como um dos favoritos a pelo menos uma estatueta. – Bruno Andrade


Cena do filme de animação Os Caras Malvados, da DreamWorks. Imagem retangular e colorida. Nela, cinco animais antropomorfizados tiram uma ‘selfie’ com uma câmera analógica em frente a um bolo de aniversário. O personagem que está no meio, uma cobra amarela vestindo um chapéu de pescador, está com um rosto sério e parece não gostar da situação. Os outros quatro: um lobo vestindo blazer branco, que segura a câmera; uma pequena tarântula laranja, com fones de ouvido no pescoço; um grande tubarão branco e uma piranha verde; sorriem empolgados para a foto.
O diretor de The Bad Guys, Pierre Perifel, foi responsável pelos efeitos visuais de A Lenda dos Guardiões, um dos filmes de maior apelo visual da Dreamworks (Foto: Dreamworks)

Os Caras Malvados (The Bad Guys)

Desde a ascensão de Frozen em 2014, a Disney constrói uma hegemonia na indústria de animações. Contudo, além de sua expansão vertiginosa, outras de suas maiores concorrentes, como é o caso da DreamWorks Animations, passaram por maus bocados. Com o fim de suas principais franquias, o estúdio apostava em projetos divertidos, porém gradativamente mais efêmeros. Até que um Aranhaverso entrou no caminho, colocando as técnicas de animação 3D em metamorfose e alterando de vez a rota das produções da Dreamworks. Antes mesmo do sucesso aterrador de Gato de Botas 2, Os Caras Malvados é produto direto disso. 

Seguindo a lógica de reimaginar gêneros estabelecidos de histórias à sua maneira, The Bad Guys é o heist movie da DreamWorks, assumindo o caráter lúdico do arquétipo de seus protagonistas e os explorando de maneira tão astuta quanto as tramoias do inusitado grupo de animais fora-da-lei. Adaptar livros infantis para longas-metragens não é uma tarefa simples e é por isso que Etan Cohen, Yoni Brenner e Hilary Winston guiam o roteiro para que, imersos em uma trama tão simples quanto poderia ser, os personagens se tornem a bússola do projeto. São nos momentos mais singelos, entre tomadas de seu incrível espetáculo visual, que Os Caras Malvados reencontra a essência do estúdio – Enrico Souto.


A foto mostra uma cena do filme onde Sammy Fabelman, interpretado por Gabriel Labelle, está ao ar livre olhando para a câmera com um olho enquanto o outro olho está atrás de uma câmera, o menino está filmando uma cena
Ao ser indicado à categoria de Melhor Direção por Os Fabelmans, Steven Spielberg se iguala a Martin Scorsese com nove indicações (Foto: Universal Pictures)

Os Fabelmans (The Fabelmans)

Com mais de 40 filmes compondo sua filmografia, em 2022 Steven Spielberg decide relembrar sua juventude em longa semi-autobiográfico – Os Fabelmans, uma declaração de amor ao Cinema. O filme, como promete, acompanha a história de Sammy (Gabriel LaBelle), alter ego de Steven, no processo do descobrimento de sua paixão pelo audiovisual após ser levado ao cinema pelos pais pela primeira vez para assistir O maior espetáculo da Terra. A partir daquele momento, o filme se torna metalinguístico ao passo em que Sammy começa a fazer suas próprias gravações em casa. 

A narrativa é complementada com o lirismo das relações entre a família Fabelman. Paul Dano e Michelle Williams interpretam com louvor os pais do protagonista e trazem o drama necessário para o desenvolvimento da biografia, formando uma família extremamente relacionável, que, apesar de por fora parecer perfeita, carrega segredos e conflitos internos. LaBelle, que interpreta com excelência o jovem Spielberg, vivencia essas revelações e está sempre com uma câmera em mãos, registrando até os momentos mais infelizes. – Amábile Zioli


Cena do filme Pânico 5. Na fotografia, a personagem de Jenna Ortega está dentro de uma casa com uma porta de vidro branca e uma cortina. Ela olha apreensivamente para fora, procurando por algo. Ela está usando um suéter rosa, calça jeans, seu cabelo castanho está preso e ela segura um celular com a tela desbloqueada que reflete uma luz azulada. Os tons da fotografia são quentes.
O roteirista Kevin Williamson escreveu o primeiro filme de Pânico após assistir um documentário sobre o serial killer Danny Rolling (Foto: Paramount Pictures)

Pânico 5 (Scream)

Alguns clássicos simplesmente nunca saem de moda. A querida franquia Pânico retornou em 2022 para mostrar que sua fórmula não será ultrapassada, mesmo apesar da nova temporada de obras pós-terror. Com boa parte do elenco original para nos trazer nostalgia e com diversas referências aos seus antecessores, o slasher consegue revitalizar uma narrativa que fez sucesso por 20 anos para uma nova geração – afinal, quem ainda usa o telefone fixo em casa? Em uma bela homenagem ao falecido Wes Craven, co-criador dos quatro primeiros filmes da sangrenta saga do vilão Ghostface, temos em Pânico 5 o surgimento de novas protagonistas que entenderam muito bem o legado que a icônica dupla Sidney Prescott (Neve Campbell) e Gale Weathers (Courtney Cox) deixaram. 

