Entre Mulheres, ninguém nunca está só

Cena do filme Entre Mulheres. Na imagem, vemos oito mulheres de idades distintas dentro de um celeiro. Quatro delas estão de pé e quatro estão sentadas. Dessas, três estão sentadas em feno e uma delas está sentada no chão. Todas elas vestem vestidos do mesmo estilo: mangas três-quartos ou compridas, em cores escuras e floridos, com exceção de duas idosas, que vestem vestidos de manga comprida preto sem nenhuma estampa. Todas elas estão com os cabelos trançados e algumas usam um lenço preto, de modo a aparecer a parte da frente de seus cabelos
Entre Mulheres teve sua estreia no Festival de Cinema de Telluride no dia 2 de Setembro de 2022 e chegou aos cinemas brasileiros exatos seis meses depois (Foto: Universal Pictures)

Raquel Freire

Uma pequena colônia religiosa isolada. Apenas homens têm o direito de ser alguém. Durante a noite, tranquilizante de vaca. Ao amanhecer, quando o coração ainda bate, uma ferida que não cicatriza. Quem fez isso? Ou melhor, qual deles ainda não fez isso? Dali nove meses, uma vida – se for menino, um aprendiz; se for menina, uma vítima. Certa noite, um rosto. Enfim, custódia! Todos eles saíram da colônia para ajudar com a fiança (é claro que eles saíram). Isso significou 48 horas Entre Mulheres. Três famílias debateram o futuro de todas as outras. “Não fazer nada. Ficar e lutar. Ou ir embora”. Permanecer na comunidade que as violou? Ou se afastar de tudo o que conhecem, principalmente do Deus em quem ainda depositam sua fé? Ao mesmo tempo, tudo e nada a perder.

Imaginar um cenário assim é angustiante, ainda mais sendo mulher. Lamentavelmente, a narrativa que sustenta Women Talking (no original) não é fruto completo da imaginação. Entre os anos de 2005 e 2009, mulheres eram drogadas e abusadas sexualmente durante a noite em uma colônia menonita na Bolívia, independentemente da idade. Miriam Toews, que cresceu em uma dessas comunidades em Manitoba, escreveu um livro que não reconta esse caso, mas passa a ser uma resposta idealizada a ele, uma em que as vítimas realmente possuem a oportunidade de lutar. Com um intelecto feroz, uma força imensa e um senso visionário de como refazer o mundo sob o olhar feminino, Sarah Polley o adapta para a Sétima Arte e o coloca na disputa pela estatueta dourada de Melhor Filme – o único dirigido por uma mulher nessa categoria do Oscar 2023.

Cena do filme Entre Mulheres. Claire Foy, que interpreta Salome, é uma mulher branca com cabelos castanhos. Ela veste um vestido com manga três-quartos marrom escuro com flores rosa-claro espalhadas e um lenço preto nos cabelos, de modo a aparecer a parte da frente deles. Ela olha para frente com o olhar duro. Em seu colo, dorme Emily Mitchell, que interpreta Miep, filha de Salome. Ela é uma criança branca com cabelos loiros trançados e veste um vestido marrom claro com flores pretas. Ao seu lado está Rooney Mara, que interpreta Ona, irmã de Salome. Ela é uma mulher branca com cabelos loiros trançados e presos por uma rede para cabelo na cor preta. Ela veste um vestido de manga comprida verde escuro e olha para o lado direito, em direção à sua irmã, apoiando o rosto em sua mão.
O longa foi muito bem aclamado pela crítica, com destaque para as atuações, a direção e a trilha sonora (Foto: Universal Pictures)

Os filmes são meios visuais e aqueles que possuem muitos diálogos geralmente são considerados como não cinematográficos, mas Entre Mulheres foge dessa premissa. A confiança da diretora no material e em seus atores permite que as performances floresçam, e as interpretações impulsionam a história juntamente com a barragem das palavras. Essa é uma obra que faz exatamente o que precisa sem se complicar demais e que permanece integralmente fiel à sua premissa, evitando reviravoltas e subversões que poderiam apenas desvalorizá-la. Pessoas conversando umas com as outras pode ser uma experiência cinematográfica se a interação for boa e a atuação for do interesse do telespectador – Ethan Hawke e Julie Delpy na trilogia Before são prova viva disso, e o grupo que dá vida a Entre Mulheres também.

