Falem bem ou falem mal, mas falem de Escândalo Íntimo

Capa do álbum Escândalo Íntimo. Na imagem a cantora Luisa Souza está com aparência robótica vestindo um macacão que imita a sua pele. Sonza é uma mulher branca, loira, com lábios grandes e vermelhos. A imagem possui um fundo de tinta borrada e blusa, a imagem dos olhos da cantora estão borrados, bem como suas mãos. Ao fundo vislumbra-se parte de um pôr do sol, mas a maior parte do fundo da imagem é escura.
O Escândalo Íntimo de Luísa Sonza é obra intimista e reveladora sobre o que se é, e o que não é (Foto: Olga Fedorova)

Costanza Guerriero

No dia 15 de Agosto, o Twitter ficou polvoroso com o lançamento de Campo de Morango, o lead single do terceiro álbum de Luísa Souza, Escândalo Íntimo. Tanto o videoclipe quanto a música em si pareciam ser uma confirmação de que a cantora só sabe compor letras vulgares e superficiais. Contudo, aqueles que estavam bem atentos sabiam que essa pequena prévia serviria para provar um ponto, que é uma das premissas do novo projeto: Luísa Sonza, como antes se conhecia, é uma fraude. Nesse lançamento, a artista potencializa sua voz e traz sua trajetória de amadurecimento como o centro da narrativa. Ela elabora conceitos visuais e sonoros acurados, apresentando referências explícitas e cristalinas, para que até mesmo aqueles que não querem possam enxergar. 

Escândalo Íntimo brinca com a expectativa e a falácia do público, na sua estratégia de lançamento, e ao decorrer de suas 24 faixas, das quais seis foram lançadas posteriormente. Segundo a própria artista, o álbum conta a história de um relacionamento, desde o momento do flerte inicial, passando por noites tórridas, decepções e a superação dos traumas. Porém, seria mais interessante entender o disco como o processo de autoanálise da cantora, sob a ótica do contraste entre como a definiram e como ela se vê. O disco é dissecado em quatro blocos, que revelam momentos diferentes de um relacionamento, ou ainda, diferentes faces da Luísa Sonza, mostrando sua versatilidade e disposição de explorar diferentes ritmos e gêneros, desde o pop até a bossa nova

Foto de divulgação do álbum Escândalo Íntimo. Na imagem a está a cantora Luisa Sonza, uma mulher branca de cabelos longos e loiros, lábios grandes e olhos azuis. Ela olha fixamente para frente, veste uma jaqueta marrom e uma blusa tartaruga. Ao fundo há ripas de madeira que são a sustentação de alguma estrutura, como uma ponte.
Em 2022 a cantora esteve envolvida em um processo jurídico de racismo, o qual pagou indenização e se desculpou publicamente, ocorrido pelo qual ela terá que se responsabilizar durante toda trajetória de sua carreira (Foto: Pam Martins)

É de se admirar o quanto foi feito em um tempo relativamente curto. O álbum foi produzido em cerca de três meses em estúdios em Los Angeles, na Califórnia, e contou com Douglas Moda, Roy Lenzo e Tommy Brown como diretores musicais. A produção ganha uma índole plurinacional, não apenas por ter músicas cantadas em português, inglês e espanhol, mas também pelo envolvimento de diversos colaboradores de nacionalidades distintas. A artista contratada para fazer a arte da capa e contracapa do projeto, por exemplo, é a russa Olga Fedorova. Ainda para a parte visual, Sonza contou com auxílio da artista plástica e psicanalista Nathalie Nery, responsável pela exploração do conceito lúdico de sonhos versus realidade, que o disco tanto trata.

O trabalho é marcado por diversas colaborações com artistas como Marina Sena, Banco Exu do Blues, Duda Beat e até mesmo Demi Lovato. Ainda assim, a característica mais marcante do álbum é a maneira como reúne um grande número de samples e referências a outros músicos, o que por um lado pode beirar o exagero, por outro pode ser visto como uma carta de amor aos ídolos de Sonza, como Rita Lee, Alcione, Cazuza, The Beatles e Queen. 

Escândalo Íntimo é aberto pela faixa homônima, um sample da música Quarto de Hotel de Hareton Salvanini, trilha sonora do filme A Virgem de Saint Tropez, do diretor polonês Zygmunt Sulistrowski. A faixa expressa a melancolia de se sentir as inseguranças e as angústias, que as letras a seguir irão abordar, mas sem deixar de, ao final, se misturar a uma agitação e batidas mais eufóricas, a chamada para o primeiro bloco.