Nesta era inédita, vemos as irmãs Sam Carpenter (Melissa Barrera) e Tara Carpenter (Jenna Ortega) brilharem na busca do assassino e se surpreenderem junto com o público em sua descoberta: ficamos de queixo caído em mais uma inesquecível revelação do Ghostface,  uma confirmação de que um bom vilão sempre será famoso – tão famoso que já abalou novamente as estruturas em um trailer de tirar o fôlego, anunciando que não demoraremos muito para ver o sexto filme nas telas do cinema. De fato, apesar da obra vir em um ano de slashers de altíssimo nível,  Pânico 5 conseguiu consagrar-se tanto na bilheteria quanto com o público. A verdade é que estamos mais do que felizes com a volta da franquia que fez boa parte da geração Z se apaixonar pelo horror. – Clara Sganzerla


Cena do filme Pantera Negra: Wakanda para Sempre. Na imagem está o personagem Namor, interpretado por Tenoch Huerta. Ele é um homem latino de cabelos curtos pretos, tem orelhas pontudas e sobrancelhas cheias. O personagem está vestindo brincos verdes, um adereço no septo e diversos colares. Em suas mãos há uma lança.
Após a morte de Chadwick Boseman em 2020, Wakanda ganhou cores sob o saudosismo (Foto: Disney+)

Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever)

Os caminhos de Ryan Coogler para fazer com que Pantera Negra alcançasse uma continuação à altura depois da morte do ator do protagonista T’Challa, Chadwick Boseman, eram misteriosos. Felizmente, algumas surpresas são boas e Pantera Negra: Wakanda para Sempre foi uma dessas. O longa-metragem usa a delicadeza do universo singular de Wakanda para trazer cultura e ancestralidade quando o assunto são despedidas. O movimento se afasta de outras produções Marvel, mas isso é feito com um propósito tão nobre que acaba se tornando um diferencial e não uma falha. 

Outro destaque do enredo – de autoria do diretor em parceria com Joe Robert Cole – é a construção do vilão Namor (Tenoch Huerta). O personagem, que aparece nos quadrinhos ainda na década de 30 como pioneiro na ideia de contraposição aos heróis, tem suas convicções e ideais muito bem construídos em sua adaptação para as telas. No filme, ele e os cidadãos de Talocan são inspirados nos povos nativo-americanos e é isso que torna suas motivações tão sinceras e bem estabelecidas. Sua defesa pela segurança dos seus e o medo do que o interesse na exploração dos recursos pode causar são tão verdadeiros que até sua classificação como vilão é questionável – anti herói é um termo mais adequado. 

Nem as polêmicas da vida pessoal de Letitia Wright não foram suficientes para apagar o brilho de Shuri e a protagonista continua primorosa. Sob a atuação segura e expressiva da atriz, seu processo de amadurecimento é doloroso, mas envolto por muito respeito e serenidade. Em outros aspectos, Black Panther: Wakanda Forever – nome original da produção – mantém o encantamento. As roupas e cenários – responsabilidade da figurinista Ruth E. Carter e da desenhista de produção Hannah Beachler – são esplendorosos, assim como a fotografia de Autumn Durald Arkapaw, que traz leveza e sensibilidade mesmo nas cenas de mais ação. Wakanda, vai ser um prazer estar para sempre com você. – Jamily Rigonatto


Cena do longa-metragem Passagem, da A24. Imagem retangular e colorida. Nela, Lynsey, interpretada por Jennifer Lawrence, e James, interpretado por Brian Tyree Henry, comem raspadinhas nos fundos de uma sorveteria. Lynsey é uma mulher branca, com cabelos lisos e loiros, que veste uma regata azul-clara. Ela sorri para James e segura uma raspadinha colorida. James é um homem negro, de cabelos crespos e escuros, que veste uma camiseta branca lisa e leva uma blusa marrom e verde nos ombros. Ele olha para Lynsey, enquanto morde sua raspadinha de cor branca.
Viraram queridinhos da Academia, mas não é só da academia, é que eles são bons mesmo (Foto: A24)

Passagem (Causeway)

Há uma estranheza primordial a Passagem. Em todas as interações entre Lynsey (Jennifer Lawrence) e James (Brian Tyree Henry), desde o momento em que um carburador danificado uniu a trajetória dos dois, paira no ar uma sensação de deslocamento, como se houvesse uma barreira contínua os impedindo de se conectarem em plenitude e, não importa o esforço, não conseguissem a ultrapassar. Entretanto, é essa persistência em construir pontes e continuar existindo, ao lado e apesar de seus traumas, que dá sentido à experiência dilacerante de Causeway.

Não é por acaso que a diretora Lila Neugebauer dê tamanha ênfase no processo de Lynsey de reaprender as tarefas mais básicas, como andar ou comer, em paralelo a solitude de sua relação com James que, tal qual ela, precisa descobrir como amar de novo. É a partir desses vazios deixados por seus personagens que Lawrence e Tyree Henry, indicado pela primeira vez ao Oscar como Ator Coadjuvante, preenchem o filme, transbordando os limites da tela e colocando cenas absolutamente cotidianas entre as mais intensas do ano. – Enrico Souto


Cena do filme Pearl. Mia Goth, que interpreta a personagem principal Pearl, é uma mulher branca e jovem de cabelo castanho escuro. Ela aparece centralizada na imagem, com o cabelo repartido ao meio e preso por dois acessórios de renda brancos. Com os olhos arregalados e lacrimejados, ela encara a câmera e sorri. Ao fundo, da esquerda para direita, nota-se um cenário de cores azuladas e alaranjadas, indicando o interior de uma casa
Mia Goth encara o abismo e este o encara de volta em um ciclo de terror psicológico (Foto: A24)