Rooney Mara (de Carol e A Ghost Story) é capaz de interpretar uma mulher com um coração bom demais para ser verdade da maneira mais coerente possível, enquanto Jessie Buckley (de A Filha Perdida) se afasta controladamente da rispidez defensiva de sua personagem com tal precisão que é possível sentir o exato segundo em que ela realmente reconhece o peso de tudo. Claire Foy (de The Crown) tem o papel mais vivo e, consequentemente, carrega os momentos mais emocionantes. A atriz é uma das presenças mais poderosas do filme, e a fúria de sua personagem é incandescente. O nível de atuação dessas mulheres traz um grau incrível de imensidão em cada close-up, e permite que longas cenas de diálogo se desdobrem com a excitação e a destreza de um filme de ação.

Cena do filme Entre Mulheres. Jessie Buckley, que interpreta Mariche, é uma mulher branca com cabelos castanhos escuros. Ela veste um vestido verde escuro e usa um lenço preto na cabeça, de modo a aparecer a parte da frente de seus cabelos. Ela olha para o lado direito com a boca entreaberta e com as sobrancelhas levemente franzidas. Ao fundo, desfocada, vemos Judith Ivey, que interpreta Agata.
Em conversa com o Deadline, Jessie Buckley afirma que o longa ressoou por ser, mais que uma experiência feminina, uma experiência mundana (Foto: Universal Pictures)

Concorrendo com filmes como Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, Nada de Novo no Front e Os Banshees de Inisherin, já era de se esperar que Entre Mulheres estivesse longe de ser o favorito ao prêmio de Melhor Filme. Entretanto, não é à toa que o longa se juntou à disputa. A grosso modo, pode-se dizer que uma obra indicada à categoria mais importante da premiação é reconhecida pela excelência de seu conjunto, e Entre Mulheres atende isso sem esforços. Com os mesmos produtores de Moonlight e Nomadland, e com uma trilha sonora criada por Hildur Guðnadóttir, a direção de Sarah Polley possui todos os ingredientes que agradam o paladar da Academia.

Se as chances de sucesso do longa na categoria mais esperada da noite são baixas, o contrário acontece quando se trata de sua segunda indicação: Melhor Roteiro Adaptado. O ponto mais forte do filme é o seu roteiro, e Sarah Polley teve uma incrível capacidade de dar espaço para que suas personagens se expressem mais profundamente do que se vê em produções hollywoodianas, de modo a tratar questões complexas do universo feminino de maneira contundente e, ainda assim, com delicadeza e respeito. Grandes produções têm chances de saírem vitoriosas nessa categoria, como Top Gun: Maverick e Glass Onion: Um Mistério Knives Out, mas nenhum script possui tanta sutileza quanto o de Entre Mulheres.

Cena do filme Entre Mulheres. Judith Ivey, que interpreta Agata, é uma mulher idosa branca com cabelos grisalhos. Ela veste um vestido longo de manga comprida preto e um lenço nos cabelos da mesma cor, que deixa a parte da frente de seus cabelos visível. Ela está inclinada de lado com seu braço esquerdo ao redor dos ombros de Claire Foy, que interpreta Salome, sua filha, consolando-a. Ela está sentada e é uma mulher branca com cabelos castanhos e veste um vestido com manga três-quartos cinza com flores lilás espalhadas e um lenço preto nos cabelos, posto da mesma forma que o da mãe. A mão direita de Agata está segurando uma das mãos de Salome. Ambas estão dentro de um celeiro. É possível ver alguns fenos empilhados ao fundo do lado direito e uma grande janela do lado esquerdo, mostrando que é fim de tarde.
Entre Mulheres venceu o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado no Critics Choice Awards, mesma categoria em que concorre no Oscar (Foto: Universal Pictures)

Mesmo que pareça que a trama é desenrolada em outro século, uma cena específica deixa claro que a história se passa em 2010 e as pautas trazidas pelas mulheres deixa mais claro ainda o quão atemporal elas são. As discussões envolvem a moralidade da violência, a natureza do verdadeiro perdão, a questão da masculinidade, o medo do desconhecido e o ódio ao familiar. Cada pergunta atada se desdobra em outra, e as conclusões a que chegam são de fundamental importância. É o próprio pensamento que as liberta e abre o caminho para o que o texto de abertura do filme descreve como “um ato de imaginação feminina”.

Sensível e maduro, Entre Mulheres é uma história dramaticamente impactante de mulheres que se unem em corpo e alma por sua liberdade e proteção. Todos os elementos que a compõem criam uma sensação de desolação e isolamento; no entanto, trata-se mais sobre a cura do que sobre a dor que grita por uma mudança, e só uma direção feita sob o olhar feminino poderia entregar isso. Sarah Polley deposita todo o seu talento no longa e retrata com primor o que todas sabem: só uma mulher é capaz de oferecer refúgio para outra.

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