 Imagem do clipe Campo de Morango. Na imagem a cantora Luisa Sonza, uma mulher branca de cabelos longos e loiros veste uma regata branca. Seus olhos estão fechados e ela mastiga um morango. Ela segura o resto do morango com a mão esquerda. Ao fundo vê-se um campo aberto com uma cama de madeira com  lençóis brancos. Nos pés da cama há morangos espalhados pelo chão.
Com o lançamento do clipe de Campo de Morango, Sonza perdeu quase 100 mil seguidores, o que concretiza perfeitamente a provocação que artista quis trazer com a faixa (Foto: Pam Martins)

As músicas iniciais, como Carnificina, pintam a Luísa Souza já bem conhecida, a BRABA, a MULHER DO ANO, provocadora e sensual. Essa apresentação mostra como a personagem criada pela artista se sustenta e é vista por parte do público. Apesar de todo o hate, a Dona Aranha continua a subir, numa pegada femme fatale. Contudo, o miolo do álbum nos revela uma Sonza apaixonada, romântica e que depende emocionalmente de um relacionamento. Curiosamente, é nesse bloco que se encontra Campo de Morango, a polêmica faixa em 150 BPM, que é, na verdade, a mais metafórica. Enquanto carrega uma letra extremamente explícita e frívola, faz referência à música Strawberry Fields Forever, dos The Beatles, que diz “nada é real (…)/ viver de olhos fechados é fácil/ não compreender o que você vê”. A canção seria, então, um sonho, no qual ela se boicota, contaminada com aquilo que o público projeta dela. 

Desde o lead single, Escândalo Íntimo é apresentado com um álbum visual. Junto de seu diretor criativo, Flávio Verne, Sonza buscou integrar no visual seus sonhos e a ludicidade, somados aos elementos das fazendas interioranas do Rio Grande do Sul, local no qual a artista cresceu. No terceiro bloco do disco, se faz presente uma estética de ‘fazenda dos pesadelos’, onde a gaúcha precisa vivenciar seus traumas e se reconhece em um relacionamento abusivo, seja com o parceiro ou parceira, com a mídia ou consigo mesma. Em músicas como Penhasco2 e Outra Vez, ela se despede da ‘cachorrinha artista pop’ e são revelados medos e inseguranças, mostrando que a imagem da ‘braba’ era pura encenação, uma fraude.

A faixa intitulada Chico alcançou o top 1 nas plataformas digitais e reúne referências da música Folhetim de Chico Buarque, além de experimentar o ritmo da bossa nova (Foto: Pam Martins)

A última e quarta parte do álbum vem traduzida no alívio de conseguir sair da ansiedade e na libertação da expectativa alheia e autocobrança, como é cantado em Principalmente Me Sinto Arrasada, música estilo boneca russa que dá a sensação de haver várias dentro de uma só. Outro grande destaque é a faixa Lança Menina, uma clara referência e reverência a Rita Lee, em uma explosão de positividade e esperança, a qual muitos jovens artistas podem se identificar. Nessa última etapa, Sonza se enxerga e se apresenta como realmente é: nem boa, nem má, uma mulher que gosta de fazer música, suscetível a erros e acertos, que pode ser amada e odiada. 

Não acho que eu seja nem boa, nem má
Se todos caíram na minha laia
Falando a verdade, não me importa mais
Eu só faço o que todo mundo faz

Eu acho legal essa coisa de artista
E sei que não sou nenhuma especialista
Mas se me der um palco pra eu cantar
Desmonto e derrubo todo esse lugar

Ao fazer um paralelo de Escândalo Íntimo com DOCE 22, o último álbum da artista, vê-se como ela vem construindo uma trajetória coerente. No trabalho anterior, a cantora já havia mostrado ser capaz de sair da superficialidade das letras de Pandora e arriscar-se em melodias mais densas e pessoais. No novo lançamento, ela consolida ainda mais esse retrato e se lança em conceitos sonoros e visuais, preocupada em trazer uma narrativa coesa, que deveria dispensar grandes explicações. Com toda certeza, o álbum se torna um marco na carreira de Luísa Sonza, que adentra uma nova era, vivendo em um dos maiores momentos do pop nacional.

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