Pearl

Apesar de não se enquadrar, essencialmente, no rótulo de comfort movie, Pearl acabou caindo nas graças do nicho social adepto da glamourização de atos trágicos, tais como chorar no banho e pedir Melodrama em festas. Ademais, a obra dirigida por Ti West estabelece laços de irmandade com o filme X, isto é, apresenta-se como história de origem da personagem Pearl. Esta, por sua vez, é interpretada magistralmente por Mia Goth em uma jornada a qual não deve ser limitada à denominação de prequel, mas pensada enquanto prova de que mommy issues e quebras de expectativas juvenis assustam mais do que qualquer monstro feito em CGI

Pearl é, no fim, uma visita aos pontos turísticos da psique da protagonista cuja desenvoltura é medida por angústia e imprevisibilidade. Além disso, essa viagem pelas ramificações da personagem é guiada por uma fotografia colorida – típica do technicolor dos anos 40 – e por um roteiro envolvente, escrito por Mia Goth e Ti West, que faz qualquer um abandonar o celular e aproveitar o momento. Mesmo bebendo da fonte do terror clássico dos anos 70, o filme quer saciar sua sede em uma geração que busca suprir expectativas e sonhos criados por e para ela, seja com suor ou, no caso de Pearl, sangue.  – Ana Cegatti


Pinóquio, um boneco de madeira cortada de forma rústica, com membros muito finos e nariz comprido se apresenta em um palco, Gepeto aparece no canto da cena de costas, mostrando apenas sua barba branca e parte de sua face.
A estética das criaturas de Guillermo del Toro é sua marca registrada (Foto: Netflix)

Pinóquio (Guillermo del Toro’s Pinocchio)

Graças às leis de direitos autorais, o conto clássico italiano de Carlo Collodi sobre as desventuras de um boneco de madeira que ganha vida foi agraciado com inúmeras releituras sob as mãos de diversos artistas nos últimos anos. Só em 2022, nós tivemos dois filmes sobre o mentiroso mais famoso do planeta. Para muitos Pinóquio de Guillermo del Toro, pode, por hora, figurar como o filme definitivo da franquia.

Exclusivo da Netflix, o longa-metragem é fruto do maior rigor artístico possível. Só por se tratar de uma animação Stop Motion, ele necessitaria de toneladas de esmero e dedicação e del Toro não entregou menos que isso. Com mil dias de  produção e mais de 900 dias de filmagens – isso sem contar os quase dez anos em que o diretor tentava convencer os estúdios a realizarem o projeto -, o filme é a própria definição de obra de arte.

O enredo escrito por del Toro e Patrick McHale se desenvolve em meio ao auge do governo fascista na Itália dos anos 1930. A maturidade dos temas tratados surpreende, transitando entre a rejeição parental até a mortalidade e o luto, assuntos que dialogam com a intimidade do próprio diretor. Pinóquio mostra que apesar de navegar em um mundo fantástico, definitivamente não é inocente ou infantil. – Guilherme Dias Siqueira


Cena do filme Predestinado: Arigó e o Espírito do Dr. Fritz. Imagem horizontalmente retangular. Ao fundo, vemos um ambiente natural, formado por algumas árvores, um chão de terra e um riacho. No lado esquerdo da imagem, vemos os personagens Zé Arigó e Chico Xavier. Ambos estão sentados no chão e encontram-se distantes da câmera. Zé Arigó veste uma camisa amarela, uma calça marrom, apoia os braços na perna e olha para baixo. Chico Xavier veste uma camisa branca, uma calça clara, óculos escuros e olha para frente. Arigó e Chico aparecem refletidos no riacho.
A atmosfera de Predestinado: Arigó e o Espírito do Dr. Fritz é capaz de encantar dos mais céticos aos mais religiosos (Foto: Imagem Filmes)

Predestinado: Arigó e o Espírito do Dr. Fritz

Razão e fé, paz e tormento, livre arbítrio e predestinação. É por meio de tensões que Predestinado: Arigó e o Espírito do Dr. Fritz se fortalece como narrativa cinematográfica e foge dos clichês de uma cinebiografia. Ao contar a história do médium mineiro José Pedro de Freitas, mais conhecido como Zé Arigó, o longa-metragem de Gustavo Fernández não tenta impor religiões e crenças, embora reconstrua, com posicionamentos bem explícitos, o cotidiano e as contradições de um homem que demorou para aceitar sua verdade e seu propósito de vida.

A temporalidade permanece suspensa nas quase duas horas de Predestinado, e o espectador acompanha o dia a dia de Zé Arigó em detalhes significativos, que parecem relatar uma vida inteira em tempo real. Não há quem fuja do teor reflexivo do longa-metragem, capaz de questionar desde a veracidade de crenças e cirurgias espirituais até a nem sempre explícita disputa de narrativas religiosas historicamente firmada em solos brasileiros. No fim, caso esse conjunto de qualidades ainda não convença o espectador mais exigente, a atuação de Danton Mello já serve de satisfação e deleite para corpo e alma. – Eduardo Rota Hilário


Red é a representação metafórica do amadurecimento feminino (Foto: Disney)

Red: Crescer é uma Fera (Turning Red)

Em Red: Crescer é uma Fera, o primeiro filme da Pixar dirigido unicamente por uma mulher, Domee Shi, uma artista sino-canadense, nos conta uma história muito íntima sobre amadurecimento e aceitação. No Canadá, durante os anos 2000, uma garota de ascendência chinesa chamada Mei Lee, após entrar na puberdade, descobre que, devido a uma espécie de maldição familiar, toda vez que seus sentimentos são aflorados ela se transforma em um panda vermelho, metáfora mais que explícita para as mudanças do corpo feminino e a chegada da adolescência. 

A diretora equilibra muito bem o tema sério com um tom leve e engraçado. Ao mesmo tempo em que utiliza expressões exageradas e visuais cartunescos inspirados nas animações e animes que assistia durante a infância, a obra faz bom uso do diálogo e subtexto para nos mostrar o conflito de gerações dentro da tradição familiar chinesa. A inocência, juntamente com a competência artística de seus realizadores, fazem com o que o filme estabeleça uma conexão única com seus mais diversos espectadores. Por isso, Red: Crescer é uma fera, além das várias indicações e vitórias em premiações mundiais, concorre ao Oscar 2023 na categoria de Melhor Filme de Animação. – Leonardo Ribeiro Jorge


Regra 34 foi exibido no Festival do Rio e na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Imovision)

Regra 34

Se a pornografia já é polêmica o suficiente para render discussões e motivar incontáveis linhas de raciocínio em produções, Regra 34 cruza o assunto com o BDSM e os confronta com a violência – tanto física quando de gênero e racial. Na obra, Simone, estudante de Direito que paga pela faculdade com seus lucros em um site pornô, trabalha em uma instituição de denúncias de agressões à mulher e, paralelamente, passa a experimentar o BDSM, prática sexual que, consentida, envolve violência.

A condução questionadora de Júlia Murat na direção recusa juízos de valor. As contradições da protagonista, interpretada profundamente e cheia de nuances por Sol Miranda, estão à mostra: defendendo mulheres durante o dia, ela procura a violência em seus momentos de lazer. Com os eventos à exposição, o espectador é livre para tirar suas próprias conclusões sem que a diretora e roteirista – junto de Gabriela Capello, Rafael Lessa e Roberto Winter – interpretem a moral de Regra 34. No retrato da vida real, não há uma. – Vitória Gomez


Cena do filme Resurrection. Margaret (Rebecca Hall) é uma mulher caucasiana magra de cabelos negros, olhando fixamente para a direita da tela, com seu rosto parcialmente refletido em um espelho no lado direito. Ela usa um casaco cinza por cima de uma camiseta escura. O fundo está fora de foco, mas parece ser uma loja de departamentos iluminada por luzes frias. O reflexo dela parece encarar a câmera intensamente.
O passado não fica enterrado (Foto: IFC Films)

Resurrection

Muito se fala do monólogo impressionante de Mia Goth no terceiro ato de Pearl, mas é igualmente necessário falarmos sobre os oito minutos de loucura proferidos por Rebecca Hall no ponto de virada de Resurrection: nele, a atriz veterana se presta ao papel de Margaret, uma mãe solteira atormentada por um fantasma de seu passado na forma de David (Tim Roth), em uma performance maravilhosamente contida e subjugada. Escrito e dirigido por Andrew Semans, o suspense do longa é inegavelmente lento, mas preciso em sua execução temática e questionamentos sobre maternidade, controle e manipulação.

É uma obra definida pela interpretação central de Hall, que carrega a instabilidade emocional de Margaret com eficiência clínica. Quando chegamos ao terceiro ato, parece que um parafuso finalmente se solta da personagem e sua essência se espalha pela tela, finalmente exposta em toda a sua glória lunática, evocando elementos de body horror que cortam a tensão como uma faca. Uma das maiores forças do Terror como gênero está em provocar a audiência e passar do ponto em que ela se sente confortável, instigando uma reação visceral de quem quer que assista. Em Resurrection, a santidade da maternidade não é nada mais que uma cruel fantasia biológica que aliena sua protagonista daquilo que é mais importante para ela. — Gabriel Oliveira F. Arruda


Há anos como uma referência silenciosa para os roteiristas estadunidenses, Don DeLillo teve finalmente seu clássico romance adaptado aos cinemas (Foto: Netflix)

Ruído Branco (White Noise)

Naturalmente, a existência de Ruído Branco fala por si só. Sendo belo ou esquisito – fraco, para alguns –, o filme passa longe de ser irrelevante, pelo menos no nicho em que Literatura e Cinema se cruzam. Adaptado do clássico homônimo de Don DeLillo, White Noise é o primeiro longa-metragem com roteiro adaptado a ser dirigido por Noah Baumbach. Ainda assim, a trama gira em torno de uma família “disfuncional” – tipo já explorado pelo diretor estadunidense em filmes anteriores –, e funciona como uma homenagem de Baumbach a um de seus heróis literários.

Esse último elemento é tanto seu mérito quanto sua falha. DeLillo é um dos escritores vivos que foram “canonizados” pelo conservador crítico literário Harold Bloom, e suas obras comumente atacam a sociedade de consumo no capitalismo pós-industrial. Talvez preocupado demais em se manter fiel à obra, o diretor reproduz trechos do livro de 1985 quase linha por linha através dos diálogos, e a complexidade de reduzir as dezenas de frases impactantes no Cinema se mostra cruel. Nesse quesito, a magia de adaptar para um outro formato, com as liberdades permitidas, é, por vezes, esquecida. Todavia, como dito, esse também é seu mérito.

Os trechos, bem selecionados por Baumbach, são aqueles em que DeLillo tanto crítica o espetáculo e o consumo quanto alude a uma paranoia social amplamente compartilhada, que ganha tipos esquisitos de contornos no mundo real após o surgimento da covid-19. Ruído Branco – o filme – está longe de ser um clássico como a obra original, mas Noah Baumbach sabe bem disso. Seu projeto se envolve na reflexão e na “renovação” dos créditos originais concebidos pelo escritor; DeLillo sempre foi visto como visionário, Baumbach apenas mostra sua atualidade. No longa, Adam Driver (no papel de Jack Gladney) agrada nas cenas finais, quando, na revelação sobre o “Dylar”, o personagem interpretado por Lars Eidinger, Sr. Gray, é inserido grandiosamente. Mesmo que o filme tenha feito menos barulho do que o esperado, só podemos agradecer que alguém finalmente adaptou esse romance. – Bruno Andrade


Cena do filme Sissy, que mostra a personagem Cecilia, uma mulher negra de cabelos cacheados de cor rosa acinzentada, que veste uma blusa cinza e um blazer bege. Ela tem sangue ao redor de seu nariz, boca e bochechas, e está com um olhar vago
Em um cenário de isolamento, Sissy proporciona saborosas cenas sangrentas de cabeças esmagadas, escalpelamento, afogamento e mutilação (Foto: Shudder)

Sissy

Dirigido e roteirizado pelos australianos Kane Senes e Hannah Barlow, Sissy é um ousado queer horror teen que combina ricamente elementos de terror gore com humor ácido e abordagem crítica às redes sociais na atualidade. O termo que dá nome ao filme é também o apelido da protagonista Cecilia, interpretada majestosamente por Aisha Dee, e ao mesmo tempo serve como um trocadilho infame, por ser usado comumente com o significado de “marica” ou “covarde”. 

Após sofrer diversas situações incômodas de provocação, bullying, falas insinuativas e exposição a traumas de infância, a influenciadora Cecilia é levada ao extremo e explode como um vulcão, desencadeando ações sangrentas de violência e assassinato. Apesar de parecer, o filme não se torna uma história sobre vingança e, felizmente, segue pelo caminho contrário ao enfatizar o perigo das relações humanas e exemplificar o sentido do termo “gatilho” de forma precisa. A combinação da abordagem de temas atuais e relevantes – não de forma moralista e superficial como retratados em outros filmes do gênero –, aliada a um competente trabalho de atuação e direção fazem da obra uma ótima surpresa divertida e gratificante. –  Bruno Alvarenga


Cena do filme South Park: Guerra de Streamings em que Eric Cartman e sua mãe estão sentados em uma clínica de cirurgia plástica. À esquerda está a Sra. Cartman, uma mulher branca, de cabelos castanhos presos, vestindo um casaco azul e uma calça marrom, que apresenta um semblante de indignação. À direita está Cartman, um menino branco, com sobrepeso, que usa um gorro de inverno azul e amarelo, um casaco vermelho, que está fazendo birra.
South Park: Guerra de Streamings surpreende, diverte e promete pôr um fim na tediosa Tegridy Farms (Foto: Paramount+)

South Park: Guerra de Streamings (South Park The Streaming Wars)

Pouco tempo após o longa especial South Park: Pós-Covid, dividido em duas partes, os criadores da série Trey Parker e Matt Stone retornam para mais uma produção que segue os mesmos modelos. Apesar do título sugestivo, a Guerra dos Streamings não se trata sobre as plataformas de filmes e músicas tão populares na atualidade e, sim, sobre córregos de rio.

Após um período de seca em South Park, os moradores desenvolvem um sistema para racionar água. Em meio à crise hídrica, há embates entre Cartman e sua mãe, em que o filho quer a todo custo que a sra. Cartman coloque silicone. Com a posição firme em oposição à ideia da criança, o protagonista se revolta e decide colocar as próteses nele mesmo. Gabriel Gatti


Cena do filme Tár. Nela vemos a personagem Lydia Tár, interpretada por Cate Blanchett, uma mulher branca,de cabelos loiros e de meia idade. Ela veste uma calça de alfaiataria na cor azul escura e uma camisa entre o cinza claro e o azul, remetendo a um jeans lavado. Ela está no centro da imagem, enquadrada do quadril para cima. Ela abre os braços em uma espécie de movimento forte enquanto arqueia sua cabeça para trás. Na mão direita, há uma batuta. O fundo está escuro, tendo o foco de luz apenas na personagem.
Em Tár, Cate Blanchett rege esse passeio pelos devaneios de uma gênia despedaçada (Foto: Focus Features)

Tár

Sim, você foi ou irá pesquisar sobre Lydia Tár. A obra estrelada por Cate Blanchett reproduz tão bem os conceitos de uma cinebiografia que nasceu sendo exemplo de biopic, mesmo não sendo uma. Contando a história da maestrina enquanto sua vida está ruindo em meio a uma epifania criativa, o longa do diretor Todd Field consegue traduzir o intimismo da história misturado com a megalomania e excentricidade da “biografada”. Isso faz com que Tár se torne um dos estudos de personagens mais coesos e profundos do ano.

O diretor é muito competente em atribuir o requinte da música clássica para o projeto, sem torná-la ainda mais elitista, por mais que o filme, a princípio, pareça não ser para todos os públicos. É acertada também a decisão de sair de frente das orquestras para jogar o holofote em quem está por trás das batutas e de costas para o público, e discutir como uma jornada de obsessão artística, já tão trabalhada no Cinema, pode resultar em uma toxicidade, dessa vez inserida na cultura do cancelamento.

Todos os méritos do longa são personificados por Cate Blanchett. Ela consegue transmutar toda sua genialidade como atriz na genialidade da regente da Filarmônica de Berlim e faz da obra um gigantesco monólogo sobre si. Sem dúvidas, Tár é o grande desafio e trunfo de Blanchett, no qual ela capta a complexidade e a extravagância desse tipo de persona, se tornando um doloroso e muitas vezes fiel retrato dessa figura de autoridade. Não à toa, desde a exibição inicial do filme, a atriz desponta na categoria de atuação. Mesmo já tendo duas estatuetas do Oscar na bagagem – sendo uma das poucas a ganhar como Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante – a desse ano,  por Tár, caso se confirme, consagrará sua carreira. – Guilherme Veiga


The house é uma antologia britânica em stop motion feita pela Nexus Studios e Netflix Animation e distribuída pela Netflix em Janeiro de 2022 (Foto: Netflix)

The House

Dividida em três histórias no mínimo desconfortantes que se passam dentro de uma única casa, a animação em stop motion The House  foi produzida durante a pandemia e conta com temas complexos e instigantes que flertam com alguns ideais capitalistas e refletem de maneira provocativa e questionadora o momento de confinamento. Com um tom intimista e perturbador, a obra utiliza-se do protagonismo da casa para representar e abordar desde a vaidade e a busca por status até problemas psicológicos e o apego aos bens materiais, ao mesmo tempo em que cria uma noção de aura que influencia os outros personagens.

Fato é que os diretores Emma De Swaef, Paloma Baeza, Niki Lindroth von Bahr e Marc James Roels utilizaram-se de alguns recursos interessantíssimos,  como tons opacos, diálogos diretos e ácidos e a preferência por personagens feitos de feltro (diferente da maioria dos filmes de stop motion), para criar esse cenário de terror psicológico extremamente próximo da realidade e sensorialmente incomodante que gera os mais diversos pensamentos em seu espectador. 

Em Janeiro de 2023, The House recebeu seis merecidas indicações ao Annie Awards, principal premiação das animações, dentre elas nomeações nas categorias Melhores Efeitos Visuais para German Díez, Álvaro Alonso Lomba e Hugo Vieites Caamaño, Melhor Animação de Personagens para Kecy Salangad, Melhor Música para Gustavo Santaolalla, Melhor Roteiro para Enda Walsh e Melhor Direção de Arte para Niklas Nilsnon e Alexandra Walker. – Leonardo Ribeiro Jorge


Anos-luz separam Maverick do Top Gun original, tanto em tempo quanto em qualidade (Foto: Paramount)

Top Gun: Maverick

2022 começou com os Cinemas do mundo inteiro recém saídos de uma pandemia que os afetou drasticamente, fazendo com que sua única grande fonte de lucro fossem filmes de super-heróis. Eis que chegou o mês de maio e Tom Cruise (Missão Impossível), sob a direção do subestimado Joseph Kosinski (Tron: O Legado), levou o público em peso de volta às telonas com Top Gun: Maverick. Foram mais de 1 bilhão e 400 milhões de dólares arrecadados em bilheteria, juntamente com seis indicações ao Oscar 2023, incluindo Melhor Filme. O que explica tamanho alarde por um mero blockbuster? A resposta é clara: o simples fato dele ser um que não se vê mais todos os dias por aí. 

Top Gun: Maverick recusa o cinismo e a verossimilhança que o atual Cinema de blockbuster adotou em sua forma, abraçando muito mais o sentimentalismo de seus temas e o deslumbre das imagens, lindamente captadas por Claudio Miranda (As Aventuras de Pi). É como se víssemos uma mistura de conto de fadas, representado pelas emoções exacerbadas do texto; com briga de avião em cena, muito bem sustentadas pelo alto nível técnico, da montagem de Eddie Hamilton (Kingsman: Serviço Secreto) ao design de som de James Mather (Belfast) e Al Nelson (Jurassic World). Além disso, é um longa que, metaforicamente, comenta sobre o próprio estado da indústria cinematográfica, ao colocar tanto o indomável protagonista quanto o seu ator de carisma inigualável diante do confronto com sua obsolescência, numa profundidade de subtexto invejável que falta a maioria dos ‘arrasa-quarteirões’ ultimamente. Nathan Nunes


cena do filme Trem-Bala. No centro da imagem está Ladybug, um homem branco com cabelos compridos e loiros, possui um cavanhaque; veste uma camisa social azul escuro com uma camiseta branca por baixo; há um corte vertical em sua bochecha esquerda e outro horizontal em seu nariz. No fundo da imagem é possível ver elementos de um vagão de trem, portas, prateleiras com lanches e luzes.
Trem-Bala é realmente uma viagem em alta velocidade (Foto: Sony)

Trem-Bala (Bullet Train)

Trem-Bala é um filme que faz jus ao nome. Com diversas histórias entrelaçadas transitando rapidamente entre si, o longa prende o espectador do início ao fim. A produção agrada a partir da escolha do elenco, que conta com as estrelas Brad Pitt, Aaron Johnson, Joe King, Sandra Bullock, Logan Lerman, Ryan Reynolds e Bad Bunny. Na história, baseada no livro de mesmo nome, Ladybug (Brad Pitt) é um mercenário supersticioso e atrapalhado com a missão de roubar uma maleta procurada por muitos passageiros do trem. 

A produção é uma bela homenagem ao gênero gangster, famoso nos anos 1990 e 2000 por sua violência e batalhas por vingança. O lançamento traz exatamente isso: com tantos objetivos que se cruzam, o espectador se confunde entre quem são os mocinhos e quem são os vilões. Mesmo com as reviravoltas, é possível se apegar aos personagens e desejar que suas missões obtenham sucesso. Dos mesmos produtores de Deadpool, Trem-Bala traz o mesmo humor misturado ao caos que faz o público se apaixonar. – Gabrielli Natividade 


Cena do filme Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo. Michelle Yeoh, que interpreta Evelyn Wang, é uma mulher chinesa com cabelos pretos, um pouco abaixo da altura dos ombros, e veste um casaco vermelho. Ela olha fixamente para um ponto à sua frente, à direita, que está fora do enquadramento da cena. O fundo é o seu comércio, uma pequena lavanderia, que está enfeitada para comemorar o Ano Novo chinês. Além dos enfeites, é possível ver alguns objetos desfocados que sempre estão nesse ambiente, como os sacos de roupas dos clientes e os vasos de plantas.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo mostra como realmente se faz um filme sobre o multiverso (Foto: A24)

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once)

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é sucesso na temporada de premiações – e não é para menos. O filme saiu com dois prêmios no Globo de Ouro, cinco no Critics Choice Awards e, agora, tornou-se o favorito da 95º edição do Oscar com um total de onze nomeações, sendo o mais indicado da lista. Produzido pela renomada A24 e dirigido pela dupla carinhosamente conhecida como Daniels (Daniel Kwan e Daniel Scheinert), o longa mistura uma narrativa sobre o multiverso e um drama familiar agridoce com tanta excelência que sua experiência cinematográfica pode ser definida em apenas duas palavras: intensa e satisfatória.

O aspecto caleidoscópico do longa transborda humanidade ao que entende que a bagunça infinita de múltiplos universos não é nem um pouco diferente da que existe dentro de cada um de nós. E é justamente essa compreensão que permite que o elenco brilhe tanto: da melancolia performática de Stephanie Hsu à generosidade de Ke Huy Quan, tudo culmina na honestidade espetacular do rosto exausto de Michelle Yeoh, entregando a atuação mais extraordinária de sua carreira. – Raquel Freire


Cena do filme Uma Garota de Muita Sorte. Na fotografia, temos no centro a personagem de Mila Kunis. Ela tem cabelo castanho, longo e liso. Possui sobrancelhas marcadas e maquiagem com tons escuros nos olhos. Ela está com o olhar direcionado para a esquerda, com a boca semi-aberta e uma expressão de surpresa. Os tons da fotografia são frios e escuros.
Uma Garota de Muita Sorte é baseado no best-seller de mesmo nome da autora Jessica Knol, que vendeu mais de um milhão de exemplares e foi traduzido para 38 idiomas (Foto: Netflix)

Uma Garota de Muita Sorte (Luckiest Girl Alive)

A personagem Ani FaNelli aparenta ser, com certeza, uma garota de muita sorte. Camuflando seu passado trágico atrás do papel de mulher-exemplo, a protagonista de Mila Kunis está prestes a assumir a editoria no The New York Times e nos preparativos para um sofisticado casamento com o deslumbrante Luke Harrison (Finn Wittrock). Nós poderíamos, claro, invejar sua carreira e seu triunfo se não soubéssemos que, no fundo, Ani vive como sua própria refém. Mergulhar na mente da personagem é assistir, com pesar, as sequelas do abuso sexual que sofreu em sua adolescência reverberando em cada partícula de sua vida adulta. Sua incessante busca pela perfeição poderia ser uma das consequências das pressões do sistema patriarcal, mas, nesse caso, é apenas uma pequena parte de todo o espaço que o trauma tomou em sua história. 

Uma Garota de Muita Sorte é um retrato delicado sobre a linha sutil entre quem realmente somos e quem fingimos ser – uma realização que concretiza a emancipação de Ani FaNelli de suas próprias prisões. Apesar de não ser inovador, o drama consolida-se na incrível atuação de Mila Kunis e na sensível abordagem de outros temas tão importantes como bullying, acesso à armas e a importância de procurar ajuda. Ele nos emociona, indigna e inspira na mesma medida, deixando muito claro a mensagem que quer passar. Podemos, no fim, apenas nos amargurar com o passado, mas Ani nos mostra que a cura está no futuro. – Clara Sganzerla


Com um elenco estrelado, Uncharted reúne ícones como Tom Holland, Mark Wahlberg e Antonio Banderas (Foto: Columbia Films)

Uncharted: Fora do Mapa (Uncharted)

Como já era previsto, o ano de 2022 se destacou pela lógica da adaptação de games para as telonas. Com a franquia de sucesso da Playstation, Uncharted não poderia ser diferente. Encabeçado pela Naughty Dog, o jogo que explora a vida de Nathan Drake, um típico e aventureiro ladrão de tesouros, se inspira em clássicos como Indiana Jones e ganha o carisma do mundo dos gamers. Mas será que a trama atendeu às expectativas de quem é apaixonado pelo jogo?. Lançado em fevereiro de 2022, o filme protagonizado por Mark Wahlberg e Tom Holland  já ultrapassa a marca de 400 milhões de dólares de faturamento da bilheteria.

Uncharted: Fora do Mapa é, sem dúvidas, uma jornada aventureira requentada com diversas cenas de ação. Os espectadores que se recordam das aflições vividas por Nathan Drake, agora na pele de Tom Holland, carregam consigo uma nostalgia muito bem-vinda. Na obra, é como se o diretor Ruben Fleischer fosse um colega que pega o controle do videogame e comanda os atores tal qual estivessem imersos naquela realidade virtual do playstation. Os recursos gráficos também são motivo de destaque: é possível notar o quanto Uncharted é bem desenvolvido, de forma que seja fiel às cutscenes da realidade virtual, assim como na série de The Last of Us. Gabriel Gomes Santana


Cena do filme Veja Como Eles Correm. A imagem é retangular e mostra a frente de um carro azul, bem próxima do vidro, já que o foco são as pessoas em seu interior. Observando a foto, do lado esquerdo está o inspetor Stoppard, interpretado por Sam Rockwell. Ele é um homem branco, na casa dos cinquenta anos, com um bigode e cabelos castanhos. Ao seu lado esquerdo, ou seja, à direita do foto, está Constable, papel de Saoirse Ronan. Saoirse é uma mulher branca, loira, de olhos claros e cabelos na altura dos ombros. Ambos estão de paletó e gravata e olham para frente.
Contextualizado nos anos 50, See How They Run é repleto de estilo e elegância, evidenciado pela bela fotografia de Jamie Ramsay (Foto: Searchlight Pictures)

Veja Como Eles Correm (See How They Run)

Um crime, vários suspeitos, um detetive experiente e uma jovem policial dedicada a acompanhar seus passos. Essa é uma trama recorrente de mistério, mas, aqui, recheada com referências, metalinguagens e um charme e essências originais que o fazem revisitar a temática com uma identidade própria. Uma homenagem do começo ao fim às obras de Agatha Christie, Veja Como Eles Correm conta com a direção hábil de Tom George, o roteiro inteligente e criativo de Mark Chappell e atuações talentosas como a de Adrien Brody. Suas figuras são caricatas e equilibradas na medida certa, para marcarem seus papéis dentro do suspense. O destaque, porém, é da protagonista Constable Stalker, interpretada pela brilhante Saoirse Ronan.

Pouco divulgado, em comparação ao contemporâneo Entre Facas e Segredos e seu sucessor, Glass Onion, See How They Run difere-se por construir sua narrativa bastante próxima, de fato, dos livros de Christie – até mesmo em época, já que ele se passa nos anos 50. Nele, é claro o tributo à Rainha do Crime, já que a metalinguagem é um pilar do longa. A narrativa faz questão de colocar personagens para apreciar e analisar características deste tipo de trama adaptada para o Cinema. Afinal, trata-se de uma obra de mistério que investiga e dialoga a respeito de um assassinato cometido nos bastidores da peça A Ratoeira, escrito pela autora inglesa. Com um ritmo divertido, toques cômicos certeiros, sátiras e pontos de virada clássicos do subgênero, o filme honra todos seus antecessores e garante a identificação e contemplação dos amantes das histórias de mistérios e, principalmente, das de Agatha. – Mariana Nicastro


Cena do filme Watcher. Julia (Maika Monroe) está sozinha numa plataforma de trem, ocupando a metade esquerda da tela. Ela é uma mulher caucasiana, magra, loira, usando um sobretudo marrom. Seu cabelo está preso em um coque. Atrás dela, vemos a plataforma se estender, fora de foco. É de noite, e luzes frias a iluminam.
Maika Monroe já é uma scream queen moderna (Foto: IFC Films)

Watcher

Em seu longa de estreia, Chloe Okuno traz à tona um tipo muito específico de terror: uma mulher andando sozinha em um país cuja língua ela não domina, sendo perseguida por um homem que nem seu próprio noivo acredita que existe. Paranóia é questão de sobrevivência em Watcher, o elegante thriller voyeurístico estrelado por Maika Monroe (Corrente do Mal), no qual cada olhar esconde intenção, cada janela aberta apresenta oportunidade e cada palavra dita oferece risco. A diretora e roteirista trabalha com precisão cirúrgica a tensão crescente entre Julia (Monroe) e seu noivo, Francis (Karl Glusman), motivadas pelas acusações cada vez mais graves da mulher.

Julia não é boba nem louca, dispensando a promessa de segurança em favor da complicada realidade de ser uma mulher no mundo, sequestrando momentaneamente o papel de stalker da trama para tentar ela mesma desvendar esse mistério. Okuno está em sintonia perfeita com o resto de seu elenco, orquestrando movimentos de tensão física e espiritual que a estabelecem logo como uma das novas grandes promessas do gênero, articulando ousadamente os elementos da trama em favor não de impressionar, mas de delinear as nuances de seus atores. — Gabriel Oliveira F. Arruda


Através da cinematografia apetitosa de Eliot Rockett, X referencia clássicos como O Massacre da Serra Elétrica (1974), Psicose (1960) e O Iluminado (1980) [Foto: A24]
X – A Marca da Morte (X)

Slashers se constroem e renascem graças ao eterno potencial de esculhambação dos valores que conduzem a vida humana. Em um mundo sustentado em contradições e preconceitos, usar a ficção mais mórbida para revelar as ruínas da realidade é tenebroso, arrasador e genial – e X – A Marca da Morte sabe muito bem disso. Levando um grupo de cineastas até a gravação de projetos pornográficos em uma fazenda isolada no Texas, estado símbolo do conservadorismo estadunidense, Ti West dirige, produz e roteiriza uma carnificina com aura de estudo social. 

Sob o selo dos estúdios A24, o Horror, aqui, costura afiadamente o choque entre duas temáticas principais: moralismo e idade. A trama se passa em 1979, injetando sexploitation e televangelismo nas veias, mas sem deixar seu reflexo atual passar despercebido – afinal, discussões envolvendo a era OnlyFans e o absurdo do fanatismo religioso pipocam cada dia mais. Na minúcia de seus paralelos de cena e metalinguagem, da trilha sonora à la Tarantino ao imponente elenco feminino (com destaque máximo para Mia Goth e Jenna Ortega), X triunfa ao dosar subversão, ironia e consciência. A obra é um espetáculo de sangue e critério, primogênito de uma trilogia em desenvolvimento e propagador do Terror como uma Arte que merece despontar nos circuitos premiadores do Cinema. – Vitória Vulcano

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